Authors Leonardo Foletto,
License CC-BY-SA-4.0
N
no mercado das tecno- ão é porque é que
logias de reprodução. tem que
de ser.
ser.Esse
Esse
E com isso escanca- é o gosto que fica
ra que a cultura li- do giro que este li-
vre já se encontra no vro faz em torno de
meio de nós. múltiplas e diversas
abordagens a respeito
Mariana Valente da apropriação in-
Diretora do InternetLab dividual de bens da
e professora do Insper.
cultura, e em torno
Coordenadora do Creative
Commons Brasil. do que se trata, afi-
nal, ser alguém que
cria. No percurso, dá
visibilidade ao fato
de nem sempre, nem em
em todos
todos os lugares,
os lugares a
a cultura
cultura ter
foisido
- ou- ou
é
- ordenada
ser - ordenada
sob sob
a ló- a
gica dada
lógica propriedade
proprieda-
intelectual.
de intelectual.
Em Em
um um
aberto questionamento
sobre a que servem os
regimes de proprie-
dade intelectual, o
LEONARDO FOLETTO, nascido
livro traz ao centro
em Taquari, interior do Rio
Grande do Sul, é jornalis- do palco as práticas
ta, pesquisador e professor. de resistência cons-
Formado pela UFSM, fez Mes- cientes e espontâneas
trado em Jornalismo na UFSC e – na arte, no coti-
Doutorado em Comunicação na
diano das ruas e na
UFRGS. Trabalha com comuni-
cação digital, cultura livre internet, nos ativis-
e tecnopolítica no Brasil e mos, nas articulações
na Ibero-América em projetos comunitárias em torno
como o BaixaCultura, labora- do comum, na noção de
tório online de cultura livre
coletividade de povos
e (contra) cultura digital,
em atividade desde 2008. ameríndios, e mesmo
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A CULTURA É LIVRE
UMA HISTÓRIA DA RESISTÊNCIA ANTIPROPRIEDADE
Leonardo Foletto
1a edição
leonardo foletto
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Coordenação editorial
Cauê Seignemartin Ameni e Daniel Santini
Preparação
Tulio Kawata
Revisão
Hugo Maciel de Carvalho
Capa, ilustrações e diagramação
Rodrigo Corrêa
Autonomia Literária
Conselho editorial
Cauê Seignemartin Ameni, Hugo Albuquerque & Manuela Beloni
Fundação Rosa Luxemburgo
Escritório Brasil – São Paulo
Diretor Torge Löding
Esta publicação foi realizada com apoio da Fundação Rosa
Luxemburgo e fundos do Ministério Federal para a Coopera-
ção Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
Sobre licenças e usos, ver o pósfacio ao final do livro.
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PREFÁCIO 6
APRESENTAÇÃO 10
INTRODUÇÃO 16
CAPITULO 1
CULTURA ORAL 24
CAPITULO 2
CULTURA IMPRESSA 40
CAPITULO 3
CULTURA PROPRIETÁRIA 60
CAPÍTULO 4
CULTURA RECOMBINANTE 94
CAPITULO 5
CULTURA LIVRE 130
CAPITULO 6
CULTURA COLETIVA 196
POSFÁCIO 230
REFERÊNCIAS 234
AGRADECIMENTOS 250
SOBRE O AUTOR 254
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PREFÁCIO
6
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O arco conceitual aberto por este livro que você tem em
mãos vai de Ocidente a Oriente, cobrindo toda a traje-
tória das especulações sobre as noções contrastantes de
propriedade intelectual e domínio público, desde a Gré-
cia, a Roma antigas e a China Imperial sob a influência do
confucionismo, passando pela Idade Média e os mundos
renascentista e iluminista europeus, pela modernidade
globalizante da expansão dos horizontes mundiais do
período das descobertas – a expansão para as Américas,
África e Ásia –, até os nossos dias, com os extraordinários
impactos das modernas tecnologias digitais sobre a pro-
dução e circulação de obras culturais em todo o planeta.
Esse arco conceitual é, neste livro, vivamente ilustrado
pelas várias passagens históricas que deram corpo e alma
à construção dos chamados “direitos de propriedade in-
telectual”. O livro cobre essa construção com múltiplas
observações sobre como “pessoas, grupos e movimentos
subverteram o status quo de suas épocas, da criação e cir-
culação da cultura e da arte”. Traz ilustrações que vão desde
as descrições sobre técnicas de utilização do papiro para
a confecção dos primeiros livros em remotas épocas im-
periais, passando pela revolução da imprensa abrindo os
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tempos pós-medievais (com Gutenberg), constatando as
novas injunções econômico-político-sociais na Inglaterra
e na França – dos séculos XVI ao XVIII – em sua transição
de monarquias absolutistas para regimes constitucionais
(com o surgimento do copyright e do direito do autor), ob-
servando o advento do rádio (com Guglielmo Marconi),
até, afinal, desembocar na era contemporânea do cinema,
da televisão e da internet com tudo que nos familiariza,
hoje, com a chamada Cultura Livre (o software livre, o
sampler, as várias formas de compartilhamento etc.).
A minha referência a esse amplo arco de abrangên-
cia conceitual do livro vem do desejo de que ele seja lido
com a lente multifocal que requer, necessária para cobrir
o largo espectro de ambição do autor ao tratar de uma das
mais complexas questões da história cultural da humani-
dade. As implicações da existência de uma ou de múlti-
plas noções de um direito proprietário, com respeito às
nossas atividades artísticas e intelectuais ao longo dos vá-
rios tempos dos desdobramentos da nossa civilização, é
fundamental para a compreensão de como chegamos até
aqui e de para onde estamos caminhando como sociedade
humana. Este livro, ainda que centrado no direito autoral
em oposição ao domínio público das ideias – seara por si
só suficiente para preencher todo um universo especula-
tivo –, nos informa sobre conhecimento e razão, nos aju-
da a balizar nosso horizonte de desenvolvimento humano
com a largura da pluralidade de olhares. O livro mira na
propriedade intelectual, mas revela muito mais: a própria
noção histórica de propriedade, todo um mundo de ca-
rências e riquezas dos possuidores e dos despossuídos.
Um livro vasto sobre cultura, política, sociologia, an-
tropologia e história. Um livro de uma sobriedade elo-
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quente sobre questões quase sempre nada sóbrias na di-
nâmica das disputas humanas. Um livro para a atualidade,
para a pós-modernidade e para o futuro civilizatório. A
tirar proveito, vejamos.
Gilberto Gil
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APRESENTAÇÃO
10
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Este livro nasce de um esforço que data de 2008, ano da
criação do BaixaCultura1, blog, site, projeto, laboratório
on-line criado por mim e pelo poeta Reuben da Cunha
Rocha, então mestrandos de universidades públicas num
Brasil que ainda acreditava no futuro. Ao buscar escre-
ver sobre produtos culturais que pudessem ser consumi-
dos (apreciados, fruídos, curtidos) na internet, em pou-
cos meses nos deparamos com a cultura livre, então uma
ideia que falava da principal discussão na internet mun-
dial daquele momento: o compartilhamento de arquivos
na rede e as disputas em torno da (i)legalidade desse ato.
Logo puxamos o fio: software livre, copyleft, cultura di-
gital, hackers e ciberativismo vieram de um lado; remix,
plágio, apropriação, arte radical, contracultura, de outro.
Unimos ambos os fios com a pirataria, o compartilhamen-
to e a discussão tecnopolítica.
Onze anos depois, mais de trezentos textos publicados e
um tanto de debates, mostras de filmes, oficinas, palestras,
conversas e entrevistas realizadas, o BaixaCultura perma-
necia. Sem Reuben desde 2010, coube a mim, com ajuda de
1
Disponível em: http://baixacultura.org.
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diversas pessoas ao longo desse período, manter o espaço
aberto, agora em uma outra internet e com a pauta do com-
partilhamento de arquivos e da cultura livre com menor es-
paço em todos os lugares. As promessas de transformação
radical da sociedade que a internet convocava em muitos
de nós naquela época se transformaram em algo próximo
a um pesadelo. Em 2020, não houve como fugir de uma
palavra para descrevê-lo: distopia. Ainda assim, o compar-
tilhamento de arquivos na rede continua firme nos guetos
hackers e contraculturais; a cultura livre segue como movi-
mento em prol não só de uma cultura, mas também de um
conhecimento livre e dos bens comuns; o copyleft se man-
tém como um dos maiores hacks em mais de três séculos de
direitos autorais no Ocidente; o software livre permanece
como uma utopia de construção colaborativa e solidária de
tecnologias que, por ora, e por um triz, perdeu a chance
de ser a realidade global; e o remix virou a principal forma
de criação artística num mundo que, mais conectado do
que nunca, não tem mais dúvidas que só se cria recriando.
Por todos esses motivos, continua sendo importan-
te falar de cultura livre. A partir do escopo debatido no
BaixaCultura nesse período e em diversos outros lugares
por muitas pessoas, o que este livro busca é dissecar uma
ideia que começou muito antes da internet e permanecerá
enquanto houver ser humano vivo criando. Seria, porém,
uma extensa e hercúlea jornada dar conta de falar de to-
dos os aspectos que envolvem uma ideia de história tão
longa. Por isso a escolha de buscar situar, contextualizar,
recuperar, e debater um mínimo múltiplo comum sobre o
tema, com ajuda de muitas áreas – história, direito, co-
municação, arte, sociologia, antropologia, ciência política,
estudos de ciência e tecnologia, computação.
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Desenvolvida e propagada como ideia na década de
1990, nos primeiros anos da internet no mundo, a cultura
livre se alimenta diretamente do conceito de software livre
e do copyleft, ambas criações relacionadas a produtos tec-
nológicos – o software – do início dos anos 1980. Sua base,
portanto, está relacionada ao desenvolvimento da tecno-
logia digital, assim como sua popularização é fruto de um
cenário de expansão do acesso à informação a partir da in-
ternet. Mas a ideia de cultura livre, pelo menos na perspec-
tiva que abordo aqui, tem uma história que começa muito
antes do software livre e da internet. Falar de formas livres
de criação, uso, modificação, consumo, proteção e reprodu-
ção de cultura passa por entender as maneiras de produzir e
circular informação e cultura em diferentes períodos histó-
ricos, como a Antiguidade, a Idade Média e a modernidade;
considerar os mecanismos criados pelo direito ocidental
para controlar (e restringir) a criação intelectual; perceber
como invenções tecnológicas como a imprensa, o gramofo-
ne, o cinema, o rádio, a fotografia, os computadores e prin-
cipalmente a internet têm grande importância na alteração
de todos os aspectos da criação cultural. Falar de cultura
livre também é olhar para como foram sendo construídas
as ideias de autoria, propriedade intelectual, original e có-
pia, sem esquecer das noções do Extremo Oriente e dos po-
vos indígenas das Américas sobre esses assuntos; observar
como pessoas, grupos e movimentos subverteram o status
quo da criação e da circulação da cultura de suas épocas, em
especial ao longo do século XX, e das implicações políticas
de suas ações.
Pensado durante longo tempo e começado finalmente
a ser escrito em 2019, este livro investiga a cultura livre
também entre dois lados conhecidos: o da remuneração
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aos criadores, que deveria garantir a continuidade na pro-
dução de suas obras, e o do acesso, (re)uso e circulação
das obras, que prometeria à humanidade o direito de fruí-
-las e recriá-las. Nesses dois polos, muitas vezes colocados
como antagônicos, há nuances e questionamentos, entre
os quais o da própria concepção de que alguém possa ser
dono de uma ideia, uma melodia, uma frase, uma ima-
gem, uma tecnologia, e a do entendimento de que uma
obra não possa ser compartilhada ou consumida sem al-
gum pagamento a quem a criou. Terei dado por cumprido
o objetivo deste livro se, ao final, der para sacar que há
muito mais nuances (e polos) para ver e entender a cultura
livre do que se imagina.
Leonardo Foletto
São Paulo, inverno de 2020
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INTRODUÇÃO
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A palavra “cultura” teve tantos sentidos no decorrer da
história que vamos, de início, buscar uma definição para
conseguir acrescentar a ela o livre que nomeia este livro.
O primeiro capítulo do livro Micropolíticas: cartografias
do desejo (1984), de Felix Guattari e Suely Rolnik, tem o
título “Cultura: um conceito reacionário?”, um texto que
traz diferentes sentidos de cultura que podem nos ajudar:
o sentido A é definido como cultura-valor e corresponde a
um julgamento de valor que determina quem tem e quem
não tem cultura. É manifestado, por exemplo, em certos
diálogos corriqueiros nos quais se fala que “tal sujeito é
bem-educado, estudou em colégios caros, viajou o mun-
do, tem cultura”.
O sentido B é o de cultura-alma coletiva, algo que, di-
ferentemente do primeiro, todos têm: há cultura negra,
cultura queer, cultura underground. Seria o conjunto de
produções, valores, modos de fazer e de viver, uma “es-
pécie de alma um tanto vaga, difícil de captar, e que se
prestou no curso da História a toda espécie de ambigui-
dade”2. A cada alma coletiva (os povos, as etnias, os gru-
2
Guattari; Rolnik, Micropolíticas: cartografias do desejo, p.19.
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pos sociais) é atribuída uma cultura; em muitos casos, é
também sinônimo de civilização, algo que foi bastante
problematizado na antropologia, área na qual a cultura é
foco central e que, por isso mesmo, conta com inúmeros
conceitos e debates3. O sentido C proposto por Guattari e
Rolnik é o de cultura-mercadoria, como um produto pos-
to num mercado de circulação monetária. É um sentido
mais objetivo que os outros dois, pois se refere a algo que
podemos ver e tocar: um livro, um quadro, por exemplo.
Poderíamos usar esse sentido para designar outra noção,
a de bens culturais, que seriam aqueles objetos postos em
circulação em um mercado que inclui outras pessoas além
de seu criador. Alguns exemplos são um desenho publica-
do num blog na internet, um vídeo produzido a oito mãos
de um smartphone e disponibilizado numa plataforma de
streaming, textos políticos diagramados em formato de
zine para serem vendidos ou distribuídos numa banqui-
nha na rua, um livro de poesia de uma editora, um ensaio
sobre arte em uma revista mensal. Existem diversos ou-
tros; basta satisfazer a necessidade de serem organizados
em algum formato reconhecido e circularem para diver-
sas pessoas.
No sentido A, não é como falar na liberdade de uma cul-
tura que é vista como um valor, pois, ainda que seja possí-
vel escrever, não é lógico falar em “valor livre” em oposi-
ção a um “valor fechado”, por exemplo. Um sujeito que é
tido como alguém que tem cultura não é identificado como
3
Como muitos outros antropólogos, Clifford Geertz, por exemplo,
fala em cultura como modos de viver diversos e várias maneiras de
se expressar (A interpretação das culturas); Marshall Sahlins fala de
cultura como razão prática (Cultura e razão prática); e Roy Wagner
fala de capacidade inventiva na alteridade (A invenção da cultura).
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portador de uma cultura livre. No sentido B, cultura como
“alma coletiva”, ela já é livre a priori; não há cultura under-
ground que não seja livre, nem uma cultura como o samba
ou hip-hop, por exemplo, que seja toda ela fechada e pro-
priedade de uma única empresa. Mas há bens culturais pro-
duzidos no âmbito dessas culturas que não são livres, obje-
tos que bebem nas ditas almas coletivas e passam a circular
num dado mercado e se tornam propriedade de alguns.
É, por fim, no sentido C de “cultura” que vamos falar
aqui de cultura livre: como uma cultura que é colocada em
circulação a partir de certos bens culturais em um dado
mercado, bens que são de livre acesso, difusão, adaptação
e valor – todas características que vão ser tensionadas ao
longo deste livro. Ainda que essa cultura seja uma merca-
doria, tida em conjunto como um valor distintivo e fruto
de uma alma coletiva que carrega suas políticas e relações
sociais, essa distinção por ora nos situa num conceito ao
longo das próximas páginas.
Definida uma noção maleável de cultura e de cultura
livre, podemos passar para outros conceitos que é impor-
tante que estejam, embora em versão mínima, neste pró-
logo. A noção de que um texto, um livro, uma peça teatral,
um quadro possa ser vendido por um valor determinado
não é algo dado desde sempre na história da humanidade,
mas sim uma concepção estabelecida como senso comum
a partir dos séculos XVII e XVIII, com o surgimento dos
primeiros monopólios dados a impressores, da invenção
do copyright, da propriedade intelectual e dos direitos de
autor. Antes disso, havia, claro, produção de livros, de-
senhos, pinturas, esculturas, peças teatrais sendo feitos e
postos em circulação para diferentes públicos, mas não
havia um consenso de que essas obras circulariam em tro-
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ca de uma certa quantia, que seria paga ao seu dono, ou
a quem as produziu. E não havia por diversos motivos:
primeiro porque a circulação era restrita, dada a dificul-
dade de se produzir (no caso de um livro, por exemplo);
segundo porque a forma de fruição dessas obras era co-
mumente coletiva e oral, não individual; e terceiro porque
não era muito claro o sentido de que uma dada obra tinha
algum dono ou mesmo um autor, como dito no capítulo
1: “Cultura oral”.
Só começa a fazer sentido a relação dos bens culturais
como mercadorias com um determinado preço e com au-
tor quando, no século XV, se cria uma máquina de im-
pressão que propaga certos tipos de bens culturais para
públicos muito maiores do que existiam até então. Daí se
estabelecem formas de controlar a circulação desses bens
com leis, como o copyright, um direito concedido a al-
guém, de modo exclusivo, para produzir e reproduzir uma
obra, como apresentado no capítulo 2: “Cultura impres-
sa”. Logo depois, surge a noção de propriedade intelectual,
que se consolidou nos séculos seguintes como um ramo
do direito civil, que vai buscar regular criações do intelec-
to humano, como mostrado no capítulo 3: “Cultura pro-
prietária”, a partir de uma relação, até hoje questionada,
com a propriedade física.
A partir do século XIX, a propriedade intelectual se
consolida dividida em dois ramos. Um deles é o direito de
autor, estabelecido na sequência do copyright, no século
XVIII, na França do Iluminismo, como um conjunto de
prerrogativas dadas por lei a uma pessoa ou uma empresa
a quem se atribui a criação de uma obra intelectual. Os
direitos autorais vão ser, por sua vez, divididos em outros
dois ramos: os direitos morais, referentes às leis que regem
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a autoria de uma obra e a sua integridade, ou seja, a possi-
bilidade ou não de alterar uma dada criação; e os direitos
patrimoniais, que regulam a produção e reprodução co-
mercial dessa obra. Nesse período já se percebe que havia
uma situação mais complexa na circulação de uma obra
para muito mais pessoas; que, com isso, se passava a uma
fruição menos coletiva e cada vez mais individual de bens
culturais; e, também, que o autor de uma determinada
obra pode ser identificado como aquele “que permite su-
perar as contradições que podem se desencadear em uma
série de textos”4.
No final do século XIX e durante o século XX, quando
essas noções se consolidam no senso comum e em um sis-
tema legal de propriedade intelectual, são inúmeras as for-
mas, em especial na arte e na contracultura, de contestar o
estabelecido. “Preciso pagar a alguém para ler um livro?”,
“Sou dono deste texto?”, “Quem disse que não posso usar
um trecho de uma obra para fazer outra, ou para inventar
uma nova forma de arte, novos bens culturais?”. Alguns
movimentos, vanguardas, artistas e coletivos enfrentam o
status quo do direito autoral e da autoria e, por isso, se tor-
nam defensores de uma cultura livre antes de o termo se
popularizar, assim como há outros que questionam a con-
dição de originalidade de uma dada obra numa época de
propagação das máquinas técnicas de reprodução, como
informado no capítulo 4: “Cultura recombinante”.
O outro ramo em que se divide a propriedade intelec-
tual é a chamada propriedade industrial. É ligada à produ-
ção e uso de determinados bens em escala industrial, o que
amplia o controle legal da criação para processos, inven-
4
Como Michel Foucault conceituou em seu conhecido ensaio “O que
é um autor?”, em 1969 em Ditos e escritos, v. 3.
21
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ções, modelos, desenhos, identificados como obras utili-
tárias – ou seja, que são usadas para um determinado fim
em um dado mercado, em oposição ao direito autoral, que
rege a criação artística, científica, musical, literária e que,
nessa concepção, não seriam utilitárias. As propriedades
industriais têm como seu elemento registrador principal
a patente, uma concessão pública – fornecida por algum
órgão de Estado, portanto – para um dado titular explorar
comercialmente, de modo exclusivo e limitado no tempo,
uma determinada criação. Da lâmpada incandescente à
máquina fotográfica de filme, do fonógrafo de Thomas
Edison até o software, as patentes são monopólios de ex-
ploração comercial de uma ideia que geram muito dinhei-
ro, por isso também muitas batalhas e questionamentos
críticos, especialmente do século XIX em diante.
A expansão da tecnologia digital e sua quase onipresen-
ça na vida de boa parte dos mais de sete bilhões de pessoas
que habitam o planeta Terra no século XXI resultam em
condições ainda mais complexas de produção, circulação
e comercialização de bens culturais. Com isso, outra noção
que perpassa esta obra se torna ainda mais maleável: o que
é cópia e o que é original, afinal? Se a internet somente fun-
ciona na base da cópia de dados e arquivos que são repas-
sados e compartilhados, é possível controlar a reprodução
de uma música milhões de vezes copiada e que, entretanto,
continua a existir igualmente em todos as milhões de có-
pias? A discussão em torno do compartilhamento de arqui-
vos na rede e suas consequências resulta, enfim, no capítulo
5: “Cultura livre”, não por acaso o maior de todos.
Tradições milenares no Extremo Oriente e em alguns
povos originários da América Latina nos mostram que o
mundo não é só o que chamamos de Ocidente e que a pers-
22
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pectiva sobre o que é cópia, original, livre e coletivo tem
diferenças significativas entre culturas diversas. São ideias
que nos incitam a descolonizar nosso olhar ocidental apli-
cado às histórias, filosofias e modos de pensar as coisas e o
mundo como conhecemos, e buscar modos diferentes de
ver essas questões, como é o caso do conceito de shanzai,
na China, sinônimo de produto falso, fake, mas também
um jeito de ver os bens culturais como elementos sempre
em transformação de acordo com cada contexto, objeti-
vo e fim, sem uma única e sagrada origem. E também a
perspectiva de alguns povos ameríndios que, ao não se-
parar sujeito e objeto, tornam o vocabulário desenvolvido
sobre propriedade e direito autoral insuficiente para ser
usado com esses povos, como apresentado no capítulo 6:
“Cultura coletiva”. É a partir da mescla de algumas dessas
experiências não ocidentais citadas e de uma visão desde
o chamado sul global que, ao final desse capítulo, aponta-
mos algumas alternativas para a propagação e a defesa de
uma cultura livre hoje.
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CAPÍTULO 1
CULTURA ORAL
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Confio a você, Quinciano, meus livrinhos.
Se é que posso chamar de meu o que um poe-
ta amigo seu recita. Se eles se queixam de
sua dolorosa escravidão, vá acudi-los por
inteiro. E quando aquele se proclamar seu
dono, diga que eles são meus e que foram
libertados. Se você falar em voz alta três
ou quatro vezes, fará com que o plagiário
se envergonhe.
Marco Valério Marcial, Epigramas, séc. I
A imitação é essencial, a fabricação é pe-
rigosa, a matéria é propriedade coletiva.
Alguém, séc. I
As melhores ideias são de todos; portanto,
dado que o que é de todos é também de cada
um, toda verdade me pertence; tudo que há
sido dito bem por alguém também é meu.
Sêneca, séc. II
O fortalecimento da atribuição divina à
autoria se estabelece como o padrão na Ida-
de Média a partir dos séculos VII e VIII;
há uma tendência progressiva em considerar
cada texto parte de um grande discurso, uma
comunidade de linguagem que diluía o par-
ticular em uma significação geral propícia
à antologia, a expressão estereotipada da
(re)combinação de elementos preexistentes.
Kevin Perromat, El plagio en las litera-
turas hispánicas, 2010
25
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I.
As artes produzidas na Antiguidade grega e romana
não parecem ter prestado atenção especial à questão de
propriedade ligada à cultura. Não há vestígios de referências
a códigos jurídicos, proteções, sanções ou direitos sobre
produção e circulação de obras culturais parecidos com
os que temos hoje. Como escreve Kevin Perromat5 em
seu extenso estudo sobre o plágio na literatura hispânica,
há diversos fatores que nos fariam deduzir que ambas as
civilizações, com escritores, dramaturgos e filósofos que
mais de dois mil anos depois ainda são conhecidos e lidos no
mundo inteiro, com uma profusão de artistas, comerciantes
e sobretudo juristas (em especial os romanos), poderiam
ter buscado regulamentar a produção e a disseminação de
bens culturais. Mas não o fizeram – ou o fizeram de uma
forma de que não se guardaram registros até hoje. Por quê?
A primeira razão é que, nas civilizações grega e roma-
na, as narrativas faziam parte de uma tradição comum, o
que permitia recriações de acordo com os seus diversos
5
Perromat, El plagio en las literaturas hispânicas, p.24.
26
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porta-vozes e os contextos em que eram contadas. Não era
possível rastrear suas origens exatas e muito menos impe-
dir sua livre circulação. A criação poética, por exemplo,
era de natureza fluida, e mesmo que o contador de uma
dada história pudesse ser reconhecido, sua contribuição
não era tida como fruto de sua individualidade, mas de
uma cultura coletiva na qual ele estava mergulhado. Aqui-
lo que poderia ter acrescentado ao poema não era regis-
trado para a posteridade; não havia essa preocupação6,
assim como também não havia controle sobre a produção
e a distribuição de uma obra.
Em uma sociedade predominantemente analfabeta,
a finalidade de uma obra cultural – tanto uma peça de
teatro quanto uma música ou um poema, mas também
textos políticos – era a circulação pública em praças, tea-
tros, ruas, púlpitos. Tanto a escrita quanto a leitura eram
para poucos; as ideias e a cultura circulavam na voz – e na
reapropriação – de cada um que falava. O filósofo grego
Sócrates, um dos pais da filosofia ocidental e a quem co-
nhecemos somente por meio do texto de outros, chega a
dizer em Fedro, diálogo compilado por Platão em torno
de 370 a.C., que a escrita era uma perda em relação ao
discurso oral, segundo ele mais apropriado para manter o
pensamento vivo. Sócrates falava da ameaça que a escrita
representava para a manutenção das funções da memória,
que ficaria subutilizada e perderia sua potência à medida
que os registros fossem transferidos para o papel7.
Não havia também uma sólida noção de autor, pelo
menos no âmbito jurídico, o que só foi ocorrer a partir do
6
Martins, Autoria em rede: os novos processos autorais através das re-
des eletrônicas, p.28.
7
Ibidem, p.78.
27
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século XVIII. A autoria era principalmente coletiva, atri-
buída a uma dada cultura ou aos deuses, fruto de uma ins-
piração divina ou de uma construção comunitária em que
importava mais o conteúdo e o que ele poderia ensinar do
que seu porta-voz. Homero, a quem se atribui a escrita dos
clássicos Ilíada e Odisseia em torno dos séculos VIII e VII
a.C., é um exemplo desse período: não existe evidência
a respeito da data de criação dessas duas obras nem que
houve uma pessoa chamada Homero que a escreveu. O
relato da Guerra de Troia e dos diversos percalços da jor-
nada de Ulisses de volta a sua Ítaca natal, eixos narrativos
centrais de Ilíada e Odisseia respectivamente, são histó-
rias que condensam uma visão de mundo e ensinamentos
que representam um modo comum de pensar dos gregos,
enraizados na cultura da época. Homero é um arquétipo,
construído posteriormente, e que cumpria funções como
a de um horizonte linguístico ou “pai e avô” dos poetas,
uma figura quase mística a quem coube contar uma histó-
ria que, conhecida e construída por muitos, era tida como
de autoria de deuses, musas, entidades da natureza8.
Com a difusão da escrita a partir do século VII a.C.,
surgem, em paralelo a um tipo de criação aberta e cole-
tiva, registros de uma expressão individualizada e de um
desejo de reconhecimento de autoria, que passava pela
busca de uma primeira tentativa de controle da difusão
de uma obra9. Um dos primeiros que tentam controlar a
difusão de sua produção nesse período é Teognis, poeta
grego que viveu no século VI a.C. e que trazia, em suas
publicações manuscritas, a colocação de um selo: “Estes
são versos de Teognis de Megarar”. Sua intenção com essa
8
Perromat, op. cit., p.24.
9
Ibidem, p.30.
28
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trademark (marca registrada) antiga não era a de obter
lucro com a venda de suas obras, mas que não as modi-
ficassem e achassem que não eram suas, o que tiraria o
reconhecimento pelo trabalho que realizava10.
Nessa época, os autores compreendiam que a melhor for-
ma de serem bancados por governantes e pela aristocracia
grega era serem considerados “especialistas” e terem obras
atribuídas a eles. Aqui entra uma segunda pista que explica
o motivo de os gregos e romanos não terem prestado aten-
ção especial à questão de propriedade ligada à cultura: a au-
sência de um mercado para bens culturais. Os autores não
se sustentavam com a renda direta de suas obras; viviam
prestando serviços de instrução para a aristocracia, con-
selhos para governantes, ensino de diversos temas – todas
ações ligadas à presença e à comunicação oral. Na tradição
discursiva greco-romana, as retribuições aos autores eram
de ordem simbólica, de reconhecimento social de uma ati-
vidade que não deixava de ser elitista e aristocrática11 – afi-
nal poucos sabiam ler –, mas também de certos tipos de re-
conhecimentos indiretos, como premiações em concursos
oficiais e vantagens materiais advindas dos prêmios.
II.
Na Grécia, no período conhecido como helenístico (IV
a.C.-II a.C.), não havia um controle sobre o destino de
um livro depois de lançado, seja em relação ao número de
exemplares ou à modificação de seu conteúdo. Além de ser
10
Ibidem, p.27, citando também um historiador do séc. III, Clemente
de Alexandria (que teve sua obra publicada posteriormente: Omnia
quae extant opera).
11
Ibidem, p.29.
29
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uma cultura que valorizava a fruição e a criação coletiva e
oral, outro fator justificava essa falta de controle: o formato
do livro da época. Este tinha um formato conhecido como
volumen, composto de uma longa faixa de papiro ou perga-
minho, que era lido à medida que desenrolado por alguém,
com as duas mãos, podendo ter vários metros de compri-
mento e pesar alguns quilos. Formato pesado e caro, era de
difícil reprodução, cuidado e armazenamento, o que torna-
va o livro um bem relativamente escasso à época, como se
revela em textos de Aristóteles e de Platão12.
O surgimento das primeiras bibliotecas no mundo gre-
co-romano, a partir do século IV a.C., estabelece um come-
ço para uma política de controle dos textos e manuscritos.
Para controlar os textos e obter uma cópia, há necessidade
de garantir o que é autêntico e o que não é, o que motiva as
bibliotecas a pesquisar para atribuir corretamente a autoria
das publicações13. Criada nesse período, a mítica Biblioteca
de Alexandria, no Egito, foi uma das principais iniciativas
que visavam organizar o conhecimento e a cultura produ-
zida até então; faz isso a partir da seleção de um cânone de
obras da cultura grega pelos sábios e bibliotecários identifi-
cados à chamada Escola de Alexandria14. A partir de um sis-
12
Putnam, Authors and their Public in Ancient Times, citado em
Perromat, op., cit., p.32.
13
Long, Openness, Secrecy, Authorship: Technical Arts and the Culture
of Knowledge from Antiquity to the Renaissance, p.30.
14
Escola de Alexandria é uma designação coletiva para certas tendên-
cias em literatura, filosofia, medicina e ciências que se desenvolveram
no centro cultural helenístico da cidade de mesmo nome, no Egito,
durante os períodos grego e romano. Calímaco (310-240 a.C.) foi o
principal bibliotecário, a quem se atribui a elaboração do catálogo da
Biblioteca de Alexandria.
30
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tema de edição crítica que comparava as distintas partes de
uma obra buscando sua coerência textual, estabeleceram as
versões que conhecemos de muitos textos da cultura grega,
que seriam a base também para a “rústica Roma”, que herda
o “estofo cultural” dos gregos antigos e durante os séculos
seguintes se apropria dessa cultura, mesclando-a com refe-
rências asiáticas e africanas.
Também em Roma se vê crescer o poder do nome do
autor como uma chancela de credibilidade aos bens cultu-
rais produzidos, o que ainda não se traduz em proteção ju-
rídica nem em controle do autor sobre a circulação de sua
obra. É exemplar desse momento a história do poeta Vir-
gílio, que, no século I a.C., foi contratado pelo imperador
Augusto para criar uma epopeia da fundação de Roma aos
moldes da Ilíada e da Odisseia. Tomando os poemas atri-
buídos por Homero como base, recria a jornada de Ulis-
ses em Enéas, guerreiro que, após participar da Guerra de
Troia, chega à Península Itálica e lá enfrenta uma série de
aventuras para se estabelecer. É conhecida a história de
que, ao final de sua vida, Virgílio ordenou a destruição da
Eneida por considerá-la uma obra de propaganda política
de Augusto e por não ter a perfeição poética que gostaria.
Entretanto, a Eneida não foi destruída; seu direito como
autor de controlar sua produção não foi respeitado, o que
é representativo do sentimento de uma época em que o
direito moral e estético da comunidade em desfrutar da
obra do artista era prioritário à vontade do autor15.
O pensamento comum da sociedade romana em rela-
ção à posse e à autoria dos bens culturais era manifestado
em três conceitos identificados por um estudo clássico do
15
Perromat, op. cit., p.32.
31
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inglês Harold Ogen White16: “A imitação é essencial, a fa-
bricação é perigosa, a matéria é propriedade coletiva”. Es-
sas noções podem ser vistas em expressões como “Oratio
publicata, res libera est” (“o publicado pertence a todos”),
atribuída a Quinto Aurélio Símaco, escritor da Roma do
século IV d.C.; ou como a frase “as melhores ideias são de
todos; portanto, dado que o que é de todos é também de
cada um, toda verdade me pertence; tudo que há sido dito
bem por alguém também é meu”17, de Sêneca, filósofo e
escritor do seculo I d.C.
No entanto, a busca pelo controle de autenticidade das
obras passa, ao longo dos séculos seguintes, a provocar
transformações que contrastavam com a cultura recom-
binante da tradição oral, que identificava as ideias e as
obras como posse coletiva. Aparece entre alguns filósofos
e escritores romanos do período, como Cícero, Horácio
e Sêneca, a discussão em torno da ideia de que apenas a
imitação por si só não é suficiente, é necessário que seja
uma imitação criativa18. O plágio, enquanto discussão e
enquanto palavra, surge nesse período a partir de Mar-
co Valério Marcial (40-104). Protegido pela aristocracia e
pelos imperadores, era um poeta bastante popular no pe-
ríodo, mas, como todos os artistas seus contemporâneos,
não vivia da venda de sua obra. Tornaram-se célebres suas
tiradas satíricas e autorreferentes – algumas das quais fa-
lam em restringir o acesso aos seus escritos em troca de
um pagamento, o que antecipa a ideia de obra de arte em
16
White, Plagiarism and Imitation During the English Renaissance: A
Study in Critical Distinctions, citado em Perromat, op. cit., p.44.
17
Ibidem.
18
Detalhadas, entre outros, nos já citados Putnam (1923), Long, op.
cit.; e Perromat, op. cit.
32
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termos mercantis19. Um registro de sua postura está em
um de seus milhares de epigramas, uma espécie de co-
mentário – curto como um tweet do século XXI – irôni-
co, muitas vezes escatológico e obsceno, sobre alguém ou
um fato: “O povo anda dizendo que você, Fidentino, recita
meus livrinhos como se fossem seus. Se for falar que são
meus, te envio grátis. Se seus, compre, pra que meus não
sejam mais”20.
Segundo Perromat21, a Marcial se atribui a invenção do
termo plágio no sentido moderno, já que antes esse tipo de
ação, quando identificada, era nomeada como um “roubo”
ou “furto” de ideias. O escritor romano cria a expressão a
partir do verbo latino plagiare, que significa em latim “re-
vender de modo fraudulento o escravo ou filho de alguém
como próprio”, delito que no período era punido com o
açoitamento. Marcial usa o termo com o novo sentido em
outro de seus epigramas: “Confio a você, Quinciano, meus
livrinhos. Se é que posso chamar de meu o que um poeta
amigo seu recita. Se eles se queixam de sua dolorosa escra-
vidão, vá acudi-lo por inteiro. E quando aquele proclamar
seu dono, diga que eles são meus e que foram libertados.
Se você falar em voz alta três ou quatro vezes, fará com
que o plagiário se envergonhe”22.
19
Perromat, op. cit., p.42.
20
Marcial, Epigramas, em trad. Rodrigo Garcia Lopes.
21
Perromat, op. cit.
22
Tradução livre da versão em espanhol: “Te encomiendo, Quinciano,
mis libritos. Si es que puedo llamar míos los que recita un poeta amigo
tuyo. Si ellos se quejan de su dolorosa esclavitud, acude en su ayuda por
entero. Y cuando aquél se proclame su dueño, di que son míos y que han
sido liberados [manu missos]. Si lo dices bien alto tres o cuatro veces,
harás que se avergüence el plagiario”. Epigrama LIII, em Marcial, Épi-
33
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Ainda assim, a discussão crescente em torno do plágio
no período era feita no âmbito da moral e da estética, não
no sentido legal ou criminal. Muitos dos debates intelec-
tuais travados na sociedade romana da época traziam um
crescente juízo negativo sobre a imitação sem criação, a
cópia pura e simples, mas não chegaram a ser centrais na
crítica literária romana23. Não há registro de leis que te-
nham sido feitas para regular ou punir essas práticas. Isso
pode ter ocorrido, tanto na Grécia quanto em Roma, tam-
bém pela dificuldade material da reprodução, um gargalo
financeiro considerável para a circulação de obras tidas
como plagiadas e que provavelmente não ajudou a esti-
mular a criação de regras para isso. Outro fator é que os
sistemas jurídicos da época não consideravam obras artís-
ticas e seus suportes de maneiras separadas. Para os gre-
gos, por exemplo, quem adquirisse uma obra – pelo custo
financeiro, provavelmente uma biblioteca ou um membro
da aristocracia – podia se servir e modificar a obra à von-
tade, sem que o autor tivesse qualquer interferência. A re-
lação coletiva de posse dos bens culturais e a inexistência
de leis que regulassem e punissem as práticas tidas como
de roubo de ideias e publicações perdurou até o século
XVI, quando, pela primeira vez, aconteceu uma conces-
são estatal (um monopólio) que garantia privilégios para
imprimir um texto – para a Stationer’s Company, na In-
glaterra – e foi decretado o Estatuto de Anne, a primeira
lei de propriedade intelectual, de 1710, também inglesa.
grammes, p. 70-1, traduzido do francês para o espanhol por Perromat,
op. cit., p.47.
23
Perromat, op. cit., p.43.
34
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III.
O período que compreende o fim do Império Romano e
a Alta Idade Média é o do advento do cristianismo e o
confronto e posterior assimilação da civilização greco-ro-
mana. Para a produção cultural, o resultado foi diverso.
Perromat e outros historiadores24 afirmam que quase a to-
talidade das versões que conservamos hoje dos grandes
escritores e pensadores de Grécia e Roma são adaptações
e variações feitas nesse período, quando não falsificações
que, depois, foram atribuídas a grandes figuras da Anti-
guidade em razão do prestígio que essa indicação, mais
tarde, passou a trazer.
Outro elemento importante aqui para a mudança dos
modos de produção e circulação de bens culturais nessa
época se dá pela transformação do suporte material das
obras. A queda de um império que se espalhava por quase
toda a Europa que conhecemos hoje implica também rup-
tura de rotas comerciais e escassez de alguns recursos, caso
do principal material utilizado na confecção dos livros no
mundo greco-romano, o papiro, retirado da planta Cyperus
papyrus, da família das ciperáceas. Material caro e de pou-
ca resistência, vinha do comércio com o norte da África
(principalmente Egito) e com o Oriente Médio, que dimi-
nuiu consideravelmente após a queda do Império Roma-
no. Assim, por volta dos séculos IV e V, os livros passaram
a ser produzidos principalmente em pergaminhos, nome
dado a uma pele de animal, geralmente de cabra, carneiro,
cordeiro ou ovelha, preparada para nela se escrever – ma-
terial que, mesmo perecível e caro, passou a ser o principal
24
Ibidem, p.50.
35
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utilizado na fabricação de livros. Também nesse período,
eles passam a não ser mais produzidos em rolos, mas em
formato códice25, próximo ao do livro como o conhecemos
no século XX. O historiador Alberto Manguel fala que, no
século XII, a tecnologia para a elaboração de um volume
da Bíblia (Novo e Velho Testamento) necessitava de peles
de cerca de duzentos animais26.
A consolidação do cristianismo na Europa nos séculos
seguintes traz algumas mudanças no que diz respeito tam-
bém à identificação do autor. Em uma religião para a qual
a Bíblia era o (único) livro sagrado e sua autoria27 era, em
última instância, de Deus, a vontade dos escritores e sua
suposta singularidade – que chegou a fomentar discussões
iniciais entre gregos e romanos – passou a depender da
verdade de um único “autor”, Deus. O fortalecimento da
atribuição divina à autoria se estabelece como o padrão na
Idade Média a partir dos séculos VII e VIII; há uma ten-
dência progressiva em considerar cada texto parte de um
grande discurso, “uma ‘comunidade de linguagem’ que
diluía o particular em uma significação geral propícia à
antologia, à expressão estereotipada da (re)combinação de
25
Consiste de cadernos dobrados, costurados e encadernados, escri-
tos em ambos os lados de uma folha numerada, formato até hoje pa-
drão para a produção de livros.
26
Manguel, Uma história da leitura, p.198.
27
Conjunto de livros base do cristianismo e do judaísmo, a Bíblia é
motivo de muitas disputas envolvendo autoria. Ao buscar a conso-
lidação dos dogmas judaico-cristãos, muitos dos primeiros escrito-
res bíblicos se basearam em outros textos, gregos e de outras regiões,
compilando-os e adaptando-os na medida dos objetivos de evangeli-
zação da população – no que seriam bem-sucedidos nos séculos se-
guintes, conseguindo o espalhamento desses dogmas por boa parte
do mundo. Ver: https://en.wikipedia.org/wiki/Bible.
36
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elementos preexistentes”28, uma modalidade de escritura e
leitura com um caráter eminentemente coletivo.
Consolida-se um discurso em que diversas pessoas
adaptam, com liberdade extrema, os textos (e aqui pode-
mos dizer música e teatro também) para fins específicos,
na maioria das vezes com objetivos de convencer, a partir
de uma determinada ideia, e de estabelecer um exemplo
moral e ético a ser seguido. Paul Zumthor, em seu Essai
de poétique médievale29, diz que o texto nesse período fun-
ciona de maneira independente de suas circunstâncias; o
ouvinte (a grande maioria das obras aqui ainda oral ou
oralizada) esperava apenas sua literalidade, ou seja: o sig-
nificado da “mensagem”, e não condenava alterações na
forma que mantivessem esse significado – é mais provável
que, diante ainda de uma maioria analfabeta, mudanças
nem seriam percebidas. Assim, os autores medievais ti-
nham por método o uso generalizado de materiais de ou-
tros por meio de alusão, interpolação ou paráfrases e, na
maioria das vezes, não especificavam sua origem. Frag-
mentos consideráveis de textos, às vezes muito anteriores,
foram simplesmente insertados em novas obras, poemas
preexistentes foram integrados por inteiro em composi-
ções literárias30. Sem documentação e sem conhecimento
do cânone de autores da época, algumas dessas citações e
inserções jamais seriam reconhecidas.
A partir do século V, o cristianismo passou não apenas
a ser a fé mais difundida no Ocidente como também a re-
ger as obras culturais do período. Uma das consequências
desse controle foi o desaparecimento na Europa ocidental,
28
Perromat, op. cit., p.60.
29
Zumthor, Essai de poétique médiévale.
30
Ibidem.
37
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entre os anos 500 e 700, de diversas obras clássicas gregas
e romanas – em Bizâncio (Constantinopla, atual Istambul,
na Turquia) e territórios de maior influência islâmica ao
sul e leste do continente essas obras permaneceram. Ao
substituir as obras julgadas prescindíveis (pagãs em sua
maioria) por outras de caráter religioso, aqueles que pas-
saram a deter tanto os meios de produção quanto os co-
nhecimentos para publicar e controlar os bens culturais
– a Igreja e os monges copistas medievais, no caso dos
livros – contribuíram para reduzir o cânone dos autores
da Antiguidade31. Nesse sentido é que se fala até hoje da
Idade Média como um período de apagão cultural, do-
minado por interesses cristãos, embora essa imagem seja
questionada faz tempo por historiadores como o francês
Patrick Boucheron, que lembra o período como a “adoles-
cência da modernidade, sua idade ingênua ou revoltada” e
diz que, ao olhar a dita “Idade das Trevas” mais de perto, é
possível ouvir o “tilintar estridente de um ruído alegre e
desordenado”32. Somente a partir dos séculos XIV e XV
é que certa tradição clássica seria reintegrada à tradição
europeia, através especialmente de regiões comerciais que
31
Para uma mostra de obras perdidas nesse período, ver Diringer, The
Book Before Printing: Ancient, Medieval and Oriental.
32
Em Boucheron, Como se revoltar? Ao examinar em detalhes, como
faz o historiador francês nesse pequeno livro sobre o ato de se revoltar
na Idade Média, podemos encontrar alguns fatos que apontam para
a sobrevivência de resquícios de uma certa tradição culta e de revolta
aos dogmas religiosos nesse período. É o caso também de obras de
Carlo Ginzburg como O queijo e os vermes e Os andarilhos do bem
e do que se convencionou chamar de micro-história. Infelizmente,
como pouca documentação dessa época sobreviveu, o resgate é um
trabalho árduo e lento.
38
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mantiveram influência asiática, islâmica e bizantina, caso
do sul da Península Ibérica e de regiões italianas como Si-
cília, Nápoles e Veneza.
39
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CAPÍTULO 2
CULTURA IMPRESSA
40
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Tudo o que me foi escrito sobre aquele
homem maravilhoso visto em Frankfurt
é verdade. Não vi Bíblias completas,
mas apenas uma série de cadernos não
costurados ou vários livros da Bíblia.
A tipografia era muito elegante e le-
gível, nem um pouco difícil de seguir
– Vossa Graça seria capaz de lê-la sem
esforço, e inclusive sem óculos.
Enea Silvio Bartolomeo Piccolomini,
futuro papa Pio II, em carta ao
cardeal Carvajal, 1455
Considerando que impressores, livrei-
ros e outras pessoas que nos últi-
mos tempos conquistaram a liberdade de
impressão, reimpressão e publicação,
fizeram que se imprimissem, reimprimis-
sem e publicassem livros e outros es-
critos sem o consentimento dos autores
ou proprietários desses livros e es-
critos, para o seu grande prejuízo, e
com demasiada frequência para a ruína
deles e de suas famílias: para evitar,
portanto, tais práticas para o futuro
e para incentivar os homens instruídos
a compor e escrever livros úteis; que
por favor de Vossa Majestade, possa
ser promulgado este Estatuto.
Estatuto de Anne, Inglaterra, 1710
41
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Não há motivo para dar agora um período
maior, de modo a nos obrigarmos a dá-
-lo novamente sucessivamente, confor-
me os anteriores forem expirando; se
esse projeto passar, ele irá em suma
criar um monopólio perpétuo, uma coisa
extremamente odiosa aos olhos da lei;
ele será uma grande obstrução para os
negócios, uma barreira para o apren-
dizado, que não retornará nenhum be-
nefício aos autores, mas sim uma taxa
pesada ao público, apenas para aumen-
tar os ganhos privados dos livreiros.
Parlamento inglês, negando o pedido
dos livreiros para aumentar a extensão
do prazo dos direitos autorais, 1735
O copyright pertence ao autor; o au-
tor, no entanto, não possui máquinas
de impressão; as máquinas pertencem
aos editores; assim, o autor necessita
do editor. Como regular essa necessi-
dade? Simples: o autor, interessado
em que a obra seja publicada, cede os
direitos ao editor por um determinado
período. A justificativa ideológica não
se baseia mais em censura, mas na ne-
cessidade do mercado.
Wu Ming, Notas inéditas sobre
copyright e copyleft, 2005
42
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I.
Por volta de 1455, o futuro papa Pio II, Enea Silvio Bar-
tolomeo Piccolomini, andava pelas ruas da região de
Frankfurt, na Alemanha, quando avistou uma vitrine com
vários cadernos impressos de um texto que conhecia mui-
to bem. Em carta ao cardeal Carvajal, ele assim relatou
o episódio: “Tudo o que me foi escrito sobre aquele ho-
mem maravilhoso visto em Frankfurt [sic] é verdade. Não
vi Bíblias completas, mas apenas uma série de cadernos
não costurados ou vários livros da Bíblia. A tipografia era
muito elegante e legível, nem um pouco difícil de seguir
– Vossa Graça seria capaz de lê-la sem esforço, e inclusive
sem óculos”33. A chamada “Bíblia de Gutenberg”, também
33
“All that has been written to me about that marvelous man seen
at Frankfurt is true. I have not seen complete Bibles but only a num-
ber of quires or various book of the Bible. The script was very neat
and legible, not at all difficult to follow – your grace would be able to
read it without effort, and indeed without glasses.” Disponível em:
43
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conhecida como “Bíblia de 42 linhas”, foi impressa pela
primeira vez em 1455 e teve entre 158 e 180 cópias. Con-
sistia do Velho Testamento Hebreu e do Novo Grego, tal
qual a Bíblia cristã é conhecida hoje, escritos em latim,
com 42 (em algumas, 40) linhas, impresso parte em per-
gaminho, parte em papel comum tamanho double folio,
com duas páginas em cada lado do papel (quatro páginas
por folha).
Nascido em Mainz, sudeste da Alemanha, em 1398, o
homem chamado Johannes Gensfleisch zur Laden zum
Gutenberg foi joalheiro e hábil negociante antes de traba-
lhar com impressão e desenvolver o processo que facilita-
ria a expansão das ideias de maneira muito mais rápida do
que existia até então. O sistema de tipos móveis com que
Gutenberg imprimiu a Bíblia, e que se popularizou a par-
tir desse período, não era – como nunca é – uma invenção
a partir do nada. O processo de produção manual de li-
vros passava, desde o século XII, a ter modificações con-
sistentes; os papéis voltaram a circular pela Europa, e as
prensas, grandes blocos de madeira que adquiriam tinta
e gravavam em uma superfície, começaram a tornar a im-
pressão um processo industrial mais rápido que as mãos
dos monges copistas e mais baratos que os antigos livros
de papiro da Antiguidade34. As contribuições de Guten-
http://self.gutenberg.org/articles/Gutenberg_Bible. Tradução minha.
34
Na China, há registros de usos de formas de impressão semelhantes
às de Gutenberg desde o século XI; Bi Sheng, em 1040, havia usado
os tipos móveis para imprimir em argila, material pouco resistente e
facilmente quebrável; Wang Zhen, em 1298, trabalhou com um sistema
móvel, ainda esculpido em madeira, um pouco mais resistente que a
argila. A impressão em madeira, técnica conhecida como xilogravura,
era amplamente utilizada na China desse período e consta que, dada a
44
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berg ao sistema já usado na época para impressão foram
principalmente a invenção de um processo de produção
em massa de tipo móvel, feito a partir de uma liga que in-
cluía chumbo, estanho e cobre e era passível de ser reutili-
zável; o uso de tinta à base de óleo, que se adaptava melhor
a um papel mais macio e absorvente testado por ele; e o
uso de um modelo de prensa que era similar à de parafuso
utilizada na agricultura do período, portanto um objeto
que era mais familiar ao cotidiano agrário da região.
O surgimento do processo de produção em massa de
publicações, que hoje chamamos imprensa, acelerou um
processo de popularização da cultura escrita35. Os avanços
propiciados pela impressão facilitaram a difusão de ideias
de todo tipo, não apenas as de cunho litúrgico e religioso
que predominavam na época. A circulação crescente de
publicações potencializou a criação de leitores e passou
a mudar os hábitos de fruição de bens culturais. Foi um
início, aos poucos, da troca da experiência coletiva oral,
baseada na performance de quem a apresentava e no con-
teúdo que se quer transmitir, pela experiência individual,
silenciosa e isolada, gravada em papel de forma mais dura-
peculiaridade dos caracteres chineses, continuava sendo a mais eficien-
te e barata forma de imprimir. Ver Briggs; Burke, Uma história social da
mídia: de Gutenberg a Diderot; e Tsien Tsuen-Hsuin; Joseph Needham.
Paper and Printing: Science and Civilisation in China, v. 5, p.158.
35
É interessante notar aqui, como faz Eisenstein, em The Printing Re-
volution in Early Modern Europe, e Martins, em Autoria em rede, que
a passagem do livro manuscrito para o livro impresso não se deu de
forma imediata; “ao contrário, foi um processo de negociação e mixa-
gem entre duas linguagens, o que reforça a teoria de que a criação de
um novo meio se dá pela remediação de um meio anterior” (Martins,
op. cit., p.68).
45
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doura e fixa do que aquela ao ar livre, acostumada à liber-
dade de acréscimos, apropriações e improvisos diversos
de quem a apresentava. “A tendência a atitudes mais indi-
vidualistas foi estimulada pela possibilidade de impressão,
que ajudou ao mesmo tempo a fixar e difundir textos”36.
A ampliação da circulação de publicações impressas e
o estímulo a um individualismo propiciado pela possibili-
dade de leitura solitária se aglutinaram a um humanismo
renascentista para também modificar a ideia de autoria de
até então. Se, durante boa parte da Idade Média, a cultura
era oral e a autoria era coletiva e difusa, expressão de um
desejo divino ou arraigado em uma dada cultura popular,
e os livros tinham sua circulação restrita à produção ar-
tesanal das igrejas, agora havia elementos para a transfor-
mação da concepção do que seria o autor de uma obra. Ao
deslocar o homem para o centro (antropocentrismo) do
mundo, o humanismo passava a valorizar a noção de ori-
ginalidade e individualidade, o que era expresso no apreço
ao estilo e no reconhecimento de uma abordagem inovado-
ra de cada autor, em contraponto à forte dependência tex-
tual da tradição típica das obras da Idade Média37. Tendo
um autor individual identificado, as publicações também
passavam a se tornar mais fechadas, com menor abertura
a acréscimos ou comentários, como até então costumava
ocorrer nas marginálias dos livros medievais.
Antes da popularização da impressão por tipos móveis,
a produção de um livro era uma empreitada difícil, cara e
artesanal, praticamente restrita ao âmbito da Igreja Católi-
ca e seus monges copistas. Após Gutenberg, o livro podia
ser impresso em escala industrial, por comerciantes e em-
36
Briggs; Burke, op. cit., p.140.
37
Ibidem, p.116.
46
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presários que tivessem dinheiro para comprar as máquinas
necessárias e organizar seus modelos de produção, o que já
era uma mudança considerável no sistema de circulação de
conhecimento da época: possibilitava a difusão de ideias,
bens culturais e informações para além do controle da Igre-
ja. Não à toa, é nesse período que ocorre a Reforma Pro-
testante, movimento religioso que questionou os dogmas
do catolicismo da época, inaugurado a partir das famosas
95 Teses escritas por Martinho Lutero em Wittenberg, na
Alemanha, em outubro de 1517. As pequenas oficinas de
impressão, muitas vezes clandestinas, foram as artérias de
difusão das ideias reformistas por toda a Europa.
A galáxia (ou revolução) aberta por Gutenberg intensi-
ficou também a ideia de um mercado para bens culturais e
deu a estes características determinadas conforme as con-
dições de produção em massa. Imprimir um livro ainda
era um processo caro, que necessitava de um montante
considerável de dinheiro para existir. Mas, com a novida-
de da imprensa por tipos móveis, tornou-se também um
negócio lucrativo; um único livro, que demoraria meses
para ser produzido artesanalmente nos monastérios, pas-
sou a virar 500, 1.000 ou mais exemplares impressos em
poucos dias e distribuído nas principais cidades da época,
o que gerou uma potente rede que atraiu banqueiros para
financiar os impressores, vendedores para comercializar
as obras, caixeiros-viajantes para transportá-las e novos
leitores, muitas vezes alfabetizados a partir das publica-
ções que passaram a circular no período.
Como a Igreja e as monarquias europeias não queriam
perder o controle da propagação de ideias, os conflitos
foram inevitáveis. No primeiro caso, o medo do espalha-
mento dos princípios da Reforma Protestante ocasionou
47
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perseguições a diversos impressores da época, o que anos
depois gerou a criação, em 1559, do Index, lista de publi-
cações consideradas heréticas e que eram proibidas pela
Igreja Católica, com seus editores cassados38. A criação de
um mercado de publicação, por sua vez, fez os governos
monárquicos da época instituírem regras para controlar
as relações entre quem escrevia um livro, quem vendia e
quem o lia. Até então, qualquer pessoa que tivesse acesso
a uma máquina de impressão ou a alguém que a tivesse
podia imprimir cópias do que bem entendesse sem nin-
guém reivindicar legalmente exclusividade de produção e
circulação das obras a serem impressas. Aliás, era comum
que uma obra, bem vendida em uma dada região, fos-
se publicada como novidade em outra a partir de tradu-
ções e adaptações diversas sem nenhum tipo de contro-
le. Numa época em que, na Europa, Portugal, Espanha,
Inglaterra e França começavam a se organizar enquanto
Estados-nações e as atuais Alemanha, Itália, Bélgica, Áus-
tria, Polônia, entre outras, eram divididas em centenas de
cidades-Estados independentes, não havia legislações que
regulassem a circulação das obras em todas essas regiões;
quando muito, cada cidade ou região contava com suas
próprias regras, que não valiam para outras. Não havia
nenhuma distinção entre o que seria uma obra “oficial” e
uma “pirata”.
38
Promulgada pelo papa Paulo IV, Gian Pietro Carafa, seria uma lista
mantida até o século XX, só sendo suspensa em 1966. Sobre as ações
de censura e perseguição aos editores e pastores radicais da Reforma
Protestante por Carafa, o grandioso romance Q: o caçador de hereges,
de Luther Blisset (1999), publicado no Brasil em 2002 pela Conrad, é
uma excelente fonte.
48
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II.
Coube à República de Veneza e à Inglaterra os primeiros
trabalhos mais consolidados de oferecer licenças exclusi-
vas a alguns editores para a publicação de determinados
livros. Na cidade italiana, conhecida pelo ativo comércio
marítimo com asiáticos, árabes, bizantinos, africanos e pela
circulação diversa de nobres, banqueiros, marinheiros,
marginais e vendedores dos mais variados locais, em 1486
foi estabelecido o primeiro privilégio para a publicação ex-
clusiva de um livro. A obra escolhida, Rerum venetarum
ab urbe condita opus, é um compêndio de história da Se-
reníssima, como era conhecida Veneza, escrita por Marcus
Antonius Coccius Sabellicus, historiador italiano, a quem
o conselho que geria a cidade concedeu uma permissão es-
pecial para escolher um único editor do livro no território
veneziano39. Alguns anos depois, os privilégios reais a de-
terminados impressores se consolidaram para mais obras
em Veneza (1498) e se propagaram também para outras
cidades italianas, como Florença e Roma, assim como na
França e outras cidades-Estados alemãs, tendo um mesmo
objetivo: garantir a certos impressores a exclusividade de
publicação de determinados livros, a fim de que somente
eles pudessem lucrar com sua comercialização40.
Na Inglaterra, 1557 é o ano das primeiras licenças
dadas a impressores, concedidas pela rainha Mary a um
grupo de Londres conhecido como Stationers Company,
39
Em Armstrong, Before Copyright: The French Book-Privilege System
1498-1526.
40
Em Martins, op. cit., p.38, e também Woodmansee, The Author, Art,
and the Market: Rereading the History of Aesthetics.
49
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formado ainda em 140341 por artesãos envolvidos na cir-
culação e venda de livros e outros materiais de impressão.
Por serem um dos primeiros grupos organizados a traba-
lhar no novo negócio, pressionaram a monarquia inglesa
para ter exclusividade de produção e venda de publica-
ções, e conseguiram um privilégio que, na prática, deu à
Stationers Company o monopólio da cópia e circulação
de livros. A partir de então, passaram a poder ser impres-
sas legalmente na Inglaterra somente obras que possuís-
sem autorização real e que estivessem listadas no registro
oficial em nome de um editor ligado à companhia. Era
um direito de copiar (right to copy) garantido a alguns
impressores, que, com isso, tornavam-se os únicos com
privilégios sobre determinadas obras. Não havia menção
a direitos patrimoniais, morais ou estéticos dos autores
de uma determinada obra.
Depois de um século e meio de monopólio, a Stationers
Company foi cada vez mais ameaçada pelos livreiros de
províncias afastadas de Londres – escoceses e irlandeses
principalmente. A companhia então pediu ao Parlamento
inglês uma nova lei para alargar o seu direito exclusivo
sobre a cópia de livros. A resposta foi a criação do Estatu-
to de Anne, aprovado em 1710 pelo Parlamento britâni-
co e considerado a primeira lei de copyright do mundo e
base para uma parte das legislações até hoje, mais de três
séculos depois. Foi um duro golpe contra o privilégio da
Stationers Company, porque a lei proclamou os autores
(e não mais os editores) como os proprietários das suas
obras. O texto da lei começava assim:
41
Como consta na página oficial da organização, até hoje em ativida-
de, disponível em: https://www.stationers.org/company/history-and-
-heritage.
50
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Considerando que impressores, livreiros e outras pesso-
as que nos últimos tempos conquistaram a liberdade de
impressão, reimpressão e publicação, fizeram que se im-
primissem, reimprimissem e publicassem livros e outros
escritos sem o consentimento dos autores ou proprietá-
rios desses livros e escritos, para o seu grande prejuízo,
e com demasiada frequência para a ruína deles e de suas
famílias: para evitar, portanto, tais práticas para o futuro
e para incentivar os homens instruídos a compor e escre-
ver livros úteis; que por favor de Vossa Majestade, possa
ser promulgado este Estatuto.42
Antes exclusividade dos membros da Stationers Com-
pany, os direitos sobre a impressão e reimpressão de livros
passaram a ser do autor – ou de outra pessoa para quem
ele escolhesse licenciar – assim que fosse publicado. Uma
limitação importante era que a lei dava esse direito apenas
por um certo tempo: 14 anos, renovável apenas uma vez
se o autor estivesse vivo; e 21 anos para obras publicadas
até aquele momento. No final desse período, o copyright
expirava e a obra então era livre para ser publicada por
qualquer um. A punição para quem não cumprisse o esta-
tuto era a destruição das cópias e o pagamento de multas
ao proprietário dos direitos.
42
No original em inglês: “Whereas Printers, Booksellers, and other
Persons, have of late frequently taken the Liberty of Printing, Reprin-
ting, and Publishing, or causing to be Printed, Reprinted, and Published
Books, and other Writings, without the Consent of the Authors or Pro-
prietors of such Books and Writings, to their very great Detriment, and
too often to the Ruin of them and their Families: For Preventing therefore
such Practices for the future, and for the Encouragement of Learned Men
to Compose and Write useful Books; May it please Your Majesty, that it
may be Enacted this Statute”. Disponível em: https://en.wikipedia.org/
wiki/Statute_of_Anne. Tradução minha.
51
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Para alguns pesquisadores e historiadores de direi-
to autoral, a intenção da lei era derrubar o monopólio
da Stationers Company – e não dar os direitos da cópia
e impressão ao autor. Havia uma pressão de diversos la-
dos para cercear o monopólio da companhia, acusados de
“vender a liberdade da Inglaterra para garantir seus ga-
nhos”43. O escritor inglês John Milton, autor de Paraíso
perdido (1667), dizia à época que os impressores da Sta-
tioners Company eram “monopolizadores do negócio de
venda de livros, homens que nunca tinham trabalhado
em profissões honestas e desprezavam o aprendizado”44.
O notório poder que os livreiros exerciam sobre a disse-
minação do conhecimento através dos monopólios estaria
prejudicando sua livre propagação.
Ao aprovar o Estatuto de Anne, o Parlamento britânico
também buscava aumentar a competição entre os livreiros
e, com isso, em tese, fomentar a maior circulação de publi-
cações. Nessa perspectiva, limitar o período do copyright
foi necessário para garantir que as publicações iriam tor-
nar-se abertas para qualquer distribuidor publicá-las após
um certo tempo. “A definição de um tempo para as obras
existentes de apenas 21 anos era uma forma de lutar con-
tra o poder dos livreiros, uma forma indireta de garantir a
competição entre os distribuidores e, portanto, a constru-
ção e ampliação da cultura”45.
43
Como conta o advogado e professor Lawrence Lessig em Cultura
livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cul-
tura e controlar a criatividade, p.90.
44
Wittenberg, The Protection and Marketing of Literary Property, cita-
do em Lessig, op. cit., p.80.
45
Lessig, op. cit., p.80.
52
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III.
Promulgado na Inglaterra, o fato é que o Estatuto de Anne
não foi imediatamente obedecido. Nasceu como uma lei
que, talvez pela novidade da concepção que introduziu,
teve suas interpretações disputadas nos tribunais ain-
da por muitas décadas, o que dá uma amostra, relevante
ainda hoje, de quais interesses estão em jogo quando se
fala nos confrontos entre produtores, intermediários e pú-
blico. A Stationers Company e outros livreiros surgidos
depois ignoraram a legislação e continuaram a insistir no
direito perpétuo de controlar suas publicações como bem
entendessem por décadas.
Em 1735, já passados os primeiros 21 anos de expira-
ção de obras segundo o Estatuto (1710 + 21), os livreiros
buscaram persuadir o Parlamento a estender os períodos,
para legalizar a exploração comercial das obras por mais
tempo. O texto em que o Parlamento comunicou sua deci-
são – negativa – traz um certo zeitgeist (espírito do tempo)
de crítica aos monopólios, sobretudo os da Coroa inglesa,
bastante presente no país nos séculos XVII e XVIII. Vale
lembrar que a chamada Guerra Civil Inglesa (1642-1651),
raro período em que a Inglaterra não teve um monarca
como seu principal governante, foi em parte ocasionada
pelas práticas da Coroa em sustentar monopólios:
Não há motivo para dar agora um período maior, de
modo a nos obrigarmos a dá-lo novamente sucessi-
vamente, conforme os anteriores forem expirando; se
esse projeto passar, ele irá em suma criar um monopó-
lio perpétuo, uma coisa extremamente odiosa aos olhos
da lei; ele será uma grande obstrução para os negócios,
uma barreira para o aprendizado, que não retornará ne-
nhum benefício aos autores, mas sim uma taxa pesada
53
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ao público, apenas para aumentar os ganhos privados
dos livreiros.46
Sem conseguir a extensão do período inicial de copyright,
os editores ainda seguiram em disputas nos tribunais
ingleses por algumas décadas. Na defesa nos processos
movidos contra uns e outros, passaram também a evocar
os direitos que os autores teriam sobre as obras como es-
tratégia de argumentação para garantir a exploração co-
mercial de suas publicações por mais tempo. Usavam de
artimanhas jurídicas para isso, como mostra um dos mais
famosos casos desse período, Millar vs. Taylor, em 1769.
Millar era um livreiro atuante em Londres associado à
Stationers Company que, em 1729, comprou os direitos
de cópia para o poema do escritor James Thomson As es-
tações, pagando à época £105. Após o término do período
de copyright, 14 anos segundo o Estatuto de Anne, Robert
Taylor, outro editor inglês, começou a vender uma edição
dos poemas nos mercados londrinos que competia com
a de Millar – que não gostou e, com apoio da companhia
da qual fazia parte, processou Taylor. A argumentação ju-
rídica usada no processo foi a de que Millar, tendo pago o
autor, detinha o direito perpétuo sobre a obra.
Um conhecido juiz inglês, Lorde Mansfield, deu ga-
nho de causa a Millar. No seu entender, qualquer proteção
dada pelo Estatuto de Anne aos livreiros não anulava os
direitos da common law inglesa, um sistema jurídico em
que decisões judiciais e leis precedentes – chamadas juris-
prudências – tinham maior peso que atos legislativos ou
executivos, caso do estatuto. Nesse sistema, uma decisão a
ser tomada num caso depende de outras medidas adota-
46
Citado em Lessig, op. cit., p.81.
54
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das para casos anteriores, ficando a cargo do juiz a decisão
final. Caso o juiz não veja uma jurisprudência adequada
para a situação, ele então tem o poder de criar uma e esta-
belecer um precedente, que passa a ser chamado de com-
mon law e vincula todas as decisões futuras.
No caso Millar vs. Taylor, o direito perpétuo dos edi-
tores de copiar, imprimir e reimprimir uma obra foi visto
como uma common law pelo juiz Mansfield. Alegava que
essa lei garantiria uma proteção do autor contra futuros
editores “piratas”, o que, na interpretação usada no proces-
so, poderia impedir que a segunda edição de As estações
feita por Taylor fosse publicada sem a permissão do editor
da primeira, Millar. A decisão do juiz Mansfield tornava
inútil o Estatuto de Anne e dava aos livreiros um direito
perpétuo de controlar a publicação de todos os livros de
que detivessem os copyrights.
Cinco anos depois, porém, a decisão foi revogada em
outro caso famoso da época, Donaldson vs. Beckett47.
Millar morreu pouco depois de sua vitória e vendeu seu
espólio para um sindicato de distribuidores de livros, que
incluía um indivíduo chamado Thomas Beckett. Do ou-
tro lado, Alexander Donaldson era um livreiro escocês
que publicava edições baratas de obras cujo período do
copyright tivesse expirado, o que o fazia ser considerado
um editor “pirata” pelos ingleses de Londres. Após a mor-
te de Millar, o escocês lançou uma edição não autorizada
dos trabalhos do poeta Thomson; Beckett, baseando-se na
decisão anterior favorável a Millar, obteve um mandado
judicial contra ele. Donaldson então apelou para a Câma-
ra dos Lordes, uma espécie de Suprema Corte da época
47
Detalhado em Lessig, op. cit., p.83.
55
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que tomava decisões que não raro mobilizavam “torcidas”
em ambos os lados. Por uma maioria de dois para um, a
Câmara dos Lordes decidiu por Donaldson contra o argu-
mento dos copyrights perpétuos – que, cinco anos antes,
o juiz Mansfield tinha acatado em prol de Millar. Os lor-
des agora aceitaram a alegação dos advogados do livreiro
escocês: quaisquer direitos que tenham existido antes, ba-
seados na common law, haviam terminado com o Esta-
tuto de Anne, que então passava a ser a única regulação
jurídica para o direito de cópia de publicações impressas.
Após o período definido pelo estatuto (14 ou 21 anos, de-
pendendo do caso) ter expirado, os trabalhos que estavam
originalmente protegidos – os de autores como William
Shakespeare e John Milton, por exemplo – perdiam tal
proteção e podiam ser usados, adaptados e comercializa-
dos livremente, pois entravam em domínio público – uma
noção que, embora existente desde os gregos e romanos48,
passou nesse momento a ser validada pela primeira vez na
história do sistema jurídico anglo-saxão.
48
Há diferentes versões da origem da ideia de domínio público no Oci-
dente. Uma das mais aceitas remete aos direitos de propriedade em
Roma, onde havia definições de res nullius (“coisas que não podem
ser apropriadas”), res communes (“coisas que poderiam ser comumente
apreciadas pela humanidade, como o ar, a luz solar e o oceano”), res
publicae (“coisas que foram compartilhadas por todos os cidadãos”) e
res universitatis (“coisas que eram de propriedade dos municípios de
Roma”). O termo tem origem nesses conceitos e foi disputado com
outros semelhantes, como publici juris ou propriété publique, no século
XVIII, até se espalhar e ser adotado legalmente a partir da Convenção
de Berna (ver próximo capítulo). Sobre a origem do domínio públi-
co, ver Huang, On Public Domain in Copyright Law, Frontiers of Law
in China, v.4, p.178-95, e Torremans, Copyright Law: a Handbook of
Contemporary Research.
56
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IV.
A noção de copyright que surgiu no tempo do Estatuto
de Anne era específica: proibia a outros reeditar um livro
impresso. Era um direito ligado a um bem que, por sua
vez, se relacionava diretamente a uma tecnologia que o
produzia – na época, máquinas de impressão de tipos mó-
veis. Na Inglaterra do século XVIII, o copyright ainda se
limitava a determinar quem, e por quanto tempo, poderia
copiar e distribuir um bem cultural no formato impresso.
Não mencionava direitos aos autores, como a remunera-
ção pela obra ou a possibilidade de adaptação desta, nem
citava outras artes ou suportes. Embora os livreiros ingle-
ses evocassem a proteção do autor em suas defesas jurídi-
cas, tratava-se mais de uma artimanha para proteger inte-
resses de certos grupos que começavam a se industrializar
do que um sistema jurídico de proteção a quem criava49.
Para o coletivo italiano Wu Ming, a lei de copyright no
Estatuto de Anne surgiu da necessidade de censura pre-
ventiva e restrição do acesso aos meios de produção cul-
tural – da contenção, portanto, da circulação de ideias. A
intenção dos impressores ao buscar a construção do Esta-
tuto de Anne pelo Parlamento inglês seria a de reconhe-
cer a legitimidade dos seus interesses e criar uma legisla-
ção que trabalhasse a seu favor. O argumento aqui é: “o
copyright pertence ao autor; o autor, no entanto, não pos-
sui máquinas de impressão; as máquinas pertencem aos
editores; assim, o autor necessita do editor. Como regular
essa necessidade? Simples: o autor, interessado em que a
obra seja publicada, cede os direitos ao editor por um de-
49
Wu Ming, Notas inéditas sobre copyright e copyleft, op. cit.
57
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terminado período. A justificativa ideológica não se ba-
seia mais em censura, mas na necessidade do mercado”50.
A criação de um sistema que regulasse não apenas os di-
reitos exclusivos de copiar, imprimir e vender uma dada obra,
mas também a propriedade das ideias, viria praticamente no
mesmo período, mas do outro lado do canal da Mancha.
50
Nimus, Copyright, copyleft e os creative anti-commons, p.42.
58
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CAPÍTULO 3
CULTURA
PROPRIETÁRIA
60
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Sente-se que não pode haver qualquer
relação entre a propriedade de uma obra
e a de um campo, que pode ser cultiva-
do por apenas um homem, ou de um móvel
que serve apenas a um homem; por conse-
guinte, a propriedade exclusiva é fun-
dada sobre a natureza da coisa. Assim,
a propriedade literária não é deriva-
da da ordem natural, e defendida pela
força social, mas é uma propriedade
fundada pela sociedade mesma. Não é um
verdadeiro direito, é um privilégio.
Marquês de Condorcet, Fragmentos
sobre a liberdade de imprensa, 1776
Se a natureza produziu uma coisa menos
suscetível de propriedade exclusiva que
todas as outras, essa coisa é ação do po-
der de pensar que chamamos de ideia, que
um indivíduo pode possuir com exclusivi-
dade apenas se a mantiver para si mesmo.
Mas, no momento em que a divulga, ela
é forçosamente possuída por todo mundo
e aquele que a recebe não consegue se
desembaraçar dela. Seu caráter peculiar
também é que ninguém a possui de menos,
porque todos os outros a possuem inte-
gralmente. Aquele que recebe uma ideia
de mim recebe instrução para si sem que
haja diminuição da minha, da mesma forma
que quem acende um lampião no meu, recebe
luz sem que a minha seja apagada.
Thomas Jefferson, em carta a
Isaac McPherson, 1813
61
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62
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I.
A noção de que alguém teria a posse sobre uma ideia, tor-
nada comum na sociedade ocidental nos séculos seguin-
tes, tanto à época quanto hoje, ainda tem algo de estranho:
como você pode ser dono de algo que eu continuo tendo?
Isso é roubo por quê? Entendemos mais facilmente a ideia
de roubo quando, por exemplo, pego uma pimenta da co-
zinha de sua casa. Estou pegando algo, um vidro contendo
pimenta, e, após esse ato, você não vai mais ter essa pi-
menta na sua cozinha. Mas o que estou roubando se, após
provar a sua pimenta em um prato que você fez, eu tomo a
ideia de usar essa pimenta em um prato e vou à feira com-
prar um vidro de pimenta igual ao que você possui? O que
estaria roubando aqui51?
Sabemos que ideias, histórias, canções, poemas, peças
de teatro não têm a mesma natureza de objetos materiais
como terras, casas, veículos, moinhos, arados, joias. Po-
demos, por exemplo, escutar a reprodução de uma músi-
51
Essa comparação foi remixada de Lessig, op. cit., p.95.
63
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ca por algum aparelho em um dado lugar ao mesmo tem-
po que o criador da música a toca em outro – e isso não
priva nem atrapalha a audição de ambos. “Aquele que re-
cebe uma ideia de mim recebe instrução para si sem que
haja diminuição da minha, da mesma forma que quem
acende um lampião no meu, recebe luz sem que a mi-
nha seja apagada”, disse Thomas Jefferson, considerado
um dos pais fundadores dos Estados Unidos, presidente
do país entre 1801 e 1809, em uma carta de 181352. Se
as ideias são livres, não concorrentes, virais, associadas e
combinadas umas às outras sejam quais forem seus terri-
tórios ou origens, modificando-se de acordo com o uso e
a criatividade de cada um tal qual o fogo, por que trans-
formá-las em propriedade intelectual53?
52
Na versão original, em inglês: “He who recieves an idea from me,
recieves instruction himself, without lessening mine; as he who lights his
taper at mine, recieves light without darkening me”. Carta de Thomas
Jefferson a Isaac McPherson, 1813. Disponível em: https://founders.
archives.gov/documents/Jefferson/03-06-02-0322. “Essa passagem é
muito citada como argumento contrário à propriedade intelectual, mas
a intenção de Jefferson é apenas mostrar que a propriedade intelectual
não é natural – o que não impede [e ele é um defensor disso] que ela
seja instituída pela sociedade” (Ortellado, Porque somos contra a pro-
priedade intelectual, p.29).
53
As disputas nos tribunais ingleses em torno do copyright no século
XVII, citadas no capítulo anterior, usavam a expressão propriedade li-
terária. A expressão em inglês intellectual property passa a ser usada al-
gum tempo depois; segundo o Oxford English Dictionary; seu primeiro
registro é o de um artigo de 1769 num periódico conhecido na época,
Monthly Review, ao passo que o uso com o significado que conhecemos
hoje data de 1808, como título de uma coleção de ensaios: New-England
Association in favour of Inventors and Discoverers, and Particularly for
the Protection of Intellectual Property. Fonte: Oxford English Dictionary.
64
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O mesmo Jefferson respondeu à época: “para que os
criadores de ideias não fiquem desestimulados de criar e
expressar suas ideias, é necessário um estímulo material
a quem ‘cria’ ou ‘expressa as ideias’. Por serem assimiladas
por todos que a recebem, as ideias devem ser especialmente
protegidas, para que toda vez que alguém as usa, o ‘criador’
tenha sua recompensa”54. Tendo Jefferson como um dos ar-
tífices, a Constituição dos Estados Unidos, promulgada em
1789, 79 anos depois do Estatuto de Anne e no mesmo ano
das primeiras leis de direito autoral na França, já traz em
uma de suas cláusulas: “O congresso deve ter o poder de
promover o progresso das ciências e das artes úteis assegu-
rando aos autores e inventores, por um período limitado, o
direito exclusivo aos seus escritos e descobertas”55.
As primeiras legislações que buscam regular a pro-
priedade intelectual estabelecem legalmente aquele que
ainda é o principal embate hoje: conciliar a remuneração
dos criadores com o direito de acesso às criações artís-
ticas. Ao estabelecer o produto de uma dada criação in-
telectual como uma mercadoria com valor financeiro de
troca, o pagamento material por uma certa ideia vai, em
muitos casos do século XIX em diante, entrar em con-
flito com a manutenção de um amplo domínio público
de ideias comum à humanidade. A questão estabelecida
nessa época ecoa ainda hoje: até que ponto a introdução
do direito à propriedade intelectual, em vez de promover,
não restringe o progresso do conhecimento, da cultura e
da tecnologia?
54
Thomas Jefferson, citado por Ortellado, op. cit., p.29.
55
Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição Ameri-
cana, art. I, § 8, cl. 8.
65
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II.
Há diferenças substanciais entre as características da pro-
priedade intelectual e da propriedade material. Muitas
delas foram estabelecidas no período permeado de revo-
luções, circulação de ideias e criações tecnológicas que vai
entre meados do século XVIII e o final do XIX, momento
em que a discussão em torno da propriedade passava por
um período de transformações na Europa. A decadência
do sistema feudal, a ascensão da burguesia comercial, a
proliferação de ideias a partir de publicações impressas,
o crescimento do individualismo, as navegações que ori-
ginaram a invasão da América, entre outras questões re-
lacionadas, foram importantes para se discutir o status da
propriedade que até então, literalmente, reinava nos países
europeus. A maior parte das terras e de bens materiais até
o século XVIII pertencia às muitas monarquias que co-
mandavam o continente europeu, à Igreja Católica, aos
nobres de cada região e, em menor escala, às comunidades
que geriam de forma coletiva suas terras e outros recursos
naturais, como bosques e lagos. As diversas guerras na In-
glaterra do século XVII e a Revolução Francesa no final do
século XVIII tiveram como um de seus motes principais
a quebra da relação senhor-vassalo que havia na gestão
das propriedades materiais até então e, em consequência,
o estabelecimento de novas leis que freassem o controle
real das terras e regulassem a propriedade.
Uma das formas de legitimar intelectualmente a pro-
priedade privada se deu com as ideias liberais, que defen-
diam o individualismo e a limitação do poder do Estado
absolutista da época. Um dos mais importantes divulga-
dores dessa ideias, o inglês John Locke (1632-1704) fa-
66
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lava que a propriedade, assim como o direito à vida e à
liberdade, era um direito natural, ou seja, inerente ao ho-
mem56, estabelecido por Deus quando da criação do mun-
do. Locke dizia que, como fruto legítimo de seu trabalho,
cada homem teria direito a uma propriedade; “qualquer
coisa que ele [o homem] não retire do estado com que a
natureza a promoveu e deixou, mistura-a ele com seu tra-
balho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua
propriedade”57. Como limite a essa propriedade, sinalizou
para a necessidade de que as coisas nesse “estado com que
a natureza a promoveu” restassem de modo que fossem
“suficientes aos outros, em quantidade e qualidade”. Aqui
já está o embrião dos embates modernos a serem feitos
entre público e privado no direito de propriedade e em
torno do conceito de comum58.
Ao defender a propriedade como um direito natural,
principalmente em Dois tratados sobre o governo (1689),
o filósofo inglês tornava a noção de propriedade essen-
cial para o desenvolvimento da liberdade individual, uma
56
Locke falava desse direito como exclusivo de uma pessoa do gênero
masculino, ignorando as mulheres, tal como seus antepassados da Anti-
guidade e da Idade Média e como continuaria a ocorrer até, pelo menos,
a conquista dos primeiros direitos civis pelas mulheres, no século XIX.
57
Locke, Dois tratados sobre o governo, p.409.
58
Locke usa aqui a palavra “comum” (commons) de modo similar ao
res communes romano, no que é um dos primeiros registros próximos à
ideia do comum que conhecemos hoje, como “coisas que poderiam ser
comumente apreciadas e cuidadas pela humanidade”. Será o mesmo co-
mum que, menos de dois séculos depois, Karl Marx vai discutir em Os
despossuídos, uma coletânea de textos de 1842 que trata do direito sobre
o uso da terra a partir do furto da madeira, uma questão importante
na Alemanha da época. E que será relacionado aos bens intelectuais e
digitais, como veremos no Capítulo 5, “Cultura livre”, deste livro.
67
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ideia que seria chave para que a burguesia em ascensão se
libertasse das amarras sociais impostas pelas monarquias
absolutistas, que dificultavam a mobilidade social e o livre
comércio. A noção de propriedade privada espalhada por
Locke ganhou influência e se propagou como aquela que
substituiria, no pensamento ocidental da época, a concep-
ção feudal de propriedade, real, hereditária e imutável. Seria
usada também como base ideológica para a construção do
entendimento de propriedade privada material como fruto
do trabalho e um direito do homem que se espalharia nas
décadas e séculos seguintes, sendo constante até hoje.
Durante o século XVII e XVIII, a discussão sobre pro-
priedade fermentava também na França, a partir das ideias
liberais e em debates envolvendo filósofos iluministas do
período, como Rousseau, Diderot e Voltaire. Assim como
a Inglaterra, Espanha e outros países governados por mo-
narquias na Europa da época, a França tinha seu sistema
de privilégios, dado pelos reis para determinados grupos
profissionais – entre eles o de impressores, estabelecidos
desde meados do século XVI. Em 1777, a monarquia fran-
cesa concedeu os chamados “privilégios do autor” (privilè-
ges d’auteur), que, diferente dos “privilégios dos editores”
(privilèges en librairie), já existentes, não tratava apenas do
período e da forma de comercialização das obras (como o
copyright inglês estabelecido pelo Estatuto de Anne), mas
de reconhecimento perpétuo de propriedade das ideias. É
considerado um primeiro – embora ainda incipiente – di-
reito concedido aos autores, fruto da aplicação da noção de
propriedade privada como direito natural também às ideias.
Entre 1763 e 1764, sob encomenda da comunidade dos
editores parisienses, à época preocupada com a possível
supressão dos privilégios editoriais que lhes garantiam
68
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a exclusividade sobre as obras, o francês Denis Diderot
(1713-1784) escreve a chamada Carta sobre o comércio
do livro. O texto busca aproximar a propriedade literária
(como ainda era chamada nesse período também na Fran-
ça) à de bens materiais e defender a propriedade perpétua
dos autores e, por extensão, dos editores, sobre as criações
“do espírito humano”. Diz:
Uma obra não pertence a seu autor tanto quanto sua casa
ou suas terras? Não pode ele alienar para sempre sua pro-
priedade? Seria permitido, por qualquer razão ou pretex-
to que seja, espoliar aquele que livremente o substitui em
seus direitos? Esse substituto não merece ter para esse
direito toda proteção que o governo concede aos pro-
prietários contra os outros tipos de usurpadores?59
Diderot, que havia editado junto com D’Alembert a pri-
meira enciclopédia entre 1751 e 1772, também defendia a
extensão do direito de autor aos seus “substitutos”, os edi-
tores, que, em sua formulação, compram legitimamente
as obras de seus criadores, tendo assim os direitos sobre
elas. Era um discurso que tomava emprestado de Locke
a noção de direito à propriedade como natural e buscava
aplicá-la também aos bens intelectuais, o que conferia ao
criador uma propriedade absoluta e inviolável sobre sua
obra, por tempo indeterminado. Também era um pensa-
mento que estava de acordo com a burguesia comercial
e industrial da época, que buscava trocar o controle real
exercido através da concessão de privilégios por outro, ba-
seado no direito natural e exercido pelo mercado.
Embora encontrassem acolhida na sociedade francesa
da época, as ideias de Diderot sobre os direitos de autor
59
Diderot, Carta sobre o comércio do livro, p.52.
69
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tinham oposição mesmo dentro do liberalismo predo-
minante no meio intelectual. Marie Jean Antoine Nicolas
de Caritat, conhecido como marquês de Condorcet
(1743-1794), discordava da ideia de o autor ser o legíti-
mo proprietário de suas obras por tempo indeterminado.
Em um livro chamado Fragmentos sobre a liberdade de im-
prensa (1776), Condorcet ressalta a importância do inte-
resse público, critica a ideia do monopólio comercial dos
editores e afasta a ideia de equiparar propriedade literária
às demais formas de propriedade material.
Sente-se que não pode haver qualquer relação entre a
propriedade de uma obra e a de um campo, que pode ser
cultivado por apenas um homem, ou de um móvel que
serve apenas a um homem; por conseguinte, a proprieda-
de exclusiva é fundada sobre a natureza da coisa. Assim,
a propriedade literária não é derivada da ordem natu-
ral, e defendida pela força social, mas é uma propriedade
fundada pela sociedade mesma. Não é um verdadeiro
direito (véritable droit), é um privilégio (privilège).60
Em nome de um ideal social também presente no Ilumi-
nismo, o da universalização do conhecimento, Condorcet e
outros no período defendiam a livre circulação dos textos e
o fim da apropriação privada de uma ideia – todo privilégio
seria uma restrição ao direito de acesso de outros cidadãos,
sendo, portanto, nocivo à liberdade. Também em Fragmen-
tos sobre a liberdade de imprensa, Condorcet pergunta se os
privilégios são necessários, úteis ou nocivos ao progresso
“das Luzes” – como se costumou chamar o conhecimento
Condorcet, Fragments sur la liberté de la presse, em Œuvres de Con-
60
dorcet, tomo 11, p.253-314, citado em Machado Pontes; Sousa Alves,
O direito de autor como um direito de propriedade: um estudo histórico
da origem do copyright e do droit d’auteur.
70
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no período. Ele mesmo responde que não; a propriedade
literária é “desnecessária, inútil e até injusta”61. A partir daí,
sustenta que uma legislação que concede aos autores o di-
reito de propriedade sobre suas obras não influencia positi-
vamente a descoberta de verdades úteis, “mas atinge de ma-
neira nefasta a maneira como essas verdades se difundem,
sendo uma das principais causas da diferença na sociedade
entre os homens esclarecidos ou cultos e a massa inculta,
para quem a maior parte das verdades úteis permanece
desconhecida”62. Condorcet achava que um mundo em que
as ideias pudessem circular livremente seria aquele em que
deveria haver liberdade de criação, reprodução e difusão do
conhecimento e da arte, o que tornaria indevida qualquer
apropriação individual dos bens culturais – um princípio
que vai ecoar nas ideias da cultura livre do século XX.
O embate de ideias entre Diderot e Condorcet, entre
outros, fomentaria a construção de leis durante um evento
fundamental para a queda dos privilégios reais e da própria
monarquia na Europa, a Revolução Francesa (1789-1799).
Em seus primeiros anos, os revolucionários estabeleceram
a abolição dos privilégios comerciais (como diversos ou-
tros) dados pelo governo do rei Luís XVI – entre eles, os
“privilégios dos editores” – e criaram leis que formariam
as bases do sistema que, a partir de então, seria conhecido
como droit d’auteur (direito de autor). A lei “Sobre o traba-
lho do congresso sobre propriedade literária e artística”63,
de 1791, concede monopólio de exploração de artistas do
61
Ibidem.
62
Ibidem.
63
Disponível na íntegra em: https://fr.wikisource.org/wiki/Compte_
rendu_des_travaux_du_congr%C3%A8s_de_la_propri%C3%A9t%-
C3%A9_litt%C3%A9raire_et_artistique/Loi_du_19_juillet_1791.
71
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teatro sobre a representação de suas obras por toda sua
vida e até cinco anos após sua morte. Dois anos depois,
outra lei expande o benefício para artistas de outras áreas
e para até dez anos após a morte dos autores. Inspiradas
pelos discursos tanto de Diderot quanto de Condorcet,
influenciadas também por Locke, Rosseau e outros, as
leis buscaram conciliar os diversos interesses conflitantes
envolvidos. De um lado, consagraram a ideia de Diderot
sobre a santidade da criatividade individual e a inviolabi-
lidade do direito do autor; de outro, teve também espaço
a noção de Condorcet de que, após certo tempo (no pri-
meiro momento cinco, depois dez anos após a morte do
autor), a obra deveria pertencer ao domínio público, para
o progresso “das Luzes” e do conhecimento universal.
Desse período em diante se consolidaram o copyright
inglês e o direito de autor francês como os principais sis-
temas de leis, os quais regulam até hoje a criação de bens
culturais (e intelectuais) no Ocidente. Uma das diferenças
entre os dois sistemas era a questão do suporte: o copyright
valia inicialmente para uma obra apenas quando ela se ma-
terializava em um suporte físico, como um livro impresso.
Já no droit d’auteur, esse pré-requisito do suporte não exis-
tia: as leis passariam a proteger a autoria e a integridade da
obra (os direitos morais) mesmo quando ela ainda fosse
uma ideia e não estivesse materializada em algum formato.
Outras diferenças entre os dois sistemas ainda conviveriam
e seriam complexificadas ao longo de disputas teóricas e
filosóficas durante o século XIX, período em que diver-
sos países passaram a adotar pela primeira vez legislações
regulando a propriedade intelectual, entre eles o Brasil64.
64
Segundo Paranaguá e Branco em Direitos autorais, as primeiras refe-
rências aos direitos de autor no Brasil datam de 1830, com um Código
72
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Na teoria jurídica, convencionou-se relacionar o copyright
como uma opção utilitarista, uma licença dada aos proprie-
tários de uma obra para a sua exploração comercial por um
tempo determinado, com o objetivo de recuperar os custos
empregados na produção e obter novos investimentos du-
rante o período, ao passo que o droit d’auteur, pelo menos
em seu início, seria uma opção marcada pela influência do
direito natural, que, se vingasse, tal como Diderot e outros
defendiam, transformaria o direito de autor em permanen-
te e hereditário, o que poderia ter levado à comercialização
e privatização de todos os bens culturais e à ausência de
um domínio público. A regulamentação criada na Fran-
ça à época da Revolução Francesa restringiu esse direito a
um determinado período, o que, de certa forma, misturou
as duas influências, utilitarista e do direito natural, tanto
na legislação francesa quanto na de países que adotaram o
copyright, como a Inglaterra e os Estados Unidos65.
Após essa primeira consolidação jurídica da proprie-
dade intelectual, alguns tratados das décadas seguintes
Criminal que previa como crime a violação de direitos autorais. A pri-
meira lei, entretanto, seria a n. 496/1898, também chamada de Lei Me-
deiros e Albuquerque, em homenagem a seu autor, que por sua vez foi
revogada pelo Código Civil de 1916, que classificou o direito de autor
como bem móvel, fixou o prazo de prescrição de uma ação por ofensa
aos direitos autorais em cinco anos. Somente em 1973 foi que o Brasil viu
publicado um estatuto único e abrangente regulando o direito de autor.
65
E aproximou as noções de copyright e direito de autor, algo que
até hoje permanece nas regulamentações de muitos países. Sobre essa
discussão, ver em especial um artigo de Paulo Rená, Droit d’autor vs.
copyright: diferenças conceituais entre direito de autor e direito de cópia,
Hiperfície, 28 mar. 2012. Disponível em: https://hiperficie.wordpress.
com/2012/03/28/droit-dautor-vs-copyright-diferencas-conceituais-
-entre-direito-de-autor-e-direito-de-copia.
73
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seriam responsáveis pela determinação de padrões in-
ternacionais que visavam acordar alguns pontos comuns
entre os países que sofriam maior influência do sistema
do copyright (Inglaterra, Estados Unidos e boa parte das
ex-colônias anglo-saxãs) e os com maior incidência dos
direitos de autor (França, Alemanha, Espanha e a maior
parte da América Latina, inclusive o Brasil). A Convenção
de Berna, firmada durante a década de 1880, foi o princi-
pal desses tratados, provocada pela Associação Literária
e Artística Internacional, grupo criado em 1878 a partir
da influência do escritor francês Victor Hugo. A proposta
era definir padrões jurídicos que valessem para diversos
países e, assim, evitar que uma dada obra protegida por
copyright na Inglaterra, por exemplo, pudesse ser copiada
e vendida por qualquer pessoa na França, procedimen-
to que era comum no período e não agradava a diversos
escritores, caso do próprio Victor Hugo (autor de, en-
tre outros, Os miseráveis, de 1862) e também de Charles
Dickens, que, para sua ira66, teve diversas obras que escre-
veu, publicadas originalmente na Inglaterra, republicadas
em tiragens altas sem sua autorização nos Estados Unidos.
A Convenção de Berna foi assinada em 1886 por países
como França, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha, Haiti,
Tunísia e Itália, e teve como resultado a definição de di-
reitos exclusivos – que a partir de então necessitavam de
autorização legal – para a tradução de obras, a adaptação
e rearranjos, a leitura e performance em lugares públicos,
teatros e espaços de concerto, a reprodução de cópias im-
pressas, entre outros usos. Alguns países que adotavam
66
Como, entre outros, contou o escritor Ruy Castro, em “Dickens e os
piratas”, Folha de S.Paulo, 8 fev. 2012, disponível em: https://www1.
folha.uol.com.br/fsp/opiniao/24603-dickens-e-os-piratas.shtml.
74
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sistema influenciado pelo copyright se opuseram a algu-
mas definições, caso da Inglaterra, que assinaria a conven-
ção no ano seguinte, mas não seguiria grande parte das
disposições até um século depois, em 198867; e dos Esta-
dos Unidos, que se recusaram a assinar pela justificativa
de que o acordo estabelecido em Berna mudaria de forma
significativa sua legislação de direito autoral – e só efeti-
varam todas as regras do acordo internacional em 198968.
Apesar das oposições, a Convenção de Berna se consoli-
dou como o tratado de propriedade intelectual mais aceito
no mundo; deu origem a entidades internacionais69 de ad-
ministração desses direitos e passou também a orientar as
mudanças que muitas tecnologias desenvolvidas nas déca-
das seguintes e no século XX trariam para a produção e a
circulação de bens culturais.
III.
A criação de uma noção de propriedade intelectual no sécu-
lo XIX está também ligada às novas tecnologias de reprodu-
ção e expressão desenvolvidas nesse período. Assim como,
67
A partir do Copyright, Designs and Patents Act 1988, que reformu-
laria a lei de copyright do país. Legislação completa disponível em:
https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1988/48/contents.
68
Conforme lista de países firmantes da World Intellectual Property Or-
ganization (Wipo). Fonte: https://www.wipo.int/treaties/en/ShowRe-
sults.jsp?lang=en&treaty_id=15.
69
Primeiramente, a United International Bureaux for the Protection
of Intellectual Property (Birpi), criada em 1893 para organizar a Con-
venção de Berna e a de Paris, que deu origem à noção internacional
de propriedade industrial. A partir de 1970, muda para o nome que
ainda hoje mantém: World Intellectual Property Organization (Wipo).
75
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no século XVI, os primeiros privilégios aos impressores e o
copyright surgiram após a invenção e propagação da má-
quina de impressão dos tipos móveis na Europa, também as
novas formas de regulamentar a criação e a reprodução de
bens culturais se dão com a introdução de novas tecnolo-
gias. Ao contrário das máquinas de impressão, porém, que
fizeram circular ideias em diferentes formatos mas somente
em um tipo de suporte, as tecnologias do século XIX am-
pliam os suportes de transmissão de ideias para o áudio e
as imagens, o que aumenta também a velocidade de circu-
lação de informação e começa a dar fim ao impresso como
principal suporte de fruição e consumo de bens culturais.
Os modos como as invenções tecnológicas do século
XIX se relacionam e influenciam umas às outras são di-
versos e complexos. Para facilitar e analisar certos impac-
tos, podemos dividir essas tecnologias em dois grupos: as
tecnologias de comunicação, que, ao encurtar distâncias e
pôr em conexão de modo mais veloz pessoas em diferen-
tes lugares, aumentaram a troca de informações novas,
caso do telégrafo, do telefone e do rádio – todas, por sua
vez, muito relacionadas à expansão dos meios de trans-
porte, como o trem, o barco a vapor e o automóvel –; e
as tecnologias de gravação e reprodução, aqui consideradas
tanto as de som, como o gramofone e o fonógrafo, como
as de imagem, que combinaram tradições antigas feitas de
truques físicos e misturas químicas de substâncias com
novas técnicas e invenções vindas da expansão da ciência
– e também da indústria – no período, caso principalmen-
te da fotografia e do cinema.
No grupo de tecnologias de comunicação, o telégrafo
inaugurou, na primeira metade do século XIX, uma nova
era de difusão de informação ao transmitir mensagens
76
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através de impulsos elétricos para regiões separadas por
milhares de quilômetros. Sua criação estava associada ao
desenvolvimento das ferrovias, que exigiam métodos ins-
tantâneos de sinalização por segurança, “embora houvesse
alguns fios telegráficos que seguiam os trilhos, não das fer-
rovias, mas dos canais”70. Aos ingleses William Fothergill
Cooke e Charles Wheatstone é atribuída a gênese de um
primeiro sistema de uso comercial do telégrafo, em 1837,
com o objetivo de acompanhar a construção da ferrovia
entre Londres e Birmingham, na Inglaterra71. Nas décadas
seguintes seria popularizado como um serviço fornecido
pelo Estado na maior parte do Ocidente, o que aumentou
a níveis então desconhecidos a velocidade de transmissão
de informação, pública e privada, local e regional, nacio-
nal e imperial.
O ano que ficou conhecido como o da primeira trans-
missão do telégrafo é lembrado por nós até hoje por conta
de ser também o da publicação da patente da invenção,
pelos já citados Cooke e Wheatstone. Aqui vale recordar:
além do direito autoral e do copyright, os séculos XVIII
e XIX também viram surgir, se consolidar em minúcias
legais e se propagar como uma das bases do modo de pro-
dução capitalista outra noção jurídica de apropriação das
ideias: a patente, que a partir de então seria definida como
um registro de uma concessão, pública e limitada, para a
exploração privada e comercial de uma ideia. À diferença
dos bens culturais, as patentes são aplicadas a bens consi-
derados utilitários – mais tarde, a noção incluiria o soft-
ware e até uma fórmula matemática, como um algoritmo
–, que, nesse momento, ganharam reprodução em massa
70
Briggs; Burke, op. cit., p.140.
71
Ibidem.
77
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a partir dos parques industriais em expansão. Durante
outro dos tratados internacionais reguladores da proprie-
dade intelectual desse período, a Convenção de Paris de
1883, a patente dá origem a uma ramificação nos estudos
e regulações jurídicas sobre a propriedade intelectual, que
passa então a ser chamada propriedade industrial, braço
jurídico que vai regular mundialmente invenções como o
telégrafo, além de registros de desenho industrial e marcas
(nomes comerciais), design de produtos e embalagens, en-
tre outros diversos artefatos de uma lista que só aumenta-
ria com as novas tecnologias desenvolvidas no século XX.
O telégrafo propiciou pelo menos mais dois inventos
que ajudaram a acelerar a difusão de ideias mundo afora
no século XIX. O primeiro foi o telefone, apresentado por
Alexander Graham Bell no Escritório de Patentes dos Es-
tados Unidos em 1876 como “o método de, e o instrumen-
to para, transmitir sons vocais ou outros telegraficamente,
causando ondulações eléctricas, similares às vibrações do
ar que acompanham o som vocal”72. Servia-se dos canais
de transmissão de mensagem do telégrafo para transfor-
mar energia acústica – a voz – em energia elétrica, o que
passaria a permitir a troca de informações através da fala
entre dois (ou mais) pontos conectados por uma rede.
O segundo foi o rádio, em 1895, ano em que o italiano
Guglielmo Marconi, então com 21 anos, fez sua primei-
ra transmissão em um sistema de propagação de sinais
em ondas sonoras a partir de uma antena para lugares a
pouco mais de três quilômetros de distância da origem.
Era uma espécie de “telégrafo wireless”, com informações
72
Fonte: http://www2.iath.virginia.edu/albell/bpat.1.html. Para mais
informações, ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexander_Graham_
Bell.
78
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sonoras codificadas em sinal eletromagnético que se pro-
paga por meio das ondas, medidas em hertz, no espaço
físico. Um ano depois, já morando na Inglaterra, Marconi
registrou sua patente como “melhorias na transmissão de
impulsos e sinais elétricos e nos respectivos aparelhos”73,
a primeira emitida para um sistema de telégrafo sem fio à
base de ondas hertzianas.
Há diversos inventos próximos e concorrentes surgidos
nesse período que podem ser identificados aqui como tec-
nologias de gravação e reprodução. São, todos eles, pontos
culminantes de inúmeras tentativas ao longo da história de
gravar, reproduzir e armazenar sons e imagens que, quando
passam a circular na sociedade, alteram a dependência de
uma mediação simbólica via alfabeto, predominante até
então, para a compreensão da realidade. São métodos que
passam a armazenar e transmitir, na forma de ondas de luz
e som, efeitos visuais e acústicos do real, tornando ouvidos
e olhos autônomos74 – o que causa uma série de transfor-
mações sobre a forma de produzir, circular, consumir e re-
gular os bens culturais a partir de então.
O primeiro desses inventos é o fonógrafo, que teve sua
apresentação pública datada de 6 de dezembro de 1877 nos
Estados Unidos por Thomas Edison, senhor do então pri-
meiro laboratório de pesquisa em história da tecnologia,
em Menlo Park, Nova Jersey75. O aparelho transformava,
73
“Improvements in Transmitting Electrical Impulses and Signals and in
Apparatus there-for”. Fonte: Hong, Wireless: From Marconi’s Black-box
to the Audion. Mais informações a respeito podem ser encontradas no
verbete da Wikipédia sobre a história do rádio: https://en.wikipedia.
org/wiki/History_of_radio#cite_note-34.
74
Kittler, Gramofone filme typewriter, p.24.
75
Ibidem.
79
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a partir do giro de uma manivela, sons emitidos em um
bocal em traços num cilindro pequeno com sulcos que
depois podiam ser reproduzidos e amplificados a partir
de um cone acoplado no aparato. Já o gramofone, criado
e patenteado pelo alemão Emil Berliner em 1888, fazia o
mesmo, mas usando um disco plano (de cera, goma-laca,
cobre, depois vinil) em vez do cilindro. A tecnologia por
trás dos dois produtos era um pouco diferente, assim
como as intenções dos inventores; mais interessado na
qualidade de gravação de música clássica, Berliner optou
pelo uso de uma matriz para duplicar as gravações sono-
ras, já que, para ele, a capacidade de repetição importava
mais que para Edison e também para Graham Bell – que
inventou outro aparelho parecido na época, o grafofone –,
que previam o uso de seus inventos para registros familia-
res ou em escritórios76. Nas primeiras décadas do século
XX, o disco plano de Berliner ganhou a disputa com os
cilindros de Edison e se consolidou como o formato mais
usado para esse tipo de aparelho de gravação e reprodução
sonora, sobretudo porque era mais fácil de ser produzido
industrialmente que os cilindros e incluir capas, selos e
outros acessórios.
Um pouco antes, ainda na primeira metade do sécu-
lo XIX, o daguerreótipo, apresentado publicamente pelo
francês Louis Daguerre em 1839, foi o primeiro processo
de produção de imagens a circular amplamente pelo Oci-
dente. Consistia de uma placa de cobre, ou outro metal
mais barato, que com um banho de prata formava uma
superfície espelhada que, ao ser colocada em uma caixa
escura e exposta a uma determinada situação por algum
76
Briggs; Burke, op. cit., p.181-2.
80
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período (que poderia ser até de dez minutos nesse pri-
meiro momento), formava um “retrato” dessa situação, a
ser exibido publicamente depois de revelado em um pro-
cesso químico. Não era um procedimento fácil, mas se
espalhou pelo Ocidente na década de 1840 e 1850 espe-
cialmente por ser mais prático e barato do que os retratos
pintados, muito comuns à época nas famílias burguesas e
industriais. Junto do celótipo (processo que usava nitrato
de prata e produzia “negativos” sobre papel, desenvolvido
pelo inglês William Heny Fox Talbot um ano depois), o
daguerreótipo seria o mais comum dos diversos proce-
dimentos fotográficos existentes no período até a conso-
lidação do método da fotografia instantânea com filmes
de rolo, no final do século XIX. Patenteado por George
Eastman, um banqueiro transformado em empresário
nos Estados Unidos, esse método seria a base para a cria-
ção e comercialização das câmeras de filme de rolo, prin-
cipal produto de uma empresa que Eastman fundaria em
1882, a Kodak, tornada quase sinônimo de fotografia no
século XX.
A introdução da “imagem em movimento” com o ci-
nema talvez tenha sido a maior alteração tecnológica da-
quele momento. Nasceu de várias inovações que vão des-
de a consolidação do domínio fotográfico até a síntese do
movimento; durante todo o século houve experimentos
que, a partir de princípios já mais antigos, como a câme-
ra escura77, buscavam produzir e reproduzir imagens em
77
Com referências primárias que remetem aos gregos, a câmera es-
cura é um tipo de aparelho óptico baseado no princípio de mesmo
nome que consiste numa caixa (que pode ter alguns centímetros ou
atingir as dimensões de uma sala) com um orifício em uma de suas
faces. A luz, refletida por algum objeto externo, entra por esse orifício,
81
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movimento, caso de alguns experimentos óticos como o
Zootrópio (em 1828-1832 por William George Horner) e
o Praxinoscópio78 (1877 por Émile Reynaud). O já citado
Thomas Edison trabalhou no tema e em 1891 sairia, do
laboratório de tecnologia que comandava, a patente do
cinetógrafo, uma máquina que registrava imagens em mo-
vimento e as exibia em um óculo dentro de um caixote de
madeira. Dois anos depois, viria do engenheiro-chefe dos
Edison Laboratories, William Kennedy Laurie Dickson,
a patente do cinetoscópio, um instrumento de projeção
interna de filmes com um visor individual pelo qual se
podia assistir, mediante a inserção de uma moeda, a uma
pequena tira de filme em looping. Lugares com cinesto-
cópios se tornariam populares nas décadas seguintes nos
Estados Unidos e seriam chamados de nickelodeons; exi-
biam imagens em movimento de números cômicos com
animais amestrados, exercícios circenses e bailarinas em
dança e alcançaram sucesso comercial considerável.
Dois anos depois do registro da patente do cinetoscó-
pio, ocorreu aquela que ficou para a história do cinema
como a primeira exibição paga de um filme de curta du-
ração, no Salão Grand Café, em Paris, a 28 de dezembro
de 1895. Foi uma apresentação pública de um aparato in-
ventado – e patenteado no mesmo ano na França – pelos
irmãos Lumière (Auguste e Louis) chamado cinematógra-
fo, que, baseado no cinetógrafo dos laboratórios Edison,
funcionava como uma máquina 3 em 1: gravava, revelava
atravessa a caixa e atinge a superfície interna oposta, onde se forma
uma imagem invertida daquele objeto. Fonte: https://pt.wikipedia.
org/wiki/C%C3%A2mera_escura.
78
Entra nessa lista de jogos ópticos também o estroboscópio. Ver mais
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_cinema.
82
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e exibia os filmes. Com grande cobertura da imprensa da
época, a considerada primeira sessão de cinema exibiu
dez curtas dos dois irmãos, todos com menos de um mi-
nuto, mudos (filmes sonoros só surgiriam após 1927) e
que hoje seriam considerados como documentais. Entre
os mostrados estava La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon, o
primeiro da sessão e também o primeiro filme da história
do cinema, que trazia cenas de pessoas saindo da fábrica
dos Lumière em Lyon.
IV.
Ao olhar para esse período e as diferentes histórias sobre
onde, como e quem teria originado essas invenções tecno-
lógicas, algumas considerações sobre patentes e proprie-
dade intelectual são importantes. A primeira delas é que o
telefone, o rádio, o gramofone, a fotografia e o cinema fo-
ram invenções criadas “sob os ombros de gigantes”, como
diz a expressão atribuída ao francês Bernardo de Chartres
no século XII e popularizada por Isaac Newton em 1675.
Dizer isso representa que foram invenções possibilitadas
largamente a partir de outras criações – aparatos técnicos,
ideias e mecanismos que não vieram até nós porque se
perderam pela escassez de recursos desses inventores para
fazer um registro que perdurasse. Ou então foram acopla-
das a outras ideias de quem, com mais possibilidades téc-
nicas e financeiras, colocaria esses inventos em circulação
numa escala industrial.
A segunda consideração é que, especialmente nesse
momento, há muitas divergências sobre quem de fato te-
ria inventado as tecnologias de comunicação, gravação e
reprodução identificadas aqui. O telefone, por exemplo, já
83
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tinha um antepassado muito próximo por volta de 1860,
dezesseis anos antes do registro de patente de Graham
Bell; era uma espécie de “telégrafo falante” desenvolvido
pelo italiano radicado nos Estados Unidos Antonio Meuc-
ci, que chegou a trabalhar com Bell e registrar sua inven-
ção em 1871, ao passo que o alemão Johan Philipp Reis,
em 1861, e o estadunidense Elisha Grey, no mesmo 1876
da patente de Bell, também trabalharam com protótipos
parecidos. Dois anos antes da primeira transmissão via
ondas hertzianas do italiano Marconi, em 1893, um padre
brasileiro chamado Roberto Landell de Moura fazia, em
Porto Alegre, experiências semelhantes de transmissão de
voz por ondas, o que só seria confirmado e documentado
oficialmente em 1900, já depois da patente de Marconi.
Dos vários antepassados do fonógrafo e do gramofone, há
um muito próximo em especial, chamado paleofone, que
foi registrado pelo francês Charles Cros em seu país no
mesmo ano do registro feito por Edison nos Estados Uni-
dos. A disputa pela invenção do cinema entre os Lumière,
filhos de um pequeno empresário francês de Lyon, e Edi-
son gerou e ainda hoje gera divergências, já que ambos
produziam, no mesmo período, diferentes filmes.
Estas e muitas histórias semelhantes da época nos mos-
tram que especialmente Graham Bell, Thomas Edison e
Guglielmo Marconi foram empresários e patenteadores
ligeiros, que souberam antever possibilidades de negócios
lucrativos a partir dos inventos que registraram. Com suas
patentes, trataram de garantir juridicamente a exclusivi-
dade de produção e uso de produtos que não necessaria-
mente inventaram, mas que, a partir das estruturas (ou
dos contatos) já bem estabelecidas de produção, poten-
cializaram sua circulação a partir da produção em escala
84
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industrial e a distribuição massiva como mercadoria. Vi-
savam retorno de seus investimentos em estrutura de pes-
quisa e desenvolvimento, é certo, mas também a garantia
de manutenção de seus lucros por muito tempo – o que, a
partir do registro de patentes, de fato ocorreu.
Por exemplo, Graham Bell. Escocês de família que tra-
balhava no ramo outrora promissor da locução pública,
Alexander migrou para o Canadá no início de sua vida
adulta e fez carreira nos Estados Unidos como inventor
e empresário; foi um dos fundadores da American Tele-
phone and Telegraph Company (AT&T), uma das maiores
empresas de telefonia (depois de internet e também de TV
a cabo) dos Estados Unidos no século XX. Thomas Edi-
son, que trabalhou com Graham Bell, foi um empresário
da tecnologia, financiado por nomes como Henry Ford e
Harvey Firestone, criador de um laboratório de produção
de inventos que viraria a General Eletric, um dos grandes
conglomerados industriais do planeta ainda hoje. A par-
tir do registro da patente do rádio na Inglaterra em 1896,
Marconi criaria a Wireless Telegraph & Signal Company
no país, depois transformada em Marconi Co., empresa
que seria uma das mais importantes das telecomunicações
britânicas nas primeiras décadas do século XX.
Diferente de Graham Bell, Edison, Marconi e também
dos Lumière, que já nessa época tinham uma estrutura
para patentear e passar a produzir seus inventos em maior
escala, Meucci, Landell de Moura, Cros e outros nomes
não tão lembrados hoje eram inventores que, sem muitos
recursos para produzir e disputar o já então forte merca-
do de patentes, não tiveram suas ideias transformadas em
produtos vendáveis. Meucci, por exemplo, foi um migran-
te; nasceu na Itália, morou quinze anos com sua esposa
85
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e família em Havana, Cuba, onde há registros de que te-
nha inventado o telegrafo parlante já em 1849 a partir de
uma máquina de eletrochoques79. Em 1850, com algum
dinheiro guardado, migrou para os Estados Unidos com o
objetivo de viver de suas invenções – à época, a jovem na-
ção se consolidava como um grande lugar de peregrinação
para inventores e empresários que queriam fazer carreira
com seus inventos. Meucci montou uma fábrica de velas,
empregou outros compatriotas exilados, se envolveu com
a política de seu país – Giuseppe Garibaldi, líder da unifi-
cação da Itália, trabalhou em sua fábrica e alugou sua casa
durante quatro anos –, faliu, montou outra companhia,
agora baseada em seu telegrafo parlante, chamada Telet-
trofono Company, que chegou a registrar seu invento em
1871, cinco anos antes do telefone de Bell. Mas, sem tan-
tos recursos e poder político como Bell, perdeu para este
as disputas jurídicas envolvendo patentes e não conseguiu
mais desenvolver seu invento80.
Na periferia do mundo das patentes da época (e ainda
hoje), o padre católico brasileiro Landell de Moura fazia
testes, muitas vezes solitário, em suas paróquias em Porto
Alegre, São Paulo e Campinas, com o telégrafo e o que
viria a ser o rádio no mesmo período de Marconi na Itá-
lia. Foi somente em 1900, em São Paulo, que Landell de
79
Mais detalhes sobre Meucci e as fontes das informações trazidas
aqui em: https://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_Meucci.
80
Em um pequeno reconhecimento tardio, em 2002, a U. S. House
of Representatives (equivalente à Câmara dos Deputados brasileira)
homenageou Meucci em uma resolução (https://www.congress.gov/
bill/107th-congress/house-resolution/269) por ter tido papel no de-
senvolvimento do telefone, ainda que não especifique qual e haja di-
versas disputas sobre quem de fato teria inventado primeiro o telefone.
86
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Moura conseguiu fazer um registro aceito pelos trâmites
da época, tendo testemunhas e sendo documentado pelo
Jornal do Commercio81. No ano seguinte, viria a obter uma
primeira patente brasileira para o que chamava de “apa-
relho destinado à transmissão fonética à distância, com
fio ou sem fio, através do espaço, da terra e do elemento
aquoso”. Com ela, viajaria nos anos seguintes para Europa
e Estados Unidos, onde, em 1904, também deixaria paten-
tes de “transmissor de ondas”, “telégrafo sem fio” e “tele-
fone sem fio”, com alguma repercussão. Entretanto, volta
ao Brasil em 1905, onde continua seus experimentos, mas,
sem apoio da Igreja, dos empresários ou dos governan-
tes locais, não desenvolve mais suas pesquisas autodida-
tas; Marconi, Bell e outros, na Europa e nos Estados Uni-
dos, seguiram82.
Em 30 de abril de 1877, oito meses antes de Thomas
Edison registrar a patente do fonógrafo nos Estados Uni-
dos, o escritor boêmio e inventor francês Charles Cros
depositou um envelope fechado na Academia de Ciências
francesa com um artigo sobre um “Procedimento de gra-
vação e reprodução percebidos pelo ouvido”. Era o mesmo
jeito de funcionamento do aparato de Edison, que conhe-
cia os boatos da invenção de Cros83. Mas ao francês faltava
o que, do outro lado do Atlântico, o laboratório em Men-
lo Park tinha de sobra: condições técnicas e financeiras
para a realização prática da ideia. Daí também o fato de
o fonógrafo, um mês depois da apresentação pública e do
81
Jornal do Commercio, 10 jun. 1899, p.3. Fonte: http://landelldemou-
ra.com.br.
82
Essas informações sobre Landell de Moura são baseadas em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Landell_de_Moura.
83
Kittler, op. cit., p.47.
87
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registro de Edison, ter começado a ser produzido massi-
vamente, ao passo que o paleofone, invenção de Cros, foi
esquecido. Sem condições de reivindicar juridicamente
algum crédito pelas ideias, o francês não chegou a ver as
transformações que a rica biblioteca de áudios que ele an-
teviu fariam no mundo; morreu em 1888, aos 45 anos.
Entre todos esses homens brancos e do eixo Américas
e Europa – e aqui também vai uma distinção de gênero,
cor e origem daqueles que ficaram para a história e os que
foram apagados ou não citados nesses registros –, Louis
Daguerre talvez tenha sido um caso raro para a questão da
propriedade intelectual. Sócio de Joseph Niépce, a quem
se atribui a primeira “fotografia da vida”, chamada de he-
liografia84 e apresentada pelo menos uma década antes,
Daguerre mostrou seu invento à Academia Francesa de
Ciências em 1839. O Estado francês adquiriu a patente do
daguerreótipo e, logo depois, a tornou domínio público,
“aberta para o mundo todo”85. Esse gesto, incomum en-
tre as tecnologias de comunicação, gravação e reprodu-
ção aqui citadas, facilitou que houvesse uma verdadeira
daguerréomanie na França, com um número grande de
daguerreotipistas também por outros países; “havia dez
mil deles na América em 1853, entre eles Samuel Morse,
84
Joseph recobriu uma placa de estanho com betume branco da Ju-
deia que tinha a propriedade de endurecer quando atingido pela luz.
Nas partes não afetadas, o betume era retirado com uma solução de
essência de alfazema. Em 1826, expondo uma dessas placas durante
aproximadamente oito horas na sua câmera escura fabricada, con-
seguiu uma imagem do quintal de sua casa. “Heliografia” significa
gravura com a luz solar. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Nic%-
C3%A9phore_Ni%C3%A9pce.
85
Briggs; Burke, op. cit., p.166.
88
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e na Grã-Bretanha havia cerca de dois mil fotógrafos re-
gistrados no censo de 1861”86. Outros procedimentos de
produção fotográfica mais baratos e fáceis de serem repro-
duzidos, como o celótipo de Henry Fox Talbot, e depois o
filme de rolo de Eastman e da Kodak (ambos registrados
como patentes privadas), tornaram o daguerreótipo um
procedimento ultrapassado e que não chegou a ser desen-
volvido em escala industrial depois de 1870.
V.
Diante da consolidação da propriedade intelectual no sécu-
lo XIX, cabe refazer a pergunta do início deste capítulo de
outra forma: a introdução dos elementos jurídicos regula-
dores das propriedades das ideias restringiram ou promo-
veram o progresso do conhecimento, da cultura e da tecno-
logia? Uma resposta possível seria dizer que promoveram,
basta ver a quantidade de inventos popularizados nesse pe-
ríodo e as enormes transformações que eles trouxeram à
sociedade. Também é aceitável falar que as mudanças trazi-
das pelas leis de direitos autorais dessa época, por exemplo,
propiciaram que muitos artistas passassem a poder viver de
seus trabalhos e não ficassem mais à mercê de monopólios
e interesses da Coroa, o que lhes assegurou uma série de di-
reitos e trouxe garantias que os nivelaram, em alguns casos,
a outros trabalhadores profissionais da época, além de dar
mais – pelo menos em tese – possibilidades de liberdade à
criação, sem o controle religioso ou estatal.
Outra resposta possível é dizer que os mecanismos ju-
rídicos reguladores da propriedade intelectual restringi-
86
Ibidem, p.167.
89
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ram o progresso e o acesso ao conhecimento. Antes uma
base de dados quase infinita e de acesso livre, o domínio
público de ideias e informações passou a ter suas ideias
fechadas em pequenos feudos, maiores ou menores de
acordo com as possibilidades econômicas e os arranjos
político-institucionais de quem as detém. Num primeiro
momento, o cercamento de algumas ideias do domínio
público é por pouco tempo; as leis de copyright iniciais
estabeleciam 14 anos após a publicação como o período
de exploração comercial exclusivo da obra, com vias de
retribuir ao autor (ou aos intermediários que bancaram
sua produção) o investimento obtido. Mas, a cada novo
aparato tecnológico – e o mundo lucrativo aberto por eles
–, esse período se torna maior: 40, 50, 70, 120 anos após
a publicação ou 70 anos após a morte do autor, como foi
consolidado nas leis de direito autoral no Brasil e em mui-
tos países do mundo no século XX87.
Usada como justificativa ideológica por reis, nobreza e
Igreja para a regulação da publicação de ideias, a censura
cede lugar, a partir dos séculos XVIII e XIX, ao mercado
e à livre concorrência. Não é mais por trazer temas proi-
bidos aos olhos dos censores que a circulação de ideias
precisa ser controlada; é para que uma pessoa possa vi-
ver de (e lucrar com) suas invenções, de modo exclusivo e
não concorrente com outro indivíduo (ou empresa). Para
isso, as leis; para fazer cumpri-las, o Estado. Num contexto
de aumento da velocidade de circulação de informações,
e com a possibilidade enorme de reprodução de ideias a
partir das tecnologias citadas, foi assim que a sociedade
87
Uma lista do período em que uma obra entra em domínio públi-
co pode ser consultada na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Dom%C3%ADnio_p%C3%BAblico.
90
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capitalista ocidental se organizou a partir de então, e até
hoje, no que se refere à produção e circulação de ideias.
Mas o modo de lidar com a propriedade de ideias a
partir da noção de propriedade intelectual e suas rami-
ficações (direitos autorais e propriedade industrial) não
seria o único desde então. Corrente de ideias também
surgida na segunda metade do século XIX, o anarquis-
mo negaria desde seu princípio os direitos autorais; a
frase “a propriedade é um roubo!”, tirada de um texto de
Pierre-Joseph Proudhon de 1840 – um ano depois de a
patente do daguerreótipo ser tornada domínio público na
França –, seria aplicada de início à propriedade material,
mas nem por isso deixaria de abranger também a proprie-
dade intelectual, como boa parte das obras (sobretudo
impressas) anarquistas desde então deixariam claro em
suas páginas iniciais com recados como “sem direitos re-
servados”, “todos os direitos dispersos”, entre outras men-
sagens explícitas a negar a existência de direitos de autor.
Faziam isso de modo claro e coerente com seus princí-
pios: as ideias, como as terras, devem ser livres, circular
livremente, sem restrições tanto de monopólios reais ou
religiosos quanto de regulações legais produzidas pelo Es-
tado para controlar a concorrência do mercado. A forma
de equacionar esses princípios filosóficos à prática da so-
brevivência cotidiana em um planeta cada vez mais apro-
priado pelo capitalismo e sua propriedade privada trazem
nuances e discussões diversas até hoje. É de se notar que,
considerada por muitos ingênua, a perspectiva da ausên-
cia de propriedade que o anarquismo defendeu, tendo a
autonomia da pessoa como eixo central de suas preocu-
pações, vai encontrar eco em hackers e influenciar a cons-
trução da internet – e do software livre – décadas depois.
91
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Será uma ideia sorrateiramente presente e influente na
sociedade até hoje, como se mostra no próximo capítulo.
Também fruto do século XIX, o socialismo trataria os di-
reitos autorais de maneira distinta. Tanto na União Soviética
(URSS) quanto em Cuba vigoravam as leis de direito auto-
ral acordadas em Berna quando, em 1917 e 1959, respec-
tivamente, estouram as revoluções soviéticas e cubana. Em
1928, a lei de direito autoral no país europeu, de influência
romano-francesa, é alterada e o período de validade dos di-
reitos (patrimoniais) reduzido a um intervalo mais próximo
às leis iniciais do século XVIII: 25 anos após a publicação de
uma obra ou 15 anos após a morte do autor. Assim perma-
nece até 1973, quando a URSS assina os tratados interna-
cionais de propriedade intelectual e passa a adotar o prazo
padrão de 70 anos após a morte do autor como o oficial para
validade dos direitos patrimoniais; os morais, que dizem
respeito ao reconhecimento de autoria, são perpétuos e ina-
lienáveis. Esse prazo é também aplicado hoje para a Rússia
e para ex-repúblicas soviéticas como Ucrânia, Geórgia, Es-
tônia, Lituânia, Moldávia, entre outras88. Em Cuba, ocorre
movimento parecido: a lei é alterada em 1977 e diminui o
prazo de extensão dos direitos autorais para 25 anos após a
morte do autor, o que permanece até 1994, quando Cuba en-
tão assina tratados internacionais e passa a adotar o período
de 50 anos após a morte do autor, o que permanece em 2020.
Na China e na Coreia do Norte, outros países que adotaram
o regime socialista no século XX, há uma longa tradição so-
cial coletivista que faz com que as noções de cópia, autoria
e propriedade intelectual sejam entendidas da maneiras di-
ferentes, que serão tratadas no capítulo 6: “Cultura coletiva”.
88
Como mostra a lista da nota anterior.
92
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É de se imaginar, por fim, que, num contexto de ampla
circulação de aparatos tecnológicos de reprodução e
comunicação, termos como “plágio”, “cópia” e “criação”
ganhariam outros significados. Se o romantismo cristaliza
no século XIX a percepção, até hoje predominante, do
autor como um gênio criativo solitário, um legítimo pro-
prietário de bens culturais, o início do século XX vai cha-
coalhar essa noção quase sagrada de criação. Artistas e
criadores em geral vão torcer e revirar a noção de plágio e
usá-lo como método de produção artística e estratégia de
confronto com a propriedade intelectual – e, por conse-
quência, ao próprio capitalismo. A cópia da cópia da cópia
geraria outras formas de expressão, que por sua vez seriam
recombinadas e formariam a base de muitos bens culturais
amplamente conhecidos no século XX e até hoje.
93
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CAPÍTULO 4
CULTURA RECOMBINANTE
94
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As ideias se aperfeiçoam. O significado das
palavras participa do aperfeiçoamen-
to. O plágio é necessário. O progresso
implica isso. Ele aproveita uma frase
de um autor, faz uso de sua expressão,
apaga uma falsa ideia e a substitui
pela ideia certa.
Conde de Lautréamont (Isidore Lucien
Ducasse), Poesias, 1870
Direito de ser traduzido, reproduzido
e deformado em todas as línguas.
Oswald de Andrade,
Serafim Ponte Grande, 1933
Na realidade, é necessário eliminar todos
os resquícios da noção de propriedade pes-
soal nesta área. O aparecimento das já ul-
trapassadas novas necessidades por obras
“inspiradas”. Elas se tornam obstáculos,
hábitos perigosos. Não se trata de gostar
ou não delas. Temos que superá-las. Po-
de-se usar qualquer elemento, não importa
de onde eles são tirados, para fazer no-
vas combinações. As descobertas de poesia
moderna relativas à estrutura analógi-
ca das imagens demonstram que quando são
reunidos dois objetos, não importa quão
distantes possam estar de seus contextos
originais, sempre é formada uma relação.
Restringir-se a um arranjo pessoal de pa-
lavras é mera convenção. A interferência
95
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mútua de dois mundos de sensações, ou a
reunião de duas expressões independentes,
substitui os elementos originais e produz
uma organização sintética de maior eficá-
cia. Pode-se usar qualquer coisa.
Guy Debord; Gil Wolman, Um guia para os
usuários do detournamènt, 1956
O meio é a mensagem.
Marshall McLuhan,
Understand Media, 1964
Nas redes intermídia de hoje, um fluxo
de dados formalizados algoritmicamen-
te pode saltar para todos eles. De
mídia a mídia, toda modulação possí-
vel se tornou factível: em órgãos de
luz, sinais acústicos controlam sinais
ópticos; na música de computador, si-
nais em linguagem de máquina controlam
sinais acústicos; em vocoders, mesmo
dados acústicos controlam outros dados
acústicos. Até os disc jockeys de Nova
Iorque criarem, a partir de gravuras
esotéricas de um Moholy-Nagy, o coti-
diano da scratch music.
Friedrich A. Kittler,
Gramofone, filme, typewriter,
1986
96
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I.
O período que vai do início dos 1900 até a década de 1970
foi de consolidação e popularização das diversas tecnolo-
gias de comunicação e reprodução patenteadas por nomes
como Graham Bell, Edison, Marconi, Eastman e Lumière
na segunda metade do século XIX. O fim do “Império da
Impressão”, como vimos, dá lugar a uma forma de percep-
ção que deixa de ser somente baseada na mediação simbó-
lica do alfabeto, das palavras e das publicações impressas e
passa a ser fortemente sentida, por olhos e ouvidos, a partir
da mediação dos aparatos técnicos de reprodução, como o
gramofone (depois vitrola, toca-discos e toca-fitas), o fil-
me (e o cinema), a televisão, o vídeo (e o videocassete). E
que culminam com o aparato que une todos estes em um
só, o computador, popularizado a partir do final dos anos
1970 com a explosão da nanotecnologia digital e dos PCs
(personal computer) produzidos na região que ditaria o
comportamento mundial diante das novas tecnologias nas
próximas décadas, o Vale do Silício, na Califórnia, Costa
Oeste dos Estados Unidos.
97
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Indústrias gigantescas são criadas com base na repro-
dução de imagens e sons no século XX. O cinema, o rádio,
a televisão, nessa sequência, se tornam meios de comuni-
cação e reprodução de massa com alcance global, influen-
tes mesmo na periferia do mundo. O armazenamento de
informação torna-se o padrão de um mundo ditado pela
concorrência do mercado; as ideias – literárias, musicais,
científicas – são embaladas, comercializadas e se tornam
propriedade, elemento pelo qual o capitalismo se organiza
e move a roda do dito progresso, que vai cada vez mais
depender das tecnologias e dos mecanismos jurídicos
criados para regular as trocas e a publicação de ideias: as
patentes e o direito autoral (ou o copyright).
Já nas primeiras décadas dos anos 1900, as bases das
legislações de propriedade intelectual que ainda hoje va-
lem estavam definidas em acordos internacionais como o
de Berna ou o de Paris. Elas tornaram normal a ideia de
criação individual sob o mito do “gênio” romântico, uma
imagem representada por aquele sujeito que, trancafiado
em seu quarto, em geral sozinho, tem uma ideia brilhante
a partir somente de suas próprias referências e, com essa
ideia bem embalada e vendida como mercadoria por um
intermediário, vai conquistar fama e dinheiro. O que não
se enquadrasse nesse modelo seria marginalizado e re-
primido com multas e penas ao final de longos e caros
processos levados por aqueles que tinham condições de
contratar e manter advogados.
A consolidação das leis de direito autoral e da noção de
que os bens culturais são propriedades privadas também
ocasiona, de outro lado, um movimento de resistência. Na
virada para o século XX e ao longo das décadas decor-
rentes, movimentos de contestação ao direito autoral vão
98
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proliferar na arte e na cultura com o questionamento de
que ideias, sons, palavras, imagens e filmes possam ser de
posse de alguém e usados somente com autorização dos
ditos proprietários mediante algum pagamento financei-
ro. As indagações propostas nas ações desses artistas e
movimentos trazem, como consequência direta ou indi-
reta, a proposta de contestar a ideia de um bem cultural
como mercadoria e a construção de uma cultura livre e
comum que deveria ser de todos, sem a necessidade de
haver autorização para ser fruída, circulada ou reusada.
Ao se apropriar de certas ideias, embalá-las e vendê-las
como obras fechadas, o regime da propriedade intelectual
procurou, de um lado, criar um sistema que pudesse re-
munerar os criadores (ou seus representantes) por suas
obras – o que de fato fez ao equiparar artistas a outros
tantos profissionais com direito de manter uma vida dig-
na a partir de suas criações. De outro lado, a propriedade
intelectual também restringiu a promiscuidade das ideias
e encurralou-as dentro de um espaço onde pudesse extrair
benefícios exclusivos de sua posse e controle89. Na maioria
dos casos, o objetivo de se apossar de ideias e delas sacar
recursos foi atingido.
Mas existiu – e ainda existe – contestação para que o
acesso e a circulação continuassem sendo maiores que a
restrição. Nas ruas do sul global, a propriedade intelec-
tual se acostumou a ser suplantada pela livre difusão de
ideias, não raro comercializadas à margem do sistema
legal para fomentar novas criações que se espalham por
todos os cantos, mesmo que iniciativas nas legislações e
na propaganda, por Estados e empresas, surjam na busca
89
Nimus, op. cit., p.27.
99
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do controle e da criminalização dessas práticas. De for-
ma consciente como contestação ao status quo artístico ou
espontânea porque cotidiana e usual, a reapropriação de
informações e de bens culturais já existentes para o de-
senvolvimento de novas criações proliferou com força no
século XX a ponto de originar novos movimentos, ritmos,
ritos e obras nos mais diversos lugares. São incontáveis os
exemplos na arte e na contracultura, todos apresentando
alguma forma de subversão e deslocando os objetos de um
sistema de referência para outro, com alteração (ou não)
de significado. As tecnologias de comunicação, gravação e
reprodução em massa teriam papel importante nessa pro-
liferação, na maioria dos casos sendo fundantes de novas
práticas de criação, consumo e circulação de bens cultu-
rais. O capitalismo teria papel ainda maior, sendo tanto o
modo de produção no seio dos quais as tecnologias são
geradas e popularizadas quanto o “inimigo” a ser adotado,
de maneira explícita ou nem tanto, pelas iniciativas cultu-
rais de enfrentamento baseadas no remix e na reapropria-
ção de significados.
II.
A contestação às leis reguladoras da propriedade intelec-
tual se deu na primeira hora, logo depois de sua consolida-
ção nos Estados do Ocidente. Por motivos muitos diferen-
tes e às vezes opostos: anarquistas a negar qualquer tipo
de propriedade privada, mesmo a intelectual; socialistas
em vias de potencializar a propriedade coletiva, inclusive
nas artes, sob gerência do Estado; liberais a enfatizar o li-
vre mercado, que considerava que o interesse público de
ter acesso a bens culturais de forma mais barata possível
100
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poderia prevalecer sobre os direitos dos autores; e artistas,
de todos os espectros ideológicos, a questionar o status da
criação romântica e proprietária e a lutar pela liberdade de
uso de qualquer tipo de obra sem necessidade de pedido
de autorização para quem quer que seja.
Ainda durante a segunda metade do século XIX, simul-
taneamente aos múltiplos inventos que aos poucos dariam
fim ao livro como o principal modelo de percepção de
ideias e da realidade, um dos primeiros artistas a aberta-
mente questionar o direito autoral e a noção de gênio cria-
dor individual foi o conde de Lautréamont, nascido Isido-
re Lucien Ducasse em Montevidéu, no Uruguai, em 1846,
e desde cedo morador de Paris, na França, onde morreu
em 1870, aos 24 anos. Lautréamont fez de sua curta obra
(e vida) um permanente questionamento ao que na épo-
ca era institucionalizado na literatura, tanto nas temáticas
como no processo de escrita – o uso de erros ortográfi-
cos, impropriedades estilísticas, o plágio e repetições de
fórmulas, que fazem suas obras serem, até hoje, cultuadas
e avessas a classificações90. Os cantos de Maldoror (1869),
seu livro mais famoso e influente, relata, em seis cantos de
uma poesia às vezes narrativa e em outras lírica e absurda,
sucessivas violências, depravações, crueldades em torno
da covardia e estupidez humana.
Seu segundo livro e último trabalho, Poesias, “menos es-
petacular e mais estranho ainda”91, publicado no ano de sua
morte, reuniu em texto aforismos, máximas, poesias, cita-
ções de poetas gregos e de seus contemporâneos na França,
como Charles Baudelaire, Blaise Pascal e Alexandre Dumas.
90
Em “O astro negro”, prefácio de Cláudio Willer a Lautréamont, Os
cantos de Maldoror.
91
Ibidem.
101
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Num dos trechos da publicação, dividida em duas partes
(fascículos), apelava ao retorno de uma poesia impessoal,
escrita por todos, que remetesse às formas coletivas de
produção no período medieval, mas com tintas da indus-
trialização moderna do período: “As ideias se aperfeiçoam.
O significado das palavras participa do aperfeiçoamento. O
plágio é necessário. O progresso implica isso. Ele aproveita
uma frase de um autor, faz uso de sua expressão, apaga uma
falsa ideia e a substitui pela ideia certa”92. Lautréamont, em
especial nesse trecho de Poesias93, provoca o mito da criati-
vidade individual – que desde o princípio caminhou lado a
lado com a justificação das relações de propriedade intelec-
tual em nome de um mundo moderno onde, supostamente,
não seriam aceitas ideias sem dono. Seu gesto sinaliza para
a reapropriação da cultura enquanto esfera de produção co-
letiva, tal qual na Antiguidade e parte da Idade Média, mas
“sem deixar de reconhecer as vedações, identificadas por
ele como artificiais, colocadas à autoria pelo regime já en-
tão estabelecido de propriedade intelectual”94. Seu “A poe-
sia deve ser feita por todos, não por um”, presente em Poe-
sias, antecipa, junto com outro poeta do mesmo período,
Stéphane Mallarmé, a atenção moderna da supremacia do
texto sobre o autor-leitor, “um deslocamento da intersubje-
tividade para a intertextualidade, que faz pensar a obra não
apenas como um diálogo entre pessoas, mas entre textos”95.
92
Ibidem.
93
Guy Debord inclusive a cita na abertura de A sociedade do espetácu-
lo, sua obra mais conhecida, de 1967.
94
Nimus, op. cit., p.27.
95
Em Lautréamont, op. cit., p.33, Willer, que se baseia em Os filhos
do barro, do poeta e diplomata mexicano Octávio Paz. O foco sobre
o texto e não tanto no autor vai ser popular nos estudos chamados de
102
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Lautréamont também usou de plágio para compor sua
obra. Em Cantos, há diversos trechos que fazem referên-
cia a outros96. Em Poesias é possível detectar trechos de
Pensamentos, do matemático Blaise Pascal, e de Máximas,
de François de La Rochefoucauld, além dos trabalhos de
escritores e filósofos como Jean de La Bruyère, Luc de
Clapiers, Dante Alighieri, Immanuel Kant e La Fontai-
ne97, entre outros autores que encontraríamos se fôssemos
examinar em ainda mais detalhes. Além disso, e de modo
ainda mais raro ao comparar com outros contestadores
do copyright e da autoria no século XX, também o modo
de circulação da obra de Lautréamont demonstrou certo
questionamento ao mercado tradicional de publicações:
as duas brochuras de Poesias circulavam sem preço pelas
ruas de Paris, no modelo “pague quanto quiser” que seria,
quase um século depois, espalhado pela cultura punk de
influência anarquista e outros movimentos na contracul-
tura que não reconhecem o sistema de propriedade inte-
lectual como legítimo para suas criações.
Os livros de Lautréamont só estão citados aqui hoje por-
que se tornaram referência de subversão para muitas das
écriture na França a partir dos anos 1950, 1960 e 1970, com filósofos
como Roland Barthes e Jacques Derrida. Barthes, não por acaso, é
autor de A morte do autor, de 1968, um texto em que aponta para
o desaparecimento da figura do autor a partir do século XIX sendo
o verdadeiro agente da escrita era a linguagem, não um indivíduo.
Martins, op. cit., p.21.
96
Um particularmente visível, segundo Willer, é a morte da criança
diante dos pais no canto I, trecho plagiado do poema “O rei dos ol-
mos”, de Goethe, com Maldoror no lugar do Gênio da Floresta.
97
Willer, Prefácio, em Lautréamont, op. cit.; e https://en.wikipedia.
org/wiki/Comte_de_Lautr%C3%A9amont.
103
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vanguardas europeias no início do século XX, que assim
os preservaram e popularizaram. Os surrealistas franceses
Louis Aragon e André Breton o colocaram nos seus pan-
teões de autores malditos, ao lado de Baudelaire e Arthur
Rimbaud, e republicaram Poesias, em 1919, depois de des-
cobrirem um dos poucos exemplares da obra na Bibliote-
ca Nacional Francesa. A Lautrèamont, Aragon e Breton
também dedicaram um número da revista surrealista que
editaram, Le Disque Vert, em 1925, intitulada “Le Cas Lau-
tréamont” (“O caso Lautréamont”). Ambas iniciativas tor-
nariam a obra do poeta conhecida para novos públicos.
Antes da revista, um dos pioneiros do modernismo nos Es-
tados Unidos, Man Ray, em 1920, fez uma obra identificada
ao Dada chamada L’Énigme d’Isidore Ducasse (O enigma
de Isidore Ducasse). É uma fotografia em que se vê alguma
coisa escondida em um pedaço de feltro marrom amarra-
do por uma corda de sisal, inspirada em um trecho de Os
cantos de Maldoror: “Beautiful as the chance meeting, on a
dissecting table, of a sewing machine and an umbrella”98.
A obra de Man Ray era o que o artista francês (e seu
amigo) Marcel Duchamp chamou em 1913 de ready-made,
prática que consistia em pegar objetos em relação aos quais
se era indiferente e recontextualizá-los de maneira a des-
locar seus significados. Na década de 1910, os dois produ-
ziram uma série dessas obras, que, de certo modo, foram
pioneiras no mundo da arte ocidental em usar e deixar ex-
plícita a recombinação de informações e outros elementos
para criação de uma nova obra. Como conta Duchamp:
98
Disponível em: https://www.wikiart.org/en/man-ray/the-enigma-
-of-isidore-ducasse-1920. “Belo como o encontro fortuito, sobre uma
mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”,
em tradução de Cláudio Willer.
104
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Em 1913 tive a feliz ideia de fixar uma roda de bicicleta a
uma banqueta de cozinha e vê-la girar. Uns poucos me-
ses depois comprei uma reprodução barata de uma pai-
sagem de uma noite de inverno, a qual chamei de “Far-
mácia” depois de adicionar dois pequenos pontos, um
vermelho e um amarelo, no horizonte. Em Nova York em
1915 comprei numa loja de ferramentas uma pá de neve
na qual eu escrevi “À frente do braço quebrado”. Foi por
essa época que a palavra “ready-made” me veio à men-
te para designar esta forma de manifestação. Um ponto
que desejo muito esclarecer é que a escolha destes “ready-
-mades” nunca foi ditada pelo deleite estético. Essa esco-
lha era baseada numa reação de indiferença visual com ao
mesmo tempo uma total ausência de bom ou mau gosto...
De fato uma completa anestesia. […] Um outro aspecto
do “ready-made” é sua impossibilidade de ser único. A
réplica de um “ready-made” carrega a mesma mensagem;
de fato quase que nenhum dos “ready-mades” existentes
hoje é um original no sentido convencional.99
Em 1917, ao tirar um urinol do banheiro, assiná-lo e colo-
cá-lo sobre um pedestal em uma galeria de arte, sua até hoje
mais conhecida obra100, Duchamp também afastou o signi-
ficado da interpretação funcional aparentemente concluída
do objeto. Embora esse significado não tivesse desaparecido
por completo, foi justaposto a outra possibilidade – o signifi-
cado como objeto de arte. O urinol em uma galeria instigava
um momento de incerteza e reavaliação e questionava mais
99
Publicado originalmente no site Iconoclast: www.13am.net/
iconoclast, tradução do inglês por Ricardo Rosas (Arquivo Rizoma)
no e-book Recombinação, p.17.
100
Realizado por Duchamp em 1917 quando do envio do objeto ao Sa-
lão de Associação de Artistas Independentes de Nova York sob o pseu-
dônimo R. Mutt.
105
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uma vez o essencialismo romântico, que coloca a obra de
arte como produto de uma natureza divina e que privilegia
o trabalho criativo individual. O urinol e a roda de bicicle-
ta eram produtos industriais feitos por máquinas, coletados
em lugares diversos e ressignificados por Duchamp; quando
colocados em espaços de arte como galerias, não poderiam
ser patenteados como outras obras da época (quadros, es-
culturas, fotografias), pois o objeto em si não tinha valor,
podia ser descartado e outro entraria em seu lugar numa
nova exposição sem prejuízo de significado. O que valia
era a ideia proposta pela experiência de se ver um objeto
de uso cotidiano como um urinol – ou um pedaço de feltro
escondendo outros objetos, ou uma roda de bicicleta – em
uma galeria de arte. Nascia aí a arte conceitual, desde sua
origem livre, avessa a direitos autorais e crítica à propriedade
das ideias, mas também suscetível, nas décadas seguintes, a
transformar-se em mercadoria e frequentar museus e gale-
rias registradas com copyrights de milhares de dólares.
Duchamp e Man Ray estavam associados a uma das
vanguardas europeias desse período, o Dada, que, espa-
lhado por Suíça, Estados Unidos, França e Holanda, mas
também Geórgia, Japão e Rússia101, desenvolveu muito de
seus trabalhos a partir do questionamento da ideia do ar-
tista e da não separação entre arte e vida. O Dada, que
é uma palavra de muitas origens, mas que em todas elas
significa “nada”, deve muito a outra noção de Duchamp,
a antiarte, pensada por ele a partir dos ready-mades em
1913 e adotada por muitos movimentos contraculturais
do século XX102 como um método de provocar os pilares
101
Há muitos detalhes do Dada disponíveis em: https://en.wikipedia.
org/wiki/Dada.
102
Dos movimentos Cobra e Internacional Letrista, próximos ao sur-
106
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do que seria uma arte tradicional – entre eles, temas como
a autoria, a beleza e a propriedade intelectual. Diversas
obras do Dada interrogavam a ideia do gênio criativo so-
litário e expressavam uma revolta contra os princípios ca-
pitalistas embrenhados nos valores artísticos. O romeno
Tristan Tzara, um dos principais nomes do Dada, mani-
festou um tanto dessa revolta ao utilizar com frequência
a aleatoriedade, o non sense e o acaso para produzir obras
que chocaram o status quo do mundo artístico à época,
como em “Para fazer um poema dadaísta”, de 1920:
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja
dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que
formam esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tira-
das do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibi-
lidade graciosa, ainda que incompreendido do público.103
realismo e ao Dada da primeira metade do século XX, ao Provos (Ho-
landa), ao punk e ao neoísmo, na segunda metade, passando pelos
situacionistas e pela mail art também citadas aqui. Esses movimentos
antiartísticos são detalhados numa bela e pouco conhecida obra cha-
mada Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do sé-
culo XX, de Stewart Home, publicado no Brasil pela Conrad em 2005.
103
“No original em francês: “Prenez un jornal. Prenez des ciseaux.
Choisissez dans ce jornal un article ayant la longueur que vou comp-
tez donner à votre poème.Découpez l’article. Découpez ensuite avec soin
chacun des mots qui forment cet article et mettez-le dans um sac. Agitez
107
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Apresentada também em muitos manifestos produzidos
no período, as ideias do Dada104 buscavam a demolição
de um sistema artístico em que a propriedade intelectual,
entronada na noção de autoria, já tinha um papel impor-
tante. Não por acaso, também aqui a tecnologia começa a
ter maior relevância na arte; as collages, a poesia sonora e
o cinema são artes, potencializadas nesse período, em que
os aparatos técnicos têm papel principal, tanto como mé-
todo de produção (caso das collages) quanto de gravação e
apresentação ao público (poesia sonora e o cinema).
As collages haviam entrado com força no mundo da
arte com o espanhol Pablo Picasso e o francês Georges
Braque, a partir de 1912, baseadas na evolução das téc-
nicas de impressão, que possibilitaram a circulação em
massa de jornais e revistas de onde os pintores recortavam
trechos e mesclavam a desenhos e tintas em seus quadros.
A poesia sonora ganhou repercussão com o fundador do
futurismo italiano, Filippo Tommaso Marinetti, que entre
1912 e 1914 publica Zang Tumb Tumb, um poema sonoro
e visual em que as novas técnicas modernistas de tipogra-
fia e diagramação do italiano se mesclam a uma rica e an-
doucement. Sortez ensuite chaque coupure l’une après l’autre dans l’or-
dre où eles ont quitté le sac. Copiez consciencieusement. Le poème vous
ressemblera. Et vous voilà un écrivain infiniment original et d’une sen-
sibilité charmante, encore qu’incromprise du vulgaire”. Tradução em
Teles, Vanguarda européia e modernismo brasileiro.
104
Vale citar também como ideias influentes no Dada aquelas expos-
tas nas telas do alemão Kurt Schwitters, repletas de imagens aleatórias
de recortes de jornal, bilhetes de trem e fotografias, e nas poesias so-
noras (sem palavras) de Hugo Ball, fundador, ao lado de sua esposa
Emmy Hennings, em 1916, do ponto de encontro dos dadaístas, o
Cabaret Voltaire, em Zurique, na Suíça.
108
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tiga tradição da poesia oral para brincar com os sons das
palavras – ainda que, no caso de Marinetti e do futurismo
italiano, as experimentações estejam a cargo de uma retó-
rica da velocidade industrial que resultaria em misoginia e
no fascismo de Mussolini105. Os dadaístas Hugo Ball e Kurt
Schwitters também fariam poemas sonoros; o primeiro foi
performado por Ball na abertura do Cabaret Voltaire, em
1916 – “gadji beri bimba glandridi lauli lonni cadori”106,
que, sem nenhum gramofone disponível à época, foi regis-
trado muitos anos depois como uma música pop dançante
em uma mescla de ritmos africanos em “I Zimbra”107, do
disco Fear of Music, dos Talking Heads, em 1979. Já o ale-
mão Schwitters teve mais sorte; nos anos 1920 percorreu
com Tzara, Hans Arp e Raoul Hausmann diversos salões
literários na Europa a declamar (e provocar) as audiências
com “Ursonate” (também chamada de “Sonata primal”),
um poema sonoro baseado em uma frase “Fümms bö wö
tää zää Uu”, repetida e acrescida de outros trechos ao lon-
105
O primeiro “Manifesto futurista”, escrito por Marinetti e publica-
do no jornal francês Le Figaro em 1909, “exaltava a velocidade como
novo valor estético destinado a enriquecer a magnificência do mun-
do”, como escreve Franco “Bifo” Berardi em Depois do futuro, livro
que detalha os conceitos de “futuro” ao longo do século XX e hoje.
Com a velocidade, vem a apologia do automóvel, das virtudes guer-
reiras e da desvalorização de tudo o que é feminino, exposto neste
trecho do manifesto de Marinetti pinçado por Bifo: “Queremos cele-
brar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra,
lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita” (Berardi,
Depois do futuro, p.24).
106
Mais informações sobre o poema em: https://www.nealum-
phred.C.om/hugo-ball-sound-poetry-gadji-beri-bimba.
107
Pode ser assistido em: https://www.youtube.com/watch?v=3tyVn-
2ZDJ-Y.
109
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go do tempo em que Schwitters o apresentou – uma dessas
apresentações foi gravada em uma rádio de Frankfurt, na
Alemanha, em 1932, e ainda hoje está disponível108.
O rádio, aliás, passa a fazer parte do cotidiano mundial
a partir da década de 1920, o que potencializa a experi-
mentação sonora. O registro dos gramofones, de alcance
local e efêmero, passa ter uma possibilidade de audiência
e interação com milhares de pessoas. A influência do rá-
dio nas décadas de 1930 e 1940 fez que a mera leitura de
um texto literário para a transmissão pública pelo sistema
de radiotransmissão se transformasse em outra forma de
criação. Ficou notório o pânico de muitos que ouviam A
guerra dos mundos, em 30 de outubro de 1938 na rádio
CBS, dos Estados Unidos, uma transmissão dirigida por
Orson Welles, produzida pela The Mercury Theatre on
the Air, baseada em um texto de H. G. Wells. Dos quinze
minutos em diante, após ouvir relatos de aparições de ex-
traterrestres em diversas fazendas dos Estados Unidos, a
transmissão parece falhar, dando a muitos a impressão de
que a CBS em Nova York estava sendo realmente invadi-
da pelos extraterrestres de que os relatos ouvidos ao vivo
falavam109. Mesmo que ainda hoje haja divergências sobre
o real impacto da transmissão, foi um episódio marcante
na história das mídias para ilustrar que uma adaptação
de um texto impresso para uma mídia sonora de alcance
público nunca mais seria apenas mera transmissão, mas
outra coisa – “o meio é a mensagem”, como sintetizaria
108
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6X7E2i0KM-
qM.
109
Disponível na íntegra em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:War_
of_the_Worlds_1938_Radio_broadcast_full.flac.
110
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Marshall McLuhan duas décadas e meia depois110, ao dis-
secar a influência da forma das mídias em seu conteúdo.
Ainda na década de 1930, a popularização das técnicas
de comunicação e reprodução como o rádio, o gramofone,
a fotografia e o cinema provocariam um dos textos mais
conhecidos do historiador alemão Walter Benjamin, A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Es-
crito em 1936 e publicado em 1955, argumenta que a re-
produção técnica à época tinha atingido um nível “tal que
começara a tornar objeto seu não só a totalidade das obras
de arte provenientes de épocas anteriores como também
a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos
artísticos”111. Benjamin escreve que essas técnicas de re-
produção liberariam o objeto reproduzido do domínio da
tradição e, ao multiplicar o reproduzido, colocariam no
lugar da ocorrência única a ocorrência em massa112. As-
sim, a “aura” singular das obras de arte seria perdida e as
cópias, (re)produzidas em massa, passariam a ter valor
por si – o que, como veremos algumas décadas depois,
seria o habitual nas novas formas de expressão artística e
cultural a partir do surgimento de tecnologias eletrônicas,
depois digitais e, finalmente, digitais em rede.
II½.
A contestação ao copyright por parte das vanguardas eu-
ropeias também teve eco no Brasil da primeira metade do
110
Em Understanding Media, publicado no Brasil como Os meios de
comunicação como extensão do homem.
111
Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
p.24.
112
Ibidem.
111
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século XX. Para além das práticas colaborativas e livres
dos povos originários sul-americanos, tema do Capítulo
6 deste livro, o modernismo brasileiro trouxe alguns ele-
mentos dos movimentos europeus e os readaptou às cores
locais, já acostumadas com a recombinação de elementos
para a criação de novos bens culturais.
Nesse aspecto, o paulista Oswald de Andrade teve pa-
pel de destaque como divulgador e adaptador das ideias
de questionamento à autoria e ao direito autoral. Para
Oswald, a garantia de sobrevivência da cultura brasileira
estaria na capacidade de entrar em contato com outras
culturas e absorvê-las em um processo de deglutição,
como expresso em trechos do “Manifesto antropófago”,
publicado na primeira edição da Revista de Antropofa-
gia, em 1928: “Só me interessa o que não é meu. Lei do
Homem. Lei do Antropófago”. A antropofagia proposta
pelo escritor seria a inversão do mito do bom selvagem
atribuído ao iluminista Rousseau: em vez de puro e ino-
cente, um indígena esperto e malandro, que canibaliza o
estrangeiro e digere o colonizador ocidental e sua cultura.
Outra pista contestadora ao direito autoral e também
a essas noções de autoria deixada por Oswald é Serafim
Ponte Grande, livro publicado em 1933. No lugar onde se
costuma indicar as “Obras do autor”, no início da publica-
ção, ele põe a rubrica “Obras renegadas”, e o próprio livro
que está para se ler é incluído entre os títulos “repudia-
dos”. A frase que abre a folha de rosto da edição parafra-
seia a indicação de copyright costumeira: “Direito de ser
traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas”.
A forma do livro, como comenta Haroldo de Campos
em prefácio à segunda edição (1971), é feita a partir da
colagem, a justaposição de materiais diversos, o que em
112
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técnica cinematográfica parece equivaler de certo modo
à montagem.
A colagem – e mesmo a montagem – sempre que tra-
balhem sobre um conjunto já constituído de utensílios
e materiais, inventariando-os e remanipulando-lhes as
funções primitivas, podem se enquadrar naquele tipo de
atividade que Lévi-Strauss define como bricolage (elabo-
ração de conjuntos estruturados, não diretamente por
meio de outros conjuntos estruturados, mas pela utiliza-
ção de resíduos e fragmentos), a qual, se é característica
da “pensée sauvage”, não deixa de ter muito em comum
com a lógica de tipo concreto, combinatória, do pensa-
mento poético.113
A influência da colagem do Dada e do automatismo do
surrealismo em Oswald é considerável, mas há também
diversos artistas ao longo da história que usaram de ar-
tifícios semelhantes de colagem e de questionamento do
próprio livro como objeto narrativo e mercadológico. No
prefácio de Serafim Ponte Grande já citado, Haroldo de
Campos cita um deles, o idiossincrático A vida e as opi-
niões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne,
escrito entre 1759 e 1767 na Inglaterra, um “marco pionei-
ro da revolução do objeto livro que se projeta de maneira
avassaladora e irreversível em nosso século, agora tendo
por aliadas as novas técnicas de reprodução de transmis-
são da informação”114. A prática de Oswald de criar a par-
tir da colagem e da recompilação de diversos trechos de
outros artistas ou de veículos de massa, misturando gê-
neros e formas diversas para a formação de uma obra es-
pecífica, seria, como prenuncia Haroldo de Campos, vista
113
Campos, Serafim: um grande não-livro, p.2.
114
Ibidem, p.4.
113
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em profusão no século XX no Brasil, das artes visuais e
performances de Hélio Oiticica, Paulo Bruzcky e Adriana
Varejão à literatura de Valêncio Xavier e, mais recente-
mente, Angélica Freitas, Verônica Stigger, Cristiane Costa
e Leonardo Villa-Forte115.
A influência mais explícita do Dada de rejeitar a origi-
nalidade e, principalmente, de que toda produção artística
consiste na reciclagem e na remontagem é marcada, porém,
tanto em Oswald quanto em outros artistas citados aqui,
mais na estética do que na forma de a obra ser licenciada.
Abrir mão do direito autoral – ou mesmo licenciar de for-
mas menos restritivas – é, no contexto da arte do século
XX, uma bandeira estética que na prática parece se firmar
como radical demais mesmo para artistas experimentais.
III.
A ocorrência em massa de obras de arte se espalharia
ao longo do século XX e passaria também a incorporar
aspectos das tecnologias de comunicação, gravação e re-
produção à medida que estas se tornassem populares.
Também novos significados e práticas artísticas surgem a
partir da recombinação de um dado (um texto literário
gravado em áudio, por exemplo) transportado para outro
registro e recombinado de acordo com as diferentes técni-
cas possíveis na outra mídia – as inserções sonoras, cortes
e pausas de edição que transformam A guerra dos mundos
em outra coisa quando transmitida ao vivo, por exemplo.
115
Villa-Forte também publicou Escrever sem escrever: literatura e
apropriação no século XXI, um trabalho que pensa a literatura num
contexto de reapropriação propiciado pelas tecnologias digitais e a
internet.
114
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Da experimentação pura com um invento técnico tam-
bém surgem outras recriações; o gramofone de Edison
nas mãos do artista visual húngaro e professor na Bauhaus
alemã László Moholy-Nagy poderia virar um instrumento
produtivo, “de forma que o fenômeno acústico surja por
si só graças à gravação das marcas necessárias sobre um
disco sem existências acústicas prévias”116. A sugestão de
Moholy-Nagy (e de outros) nesse período para produzir
música com o gramofone vai ser efetivada com a música
concreta a partir de 1948, com o francês Pierre Schaef-
fer em experimentações sonoras com microfones, vozes
de atores e outros sons possíveis de serem obtidos em um
estúdio de rádio da época. É nessa década também que o
gravador de fita magnética passa a ser comercializado e,
com a portabilidade que gradativamente passou a permi-
tir, viabilizar novas experimentações sonoras – como as
do egípcio Halim El-Dabh, que, com um gravador de fita
magnética de um estúdio de uma rádio do Cairo, no Egi-
to, produz em 1944 “The Expression of Zaar”, considerada
uma das primeiras músicas eletrônicas feitas a partir de
manipulações em estúdio de sons registrados (pelo grava-
dor) de uma cerimônia religiosa na época117.
Sendo desde o princípio corte, do movimento contí-
nuo ou de uma história passada à frente da lente118, o cine-
116
Moholy-Nagy, citado por Kittler, op. cit., p.79.
117
El-Dabh foi às ruas capturar sons externos de uma antiga cerimô-
nia zaar, um tipo de exorcismo realizado em público. Intrigado com as
possibilidades de manipular o som gravado para fins musicais, ele acre-
ditava que poderia abrir o conteúdo de áudio bruto da cerimônia zaar
para uma investigação mais aprofundada sobre o “som interno” contido
nela. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Halim_El-Dabh.
118
Kittler, op. cit., p.177.
115
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ma seria uma arte ainda mais afeita a recombinações. Os
dados registrados em duas diferentes formas (imagem e
som, em movimento) ganhariam a possibilidade de diver-
sos efeitos especiais em complexos estúdios de edição (e
também produção) com os melhores gravadores, micro-
fones e outros equipamentos sonoros que a mais rica das
artes já permitia nos anos 1940 e 1950, principalmente na
Costa Oeste dos Estados Unidos, em Hollywood. Seria a
arte em que a recombinação poderia atingir maior efeti-
vidade e beleza, segundo os franceses Guy Debord e Gil
Wolman, em Um guia para os usuários do detournamè-
nt119, de 1956: “os poderes do filme são tão extensos, e a
ausência de coordenação desses poderes é tão evidente,
que virtualmente qualquer filme que esteja acima da mi-
serável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas
entre espectadores ou críticos profissionais”120. Herdeiros
de Lautrèamont, do Dada e da Bauhaus, Debord e Wol-
man são ligados aos situacionistas, grupo estabelecido na
França a partir de 1957 por diversos poetas, arquitetos,
cineastas, artistas plásticos que se definiam como “van-
guarda artística e política” focada na crítica à sociedade de
consumo e à cultura mercantilizada121.
119
Publicado pela primeira vez no oitavo número da revista surrealis-
ta belga Les Lèvres Nues, em 1956.
120
Esse trecho foi detunado da introdução para O guia dos usuários
do detournamènt publicada pelo BaixaCultura na rede e em formato
zine, 2015.
121
“A ideia de ‘situacionismo’ se relaciona à crença de que os indiví-
duos devem construir as situações de sua vida no cotidiano, cada um
explorando seu potencial de modo a romper com a alienação reinante
e obter prazer próprio.” Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
termo3654/situacionismo.
116
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Um guia para os usuários do detournamènt é um dos
primeiros textos a ter como enfoque o desenvolvimen-
to de um método criativo baseado no plágio. Debord e
Wolman falam, por exemplo, da prática na literatura, mais
bem usada no processo da escrita do que no resultado fi-
nal: “Não há muito futuro no deturnamento de romances
inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um
certo número de empreendimentos deste tipo”. Na poe-
sia, citam a metagrafia – uma técnica de colagem gráfi-
ca desenvolvida pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo
movimento do Letrismo122, que os inspirou. Como “leis
fundamentais do detournamènt”, estão: 1) a perda de im-
portância de cada elemento detunado, que pode ir tão lon-
ge a ponto de perder completamente seu sentido original;
e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto
de significados que confere a cada elemento um novo al-
cance e efeito. Um trecho:
Não se trata aqui de voltar ao passado, o que é reacio-
nário; até mesmo os “modernos” objetivos culturais são
em última análise reacionários na medida em que de-
pendem de formulações ideológicas de uma sociedade
passada que prolongou sua agonia de morte até o pre-
sente. A única tática historicamente justificada é a inova-
ção extremista. […] Na realidade, é necessário eliminar
todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta
área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessi-
dades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos,
hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas.
Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento,
não importa de onde eles são tirados, para fazer novas
122
Movimento cultural situado na França e criado nos anos 1940 a
partir de Isidore Isou, com influências do Dada e do surrealismo.
117
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combinações. As descobertas de poesia moderna relati-
vas à estrutura analógica das imagens demonstram que
quando são reunidos dois objetos, não importa quão dis-
tantes possam estar de seus contextos originais, sempre é
formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal
de palavras é mera convenção. A interferência mútua de
dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expres-
sões independentes, substitui os elementos originais e
produz uma organização sintética de maior eficácia. Po-
de-se usar qualquer coisa.123
Como prática, o detournamènt não era um antagonismo à
tradição, mas acentuação da reinvenção de um novo mun-
do a partir do passado, em um momento em que, pós-
-guerra, a Europa (e a França) viviam uma explosão ar-
tística e de retomada das vanguardas do início do século,
que de certa forma ensinava a todos a “aprender a viver de
uma forma diferente mediante a criação de novas práticas
e formas de comportamento”124. A ideia do desvio propos-
ta no texto de Debord e Wolman parecia funcionar mais
para revelar do que ocultar suas origens. Seria uma for-
ma, entre muitas outras, de entrar diretamente no longo
diálogo do conhecimento, de expor referências e mostrar
a todos o que se quer absorver destas. Da união do que
se aproveita de um lado com o que se aproveita de outro
é que, aprendemos desde cedo, nasce algo diferente. Na
mesma década de 1950 também nasceu acidentalmente
outra técnica influente baseada no plágio, o cut-up. O pin-
tor e poeta Brion Gysin, que havia sido membro do grupo
de André Breton no surrealismo francês, colocou cama-
das de jornais como uma esteira para proteger uma mesa
123
Debord; Wolman, op., cit.
124
Nimus, op. cit., p.79.
118
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enquanto cortava papéis com uma lâmina de barbear. Ao
recortar os jornais, Gysin notou que as camadas fatiadas
ofereciam justaposições interessantes de texto e imagem;
começou então a dividir artigos de jornal em seções, reor-
ganizados de modo aleatório tal qual Tzara propunha em
“Para fazer um poema dadaísta”. Muitos poetas talvez já ti-
vessem feito gestos semelhantes para a criação, mas Gysin
conhecia o escritor William Burroughs e o apresentou à
técnica em 1958, no Beat Hotel, em Paris. Nascia uma par-
ceria que renderia diversas obras em texto e áudio, entre
elas o livro The Third Mind, coleção de cut-ups assinados
pelos dois. Um dos mais singulares escritores do século
XX, Burroughs também usaria a técnica em uma trilo-
gia de livros que inclui The Soft Machine, The Ticket That
Exploded e Nova Express, publicados entre 1961 e 1964,
todos narrativas em que textos existentes cortados e mon-
tados em pedaços eram colocados de maneira aleatória,
combinados com pinturas de Gysin e sons experimentais
recortados por Ian Sommervile – em gravadores de fita
magnética, já mais populares que no Egito de Halim El-
-Dabh em 1944.
Burroughs também descreveria o cut-up de forma di-
dática:
O método é simples. Aqui está uma maneira de fazê-lo.
Pegue uma página. Como esta página. Agora corte do
meio para baixo. Você tem quatro seções: 1, 2, 3, 4, ...
um dois três quatro. Agora rearranje as seções colocan-
do seção quatro com seção um e seção dois com seção
três. E você tem uma nova página. Às vezes diz a mesma
coisa. Às vezes alguma coisa bem diferente – cutape-
ar discursos políticos é um exercício interessante – de
qualquer modo você vai descobrir que isso diz alguma
coisa e alguma coisa bem definida. Pegue qualquer po-
119
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eta ou escritor que você admira, digamos, ou poemas
que você tenha lido muitas vezes. As palavras perderam
significado e vida por anos de repetição. Agora pegue
o poema e datilografe passagens selecionadas. Encha
uma página com excertos. Agora corte a página. Você
tem um novo poema. Tantos poemas quanto você quei-
ra. Tristan Tzara disse: “A poesia é para todos”. E André
Breton chamou-o de tira e o expulsou do movimento.
Diga de novo: “A poesia é para todos”. A poesia é um
lugar e é livre para todos cutapear Rimbaud, e você se
colocar no lugar de Rimbaud.
O método do cut-up traz a escritores a colagem, a qual
tem sido usada por pintores por setenta anos. E usada
pelas câmeras foto e cinematográficas. De fato todos os
cortes de rua do cinema ou de câmeras fotográficas são,
pelos imprevisíveis fatores de passantes e justaposição,
cut-ups. E fotógrafos vão dizer a você que frequentemente
seus melhores instantâneos são acidentes... escritores vão
dizer o mesmo. Os melhores escritos parecem ser aqueles
feitos quase por acidente por escritores até que o método
do cut-up foi tornado explícito – toda escrita é de fato cut-
-ups; eu retornarei a este ponto – não houvesse nenhum
jeito de produzir o acidente da espontaneidade. Você não
pode decidir a espontaneidade. Mas você pode introduzir
o fator imprevisível e espontâneo com uma tesoura.125
A década de 1950 ainda vê, num âmbito menos under-
ground, a pop art avançar na recombinação da collage
modernista e dadaísta com cada vez mais apropriação
dos objetos da cultura de massa, agora também a incluir
a televisão, desde 1930 possível na Europa e nos Esta-
dos Unidos, mas de fato popularizada e tornada símbo-
lo nos lares ocidentais na década de 1950. Andy Warhol
125
Burroughs, O método cut-up, p.85.
120
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e Roy Lichtenstein, dois dos nomes (não por acaso dos
Estados Unidos) mais conhecidos desse movimento, se
tornariam pop ao usar elementos das histórias em qua-
drinhos, da propaganda publicitária e dos programas
de entretenimento televisivo para parodiar e comentar a
apatia que o consumo (também de produtos midiáticos)
pode produzir nas pessoas. Como em Duchamp, a obra
artística na pop art é produzida a partir de trechos de
outras obras comercializadas em escala industrial, o que
ainda hoje levanta diversas questões sobre propriedade
intelectual e autoria. Warhol, em especial, tem suas obras
mais conhecidas feitas a partir de imagens e objetos
não produzidas por ele, mas sim reapropriados, caso de
Marilyn Monroe (1967), 250 serigrafias coloridas feitas em
sua Factory a partir de uma foto de divulgação da atriz
símbolo da Era de Ouro de Hollywood. E, também, das
caixas de Brillo Box, um detergente popular nos Estados
Unidos, trazidas por Warhol para o mundo das artes em
1964 e registrado em copyright desde então.
Na maioria dos processos legais que Warhol respondeu à
época, os tribunais reconheceram o seu gesto de apropriação
como artístico. Para fundamentar sua resolução, evocaram
sua trajetória, o contexto do momento e testemunhos de
especialistas no assunto, como críticos, historiadores e
professores, atores do campo artístico que poderiam dar
uma “definição” do que a sociedade considera um artista.
As apropriações de Warhol passariam no “teste estético”
também porque demonstraram uma “originalidade” em
sua ação; como antes o fizera Duchamp, em Brillo Box
Warhol modificava de forma significativa e irreversível o
campo (e as regras) da arte. O paradoxo da história é que
121
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Warhol (e seus herdeiros depois) se mostraram inflexíveis
sobre modificações e usos das obras do artista126.
Warhol não seria o primeiro, nem o último, a agir de
forma contraditória ao usar tudo na hora de criar, mas
não permitir que outros usassem nada do que produziu.
Há um termo na psicologia para essa prática, chamado de
“aversão à perda” (loss aversion, em inglês), que diz: “não
gostamos de perder o que temos”. Fala de uma tendência
de pôr um valor mais alto nas perdas do que nos ganhos;
os benefícios que obtemos ao copiar o trabalho dos ou-
tros não nos cria uma grande impressão, mas, quando
nossas ideias são copiadas, percebemos como uma perda
e ficamos como cães de guarda sedentos por vingança127.
Os Estúdios Disney seriam, talvez, o caso mais conheci-
do dessa prática: usou extensivamente o domínio públi-
co para resgatar algumas de suas principais histórias –
Branca de Neve e os sete anões, Pinóquio, Alice no País das
Maravilhas, Cinderela, A Bela Adormecida, Alladin – e
transformá-las em desenhos animados de sucesso comer-
cial128. Mas, quando chegou a hora de os direitos de autor
dos primeiros filmes da Disney começarem a expirar, fi-
zeram forte pressão para que o termo de direitos de autor
fosse prorrogado nos Estados Unidos. A última extensão,
Copyright Term Extension Act, de 1998, ficou conhecida
também como “Mickey Mouse Protection Act” e transfe-
126
Como mostrado em Perromat, op. cit., p.448.
127
Como mostrado em uma cena da parte 4 do documentário Every-
thing Is a Remix, de Kirby Ferguson (2015). Disponível em: https://
vimeo.com/baixacultura.
128
Mais informações sobre os casos de histórias coletadas do domínio
público que viraram animações de sucesso na Disney em: http://bai-
xacultura.org/a-armadilha-disney.
122
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riu a entrada em domínio público de uma obra para 70
anos após a morte do autor, 120 anos após a criação ou
95 anos após a publicação da obra. Esse último prazo é o
caso de Mickey Mouse, publicado em 1928, que estará em
domínio público em 2024 – a não ser que a Disney faça
novamente lobby para postergar essa data.
IV.
Em contestação declarada ao sistema da propriedade inte-
lectual ou por passarem a ser parte rotineira do processo
de criação, os casos de reapropriação de ideias passariam a
ser tão frequentes quanto quiséssemos perceber a partir dos
anos 1960. É nessa década que objetos tecnológicos basea-
dos na gravação e reprodução passam a ser comercializados
na maior parte do planeta e deixam de ser apenas aparatos
de especialistas para se tornarem cada vez mais portáteis e
menores, passando a estar em muitas casas de classe média
do mundo ocidental. Os gravadores e reprodutores de áudio
em fita magnética, por exemplo, passam a ser facilmente en-
contrados nos mercados dos grandes centros urbanos com
a produção e comercialização das fitas cassetes – tanto “vir-
gens”, que podem ser usadas para gravar, quanto de música
pré-gravada – a partir de 1964. Patente da Philips de 1963129,
o formato “compacto” da fita cassete vinha concorrer (e mais
adiante substituir) o Stereo 8 (cartucho, ou 8-track), criado
nos Estados Unidos em 1958 e ligeiramente maior que o cas-
sete, e popularizar o hábito de escutar e gravar música em
fitas no lugar das gravações de voz e ditados, como era de
costume com os primeiros gravadores. Seria o combustível
129
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Cassette_tape.
123
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dos gravadores portáteis que se propagam como produtos
comerciais no final dessa década – um dos primeiros é o
modelo Typ EL 3302, da Philips, de 1968 – com a possibili-
dade de armazenar áudios de até trinta minutos em cada um
de seus lados.
Já mais raro e caro, o sampler aparece a partir de 1969
como um aparelho que grava e permite manipulação de
diferentes amostras musicais, e depois como um modo de
recortar e sobrepor músicas – o sampling. Surge a partir
dos sintetizadores, aparelhos que, baseados no forma-
to do piano, reúnem e tocam diferentes sons, como os
primeiros desenvolvidos pelo engenheiro Robert Moog
em 1964, ainda analógicos e que popularizam nomes
como osciladores, envelopes, geradores de ruído, filtros
e sequenciadores com controle de tensão como palavras
(e efeitos) a serem usadas para modificação sonora. Con-
temporâneo de Moog é o Mellotron, de 1963, vendido
inicialmente como um teclado com acompanhamentos
pré-gravados (em fitas magnéticas) para animar os lares
ingleses, depois usado em diversas bandas de rock como
The Moody Blues, Genesis, King Crinsom e The Beatles
– é o som que abre o clássico “Strawberry Fields Forever”,
composta por John Lennon e Paul McCartney em 1967.
Ainda haveria o Electronic Music Studios (EMS), produ-
zido na Inglaterra em 1969, os Minimoogs e outros antes
do Fairlight CMI, criado pelos australianos Kim Rydie e
Peter Vogel em 1979, principal responsável pela popula-
rização do sampler, usado tanto na propagação da música
eletrônica quanto no rap – um estilo musical inteiramen-
te nascido e tendo por base a reapropriação130. O sampler
Sobre a origem dos samplers no rap, ver o documentário Copyright
130
Criminals, produzido e dirigido por Benjamin Franzen e lançado em
124
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tornou compor, na música pop, também a arte de combi-
nar sons e trechos de músicas131.
Também desse período, o videocassete aparece comer-
cialmente entre 1959 e 1963 com diversos modelos ven-
didos por marcas como Toshiba, Philips e Sony. Baseados
em mecanismo de registro e armazenamento de infor-
mações semelhante ao das fitas magnéticas de áudio, os
primeiros ainda eram aparelhos pesados, barulhentos e
caros, usados mais em empresas, escolas, hospitais. Mas,
na década de 1970, diminuiriam de tamanho e estariam
disponíveis no mercado para, por exemplo, serem usados
para a gravação caseira de programas de televisão. A par-
tir de 1969, com a comercialização das câmeras caseiras
com baterias acopladas (modelo chamado Portapak), os
videocassetes também passariam a exibir vídeos caseiros
dessas câmeras – as primeiras que usam fitas magnéticas
que podem ser reproduzidas nesses aparelhos são do iní-
cio da década de 1970.
As décadas de 1950, 1960 e 1970 são, de fato, as de pro-
pagação do uso de tecnologias de reprodução e gravação de
áudio e vídeo. Mas não podemos esquecer que a cópia im-
pressa não só permaneceu como foi também propulsiona-
da pelos inventos técnicos desse período. Um nome virou
sinônimo de uma prática: Xerox, nascida em 1948 como
marca registrada de copiadoras baseadas no método da ele-
trofotografia, prática que, em 1947, recebeu um novo nome
de mais fácil definição: xerografia (do grego xeros, seco, e
grafia, escrita). A Xerox lançou no mercado sua primeira
2009, disponível em: https://www.pbs.org/independentlens/copyrigh-
t-criminals.
131
Bastos, A cultura da reciclagem, em Rosas; Salgado, Recombinação,
p.10.
125
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máquina de impressão em 1960, a Xerox 914, e a partir dali,
mesmo com outras marcas e modelos de copiadoras que se
seguiram, se tornou sinônimo de cópia e referência de uma
prática artística – a copy art. No Brasil, ela foi rebatizada
como xerografia e muito praticada, em proximidade com a
arte postal (ou mail art), por artistas como o já citado Paulo
Bruscky, Hudnilson Jr. (Rio de Janeiro) e Hugo Pontes (Mi-
nas Gerais). Este último escreveu:
Talvez o mais importante aspecto da xerografia seja o de
ela oferecer ao artista que não tenha habilidade para o
desenho condições de elaborar a montagem de seus pro-
jetos, fundindo planos; linhas e sombras, sem qualquer
instrumento auxiliar que a técnica do desenho exige.
Através deste processo eletrônico, podemos transpor
para os vários graus de densidade do branco e preto
imagens cromáticas, reticuladas e mesmo em relevo (no
caso, objetos transformados em figuras), o que muito se
aproxima das colagens, possibilitando um retorno às ex-
periências dos tachistas.132
A fita e o videocassete, o gravador de áudio e as câme-
ras de vídeo portáteis e as fotocopiadoras trouxeram um
aspecto até então novo para a questão da propriedade
intelectual e da propagação da cultura livre: a reprodu-
ção de canções, vídeos e textos para fins caseiros e não
comerciais. Para além das cópias ditas piratas, que, como
vimos, sempre acompanharam as reproduções legalmen-
te permitidas, a chegada das tecnologias de gravação e re-
produção às casas das pessoas tornou popular a cópia pri-
vada, que não pagava direitos autorais a quem quer seja.
Mais do que popular, hábito: gravar uma fita cassete com
músicas escolhidas de uma ou mais rádios, por exemplo,
132
Pontes, O que é arte xerox?, em Rosas; Salgado, op. cit., p.18.
126
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se tornou um dos melhores presentes quando se queria
conquistar alguém nos anos 1980.
O potencial recombinante das tecnologias de gravação
e reprodução desenvolvidas na segunda metade do sécu-
lo XX criaram um problema também para a indústria que,
desde a propagação dos direitos autorais em meados do sé-
culo XIX, se erigiu baseada na propriedade intelectual. Foi
assim quando, em 1964, a Phillips lançou o cassete de áudio
e a indústria fonográfica primeiro tentou impedir o lança-
mento do produto e depois fez lobby no Congresso dos Es-
tados Unidos para que fosse criado um imposto sobre os
cassetes virgens para compensar as perdas da indústria re-
sultantes das cópias que os usuários fariam de seus LPs para
cassetes. O mesmo aconteceu em 1976, quando a Sony lan-
çou o videocassete formato Betamax e a Universal Studios e
os Estúdios Disney abriram um processo contra a empresa
acusando-a de que os produtos resultantes desses aparelhos
incitariam à violação dos direitos autorais133.
Neste último caso, uma batalha judicial que durou oito
anos trouxe o reconhecimento de que a pessoa que gravava
o último capítulo da novela no videocassete Betamax (ou
outros tipos que se seguiram) não praticava pirataria134. Em
muitas outras situações semelhantes ocorreu o mesmo: ne-
nhuma lei conseguiria coibir de forma eficiente o uso pri-
vado e comunitário das obras sem o pagamento dos direitos
autorais correspondentes. Não seria possível controlar a re-
produção caseira sem fins comerciais quando as tecnolo-
gias de reprodução e gravação não só permitem como têm a
cópia para qualquer fim, inclusive o pessoal, como método
básico de funcionamento.
133
Ibidem.
134
Ibidem.
127
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Como máquina a unir gravação e registro de texto, áu-
dio e imagem, o computador pessoal passaria a ser vendi-
do e popularizado por empresas criadas no Vale do Silício
a partir de 1975. Duas décadas depois, iria se juntar à in-
ternet para tornarem-se, ambos, responsáveis por fazer o
processo de criação ser ainda mais baseado na cópia, o que
ampliaria o debate sobre propriedade intelectual, pirataria
e cultura livre para níveis até então não conhecidos.
128
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129
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CAPÍTULO 5
CULTURA LIVRE
130
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Vendedores de software querem dividir
os usuários e conquistá-los, fazen-
do com que cada usuário concorde em
não compartilhar com os outros. Eu me
recuso a quebrar a solidariedade com
os outros usuários deste modo. Eu não
posso, com a consciência limpa, assi-
nar um termo de compromisso de não di-
vulgação de informações ou um contrato
de licença de software. Por anos eu
trabalhei no Laboratório de Inteligên-
cia Artificial do MIT para resistir a
estas tendências e a outras violações
de hospitalidades, mas eventualmente
elas foram longe demais: eu não po-
dia permanecer em uma instituição onde
tais coisas eram feitas a mim contra a
minha vontade. Portanto, de modo que
eu possa continuar a usar computado-
res sem desonra, eu decidi juntar uma
quantidade de software livre suficiente
para que eu possa continuar sem nenhum
software que não seja livre.
Richard Stallman, Manifesto GNU, 1985
Por um lado, estes artesãos hi-tech
não apenas tendem a ser bem pagos, mas
também possuem considerável autonomia
sobre seu ritmo de trabalho e local
de emprego. Como resultado, a frontei-
ra cultural entre o hippie e o “homem
organização” tornou-se bastante vaga.
Porém, por outro lado, estes traba-
131
aculturaelivre.indd 131 05/02/21 18:25
lhadores estão presos pelos termos de
seus contratos e não têm garantia de
emprego continuado. Sem o tempo livre
dos hippies, o trabalho em si tornou-se
o principal caminho de autossatisfação
para boa parte da “classe virtual”.
Richard Barbrook; Andy Cameron,
A ideologia californiana, 1995
Governos do Mundo Industrial, vocês,
gigantes aborrecidos de carne e aço,
eu venho do espaço cibernético, o novo
lar da Mente. Em nome do futuro, eu
peço a vocês do passado que nos deixem
em paz. Vocês não são bem-vindos entre
nós. Vocês não têm a independência que
nos une. Estamos formando nosso pró-
prio Contrato Social. Essa maneira de
governar surgirá de acordo com as con-
dições do nosso mundo, não do seu. Nos-
so mundo é diferente. Seus conceitos
legais sobre propriedade, expressão,
identidade, movimento e contexto não
se aplicam a nós. Eles são baseados na
matéria. Não há nenhuma matéria aqui.
John Perry Barlow, A Declaração de
Independência do ciberespaço, 1996
Tudo fica mais fácil quando você não
precisa de intermediários.
Creative Commons, Seja criativo, 2000
132
aculturaelivre.indd 132 05/02/21 18:25
Quando você está baixando arquivos MP3,
você também está baixando o comunismo.
Record Industry Association of Ameri-
ca, Campanha antipirataria, anos 2000
A open source e o copyleft se estendem
atualmente muito além da programação de
software: as “licenças abertas” estão
em toda parte, e tendencialmente podem
se converter no paradigma do novo modo
de produção que liberte finalmente a co-
operação social (já existente e visi-
velmente posta em prática) do controle
parasitário, da expropriação e da “ren-
da” em benefício de grandes potentados
industriais e corporativos.
Wu Ming, Copyright e maremoto, 2002
A ideia é que o copyright significa “all
rights reserved” e o Creative Commons
significa “some rights reserved”. E você
diz quais são eles. Existem várias fór-
mulas, vários tipos de licenças aber-
tas. Trata-se de tentar criar um modo
de coabitação no plano da informação
que seja tolerável, e que evite o que
está acontecendo, que é o controle da
informação pelas grandes companhias.
Agora isso tudo ainda é, de certa for-
ma, um paliativo. O Creative Commons
pode ser visto, como o é efetivamente
133
aculturaelivre.indd 133 05/02/21 18:25
pelos mais, digamos, radicais, como um
estratagema capitalista. O verdadeiro
anarquista não quer saber de Creati-
ve Commons nem de copyleft, é total-
mente radical. A princípio estou com
eles, acho a propriedade privada uma
monstruosidade, seja ela intelectual
ou não, mas sei também que não adian-
ta dar murro em ponta de faca, tapar
o sol com a peneira. Acho que você tem
que transigir, tem que fazer algum tipo
de negociação.
Eduardo Viveiros de Castro, Econo-
mia da cultura digital, em Savazoni;
Cohn, Cultura digital.br, 2009
134
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I.
“A impressora está emperrada novamente!”
Richard M. Stallman, programador de software no labo-
ratório de Inteligência Artificial do Massachusetts Institute
of Technology (MIT), na Costa Leste dos Estados Unidos,
conta que descobriu o problema uma hora depois de en-
viar de seu computador um arquivo de cinquenta páginas
para impressão e perceber que a máquina havia posto tinta
em quatro páginas de um outro trabalho que não o dele.
Não era bem uma novidade, já que havia tido outra situa-
ção parecida, a qual o recém-formado físico por Harvard
havia usado suas habilidades de programação de softwares
para contornar, criando uma pequena alteração no código
do programa da impressora que permitia avisar, a distância,
quando ela estava emperrada, a partir da frase “The prin-
ter is jammed, please fix it”135. Mas dessa vez a impressora
135
Em tradução livre, “A impressora está emperrada, por favor conser-
te-a”. Essa história é contada aqui a partir do Capítulo 1, “For Want a
Printer”, de Free as in Freedom: Richard Stallman and the Free Software
135
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era nova, um dos últimos lançamentos da Xerox (modelo
9700), que imprimia trezentos pontos por polegada em pa-
pel de folha solta a uma velocidade de até duas páginas por
segundo (pps), em um ou dois lados, formato paisagem ou
retrato. Foi doada ao laboratório em modo de teste, hábito
da empresa e de outras baseadas em aparatos tecnológicos
para lugares onde hackers normalmente se reuniam – se eles
conseguissem hackear, muitas vezes eram chamados para
trabalhar nessas empresas. Nos anos 1960 e 1970, o MIT foi
um dos primeiros lugares onde essa comunidade de pro-
gramadores de software e hardware defensores da ideia de
que “toda informação deve ser livre”, que remete a Thomas
Jefferson, ao marquês de Condorcet e ao nascimento do li-
beralismo, se reuniam para inventar e compartilhar códigos
para os computadores cada vez mais potentes e menores
que habitavam os centros de pesquisa. Entre uma pizza de
madrugada e um interesse nerd e diletante que aprofunda-
va qualquer assunto aparentemente banal, como o formato
de uma cenoura, ou um tanto complexo, como formas de
fazer ligações telefônicas de graça, buscavam criar soluções
criativas para problemas complexos. Em suma: hackeavam.
Quando Stallman percebeu o problema na nova im-
pressora da Xerox, pensou em aplicar a correção antiga e
hackeá-la novamente. No entanto, ao procurar o software
da máquina da Xerox que lhe permitiria corrigir ou modi-
ficar a impressora, ele descobriu que a empresa não havia
enviado, como era costume até então, um software de cor-
tesia para que os programadores pudessem ler o código,
mas apenas um arquivo quase infinito de 0 e 1 chamado
binário. Ele até poderia converter os 0 e 1 em instruções
Revolution, biografia de Richard Stallman escrita por Sam Williams.
136
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para máquinas de baixo nível com programas chamados
disassemblers e, então, tentar fazer rodar na carne da im-
pressora, mas seria uma tarefa lenta e difícil, que poderia
ocasionar anos em impressões congestionadas e aborreci-
mentos diversos.
O que Stallman fez, então, foi ir atrás do programa. Des-
cobriu que outro programador, na Universidade Carnegie
Mellon, também na Costa Leste dos Estados Unidos, ti-
nha o software. Ao visitá-lo com o crachá “pesquisador do
MIT”, conversou de modo cordial também com outros en-
genheiros envolvidos na produção da Xerox e fez o pedido
de acesso ao código do software da impressora. Foi então
informado que o código era uma novidade considerada de
vanguarda, portanto devia permanecer secreto e não ser
compartilhado. Stallman saiu da universidade sem falar
nada, com raiva e sem a cópia, com a sensação de que o que
era antes livre e compartilhável estava, no final da década
de 1970, se tornando confidencial. Não por alguma censura
legal do governo, mas por interesses de mercado; até então
não existia acordo de confidencialidade (em inglês, nondis-
closure agreement, NDA) na indústria de software, o que fa-
zia com que todo software fosse livre, com seu código-fonte
disponível para qualquer um que o quisesse ler e modificar.
Um software de computador – ou de uma impressora –
funciona como um conjunto de instruções para que a má-
quina execute funções. É escrito em uma linguagem que
esses inventos técnicos saibam ler e processar; quanto mais
na carne, mais de baixo nível é a linguagem; quanto mais
próximo da interface com o humano com mais de alto ní-
vel. Um conjunto finito de procedimentos a serem exe-
cutados por uma máquina é chamado de algoritmo, uma
palavra árabe ( ) لخوارزميةlatinizada no contexto da mate-
137
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mática ainda no século VIII, mas que teve sua primeira
utilização destinada a um computador feita pela condessa
Ada Lovelace136 para a máquina analítica de Charles Bab-
bage – um gigantesco aparato basicamente para resolver
logaritmos e funções trigonométricas – no final do século
XIX. Como tudo que é baseado em instruções, as presen-
tes em um algoritmo funcionam a partir da circulação de
informações, nesse caso entre máquina e humanos media-
dos pela linguagem; não ter acesso ao código que rege a
circulação de informações entre esses polos é não saber o
que está sendo trocado, portanto também não saber como
um procedimento está sendo executado, não ter condi-
ções de modificá-lo, seja para reparar um bug ou propor
uma melhoria, e, por fim, não poder passá-lo para outros
– que, sem ter a chave para abrir a caixa-preta do algorit-
mo, pouco podem fazer com ele.
Assim como um bem cultural, um software tem em sua
gênese o compartilhamento de informação e a recombi-
nação de ideias. Quando Stallman, no final da década de
1970, percebe que as informações de um software passam
a ser fechadas por motivos de confidencialidade, e só se-
136
A inglesa Augusta Ada King, condessa de Lovelace (1815-1852),
filha do poeta conhecido como Lord Byron (com quem pouco con-
viveu até os seus oito anos, quando Byron morreu), foi a primeira a
reconhecer que a máquina analítica de Babbage possuía aplicações
além do cálculo e, então, publicou o primeiro algoritmo, em 1843,
destinado a ser executado por essa máquina. Como resultado, ela é
considerada uma das primeiras programadoras. É, também, uma das
raras mulheres na história das tecnologias que teve sua história conta-
da, entre muitas outras que, tendo papéis importantes, foram apaga-
das das narrativas que hoje são as mais adotadas na documentação da
história da tecnologia. Sobre Ada Lovelace, ver: https://en.wikipedia.
org/wiki/Ada_Lovelace.
138
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rem acessíveis mediante pagamento, acontece um movi-
mento em alguns aspectos semelhante ao que ocorreu na
consolidação do copyright e do direito de autor na Europa
do século XVIII: o fechamento privado do que antes era
comum e de livre acesso. Como passa a ter cada vez mais
valor em sua circulação no mercado capitalista, o software
passa a ter um proprietário; seu código, agora fechado, é a
chave do valor do produto, o segredo mais bem guardado
que determina sua exclusividade.
Ao contrário, porém, de um bem cultural, um software
é um conjunto de instruções para uma máquina. Como
vamos nos comunicar com uma máquina se não conhece-
mos seu código e sua linguagem? Não vamos. Ou melhor,
quem vai deter a exclusividade de se comunicar será quem
detém a propriedade do código de software. Um problema
de comunicação é resolvido com a garantia de privilégio
do emissor: só quem produziu, a partir de informações
comuns, tem esse direito. A partir do caso da Xerox 9700,
Stallman é instado a questionar: mas o direito de acesso,
uso e reuso das informações necessárias para um aparato
técnico funcionar não são também importantes? Para ele,
recusar-se a oferecer o código-fonte do software não era
apenas a descontinuidade de uma regra estabelecida des-
de o final da Segunda Guerra Mundial, quando, a partir de
Alan Turing e outros, os softwares começaram a ser im-
portantes, mas uma violação da Regra de Ouro, o ditado
moral básico que dizia “faça aos outros o que você gostaria
que fizessem a você”137.
De sua insatisfação pessoal e desejo de buscar manter as
informações abertas e livres, Stallman estabelece, no final
137
Williams, Free as in Freedom, p.11.
139
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da década de 1970, a ideia do software livre como um pro-
grama de computador que daria liberdade ao seu usuário,
tal qual nos primeiros anos dos softwares de computador,
(0) de executar o programa, para qualquer propósito; (1)
de estudar o programa e adaptá-lo para as suas necessida-
des; (2) de redistribuir cópias do programa; (3) de modificar
(aperfeiçoar) o programa e distribuir essas modificações138.
De modo sorrateiro mas imprescindível, o software livre
se espalharia junto com a internet e a popularização dos
computadores nos anos 1980 e 1990 e seria levado a outras
áreas, como a cultura, na qual encontraria terreno fértil
para se expandir. A partir do software livre se estabelece
o copyleft, nos anos 1980, que depois vai fazer a cultura
livre se propagar nos primeiros anos da internet comercial
como uma ideia, um movimento de pessoas e uma práti-
ca aliada ao compartilhamento de todo tipo de arquivo
na internet (o download), a livre recombinação de ideias
para criação de bens culturais e um desafio às mudanças
na legislação do direito autoral a partir das transforma-
ções ocasionadas pela internet.
A ascensão do streaming e a popularização das redes
sociais na internet, já no final dos anos 2000, tornam as di-
ferenças significativas que caracterizam um software e um
bem cultural, como um livro ou uma música, mais visíveis
do que nos primeiros anos da internet. Por trás da tecno-
logia e do livre compartilhamento há a energia – a ener-
gia viva139 de um trabalho imaterial a que em muitos casos
138
Em sua definição primeira, em inglês, no site da Free Software
Foundation, disponível em: https://www.gnu.org/philosophy/free-
-sw.html.
139
Pasquinelli, A ideologia da cultura livre e a gramática da sabota-
gem, em Belisário; Tarim (orgs.). Copyflight, p.52.
140
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a cultura livre da internet não atentou. “O abuso precede
o uso”, diz o francês Michel Serres140, uma boa frase para
explicar o sentimento de ressaca que a internet pós-2016
trouxe a todos que nos embriagamos com a “liberação do
polo emissor da informação” dos primeiros anos da rede
e não conseguimos atentar para alternativas econômicas e
políticas da construção de uma rede que, nos anos finais da
década de 2010, ajudou a espalhar uma revanche fascista
formada por iniciativas políticas de colonização da rede e
propagação de ódio presente em vários cantos do planeta.
II.
Em 27 de setembro de 1983, Stallman enviou um e-mail
pela então Arpanet, rede precursora da internet, que liga-
va principalmente centros de pesquisa em universidades
dos Estados Unidos:
A partir do próximo Dia de Ação de Graças, vou escrever
um software completo compatível com Unix chamado
GNU (sigla para Gnu Não é Unix), e o compartilharei
livremente com qualquer um que possa usá-lo. […] Eu
considero que a regra de ouro requer que se eu gosto de
um programa eu tenho que compartilhá-lo com outras
pessoas que gostam dele. Eu não posso, em boa consci-
ência, assinar um acordo de não quebra ou um acordo de
licença de software. Então, para que eu possa continuar
a usar computadores sem violar meus princípios, eu de-
cidi reunir um corpo suficiente de software livre de tal
modo que eu esteja apto a passar sem o uso de qualquer
software que não seja livre.141
140
Ibidem.
141
Trecho de Initial Announcement. A história do Projeto GNU difere
141
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O e-mail encerrava com a assinatura que Stallman costu-
mava usar na Arpanet (RMS) e a caixa postal para comu-
nicação, em Cambridge. Seria o passo inicial do Projeto
GNU, iniciativa que inaugura a ideia de um software que,
na contramão dos cada vez mais fechados softwares lan-
çados no início dos anos 1980, seria livre para diferentes
tipos de uso e modificação, com seu código disponível
para qualquer um acessar. Era um projeto em que o pro-
gramador vinha trabalhando fazia alguns anos, inspirado
por uma ética hacker que o influenciara no MIT, baseada
no acesso e no compartilhamento total de informação e
na colaboração em vez da competição. E que tinha por
princípios: 1) o acesso a computadores – e qualquer outro
meio que seja capaz de ensinar algo sobre como o mundo
funciona – deve ser ilimitado e total; 2) toda informação
deve ser livre; 3) não acredite na autoridade e promova
a descentralização; 4) hackers devem ser julgados segun-
do seu hacking, e não segundo critérios sujeitos a vieses
tais como graus acadêmicos, raça, cor, religião, posição
ou idade; 5) você pode criar arte e beleza no computador;
6) computadores podem mudar sua vida para melhor142.
desse plano inicial – o começo, por exemplo, foi adiado até janeiro
de 1984. Muitos dos conceitos filosóficos de software livre não foram
detalhados até alguns anos depois, como afirma o texto que contex-
tualiza o manifesto, disponível, assim como o manifesto, também em
português no site oficial do projeto, disponível em: https://www.gnu.
org/gnu/initial-announcement.pt-br.html.
142
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89tica_hacker. Exis-
tem muitas definições de “hacker”; uma das mais precisas vem de
Gabriella Coleman em Coding Freedom: The Ethics and Aesthetics of
Hacking, livro produzido a partir de uma etnografia em comunidades
de hackers, que assim os apresenta: “Obcecados por computador mo-
vidos por uma paixão curiosa por mexer e aprender sistemas técnicos,
142
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Presente como um modus operandi nas comunidades de
programadores dos anos 1960 e 1970 na qual Stallman se
criou, essa ética hacker começava, segundo ele, a mudar
com a ida de muitos membros para empresas privadas de
tecnologia, que começavam a surgir aos montes no final
da década de 1970 e início de 1980 para comercializar
computadores pessoais, softwares e hardwares diversos.
A debandada da comunidade hacker no laboratório
onde Stallman trabalhava143 representava bem esse movi-
mento: no início de 1980, boa parte dos integrantes do AI
Lab (Laboratório de Inteligência Artificial) foram contra-
tados pela empresa Symbolics, criada por Russ Noftsker,
um integrante do laboratório que liderava o grupo que
estava abandonando alguns princípios hackers, como
deixar aberto e compartilhar o código-fonte, para comer-
cializar seus produtos. A disputa de Noftsker era, espe-
cialmente, contra o grupo liderado por Richard Green-
blatt, também do MIT, que havia criado em 1979 o projeto
LISP Machine, uma empresa que produzia computadores
baseados na linguagem de inteligência artificial LISP e
que buscava permanecer fiel ao espírito hacker, sem abrir
e frequentemente comprometidos com uma versão ética da liberda-
de de informação” (tradução livre com base no original: “computer
aficionados driven by an inquisitive passion for tinkering and learning
technical systems, and frequently committed to an ethical version of
information freedom”). Para uma abordagem da ética hacker como
contraponto à ética protestante, ver Himanen, La ética del hacker y el
espírito de la era de la información.
143
Stallman dá mais detalhes dessas mudanças em “The Project GNU”,
um dos textos presentes na coletânea publicada como Free Software,
Free Society em 2002, pela GNU Press. A citada aqui é a versão em
espanhol, Stallman, Software libre para una sociedad libre, publicada
pela espanhola Traficante de Sueños em 2004.
143
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mão do código aberto. Greenblatt acreditava que os re-
cursos provenientes da construção e venda de algumas
máquinas poderiam ser reinvestidos no financiamen-
to da empresa, ao passo que Noftsker apostava em um
caminho, tradicional no capitalismo e tornado regra no
mundo das startups de tecnologia a partir de então, de
procurar investidores e apoio em fundos de investimento.
A opção de Noftsker angariou mais pessoas, resultando
na criação da Symbolics e na saída de muitos integrantes
do AI Lab, uma história que Steven Levy conta em seu
livro Hackers: Heroes of the Computer Revolution, no qual
nomeou Stallman, que na disputa ficou ao lado de Green-
blatt, como “O último dos verdadeiros hackers”, também
título do capítulo que detalha o caso.
A proposta de Stallman para o Projeto GNU era dar
aos usuários a liberdade que o Unix, sistema operacional
robusto e o mais usado no período, criado ainda em 1969,
não dava. Para isso, aproveitou as possibilidades que o
Unix ainda permitia à época, como o acesso a seu códi-
go-fonte, e começou a construir seu próprio sistema ope-
racional, que teria de ser compatível com o mais usado
(o Unix) à época, mas, diferente deste, deveria ser “100%
software livre”. Não 95% livre, não 99,5%, mas 100% –
“para que os usuários sejam livres para redistribuir todo
o sistema, e livres para alterar e contribuir com qualquer
parte”144. Daí o nome ser um acrônimo que homenageia
o Unix, mas, ao mesmo tempo, se diferencia: Gnu is not
Unix. Naquele momento, Stallman já havia criado um de
seus trabalhos mais conhecidos, um software editor de
144
Stallman, em um texto em celebração aos quinze anos do GNU.
Disponível em: https://www.gnu.org/philosophy/15-years-of-free-
-software.html.
144
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textos chamado Emacs (abreviação para “edição de ma-
cros”), que apresentava uma amostra do que faria mais
tarde com o Projeto GNU e que “foi livremente compar-
tilhado com quem aceitasse uma única condição imposta:
todas as modificações e melhorias feitas pelos usuários no
software deveriam ser também compartilhadas”145.
No início de 1984, meses depois da anunciar a criação do
Projeto GNU, sem mais o ambiente fértil e colaborativo em
que convivera durante muitos anos, Stallman saiu do MIT
e passou a se dedicar integralmente ao desenvolvimento de
seu sistema operacional. Para ele, sair do instituto era im-
prescindível se quisesse que nada interferisse na distribuição
do GNU como software livre: “O MIT poderia ter se apro-
priado do meu trabalho e imposto seus próprios termos de
distribuição, ou inclusive converter o trabalho em um pa-
cote de software proprietário”146. No mesmo ano, deu início
ao desenvolvimento do Emacs para o GNU, o GNU Macs, o
primeiro programa do novo sistema operacional, ao qual se
seguiriam diversos outros nos anos seguintes, como compi-
ladores de código com diversas linguagens de programação
(GCC), “debugadores” (GNU Debugger), entre outros.
Em outubro de 1985, Stallman funda a Free Software
Foundation (FSF), fundação sem fins lucrativos que até
hoje é responsável pelo projeto GNU. Nesse mesmo ano,
publica o GNU Manifesto, em que apresenta as ideias re-
lacionadas ao seu projeto e chama programadores para
ajudá-lo no desenvolvimento do sistema. Com frases do
primeiro anúncio de dois anos antes e com constantes
145
Em Torres, A tecnoutopia do software livre:. uma história do projeto
técnico e político do GNU, p.128.
146
Stallman, Software libre para una sociedad libreFree Software, Free
Society, p.250-1.
145
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modificações até 1987, é até hoje um documento central
na filosofia do software livre. Alguns trechos:
Vendedores de software querem dividir os usuários e
conquistá-los, fazendo com que cada usuário concor-
de em não compartilhar com os outros. Eu me recuso
a quebrar a solidariedade com os outros usuários deste
modo. Eu não posso, com a consciência limpa, assinar
um termo de compromisso de não divulgação de infor-
mações ou um contrato de licença de software. Por anos
eu trabalhei no Laboratório de Inteligência Artificial do
MIT para resistir a estas tendências e outras violações de
hospitalidades, mas eventualmente elas foram longe de-
mais: eu não podia permanecer em uma instituição onde
tais coisas eram feitas a mim contra a minha vontade.
Portanto, de modo que eu possa continuar a usar com-
putadores sem desonra, eu decidi juntar uma quantidade
de software livre suficiente para que eu possa continuar
sem nenhum software que não seja livre. [...]
Muitos programadores estão descontentes quanto à co-
mercialização de software de sistema. Ela pode trazê-los
dinheiro, mas ela requer que eles se considerem em con-
flito com outros programadores de maneira geral em vez
de considerá-los como camaradas. O ato fundamental da
amizade entre programadores é o compartilhamento de
programas; acordos comerciais usados hoje em dia tipi-
camente proíbem programadores de se tratarem uns aos
outros como amigos. O comprador de software tem que
escolher entre a amizade ou obedecer à lei. Naturalmen-
te, muitos decidem que a amizade é mais importante.
Mas aqueles que acreditam na lei frequentemente não
se sentem à vontade com nenhuma das escolhas. Eles se
tornam cínicos e passam a considerar que a programa-
ção é apenas uma maneira de ganhar dinheiro.
[…]
146
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Uma vez que o GNU esteja pronto, todos poderão ob-
ter um bom software de sistema, gratuitamente como o
ar. Isto significa muito mais do que simplesmente o valor
que todos economizarão em uma licença do Unix. Isto
significa que muita duplicação de programação de sis-
temas será evitada. Este esforço poderá ser utilizado em
avançar o estado-da-arte. O código-fonte completo do
sistema estará disponível para todos. Como resultado,
um usuário que necessite de modificações no sistema será
sempre livre para realizá-las ele mesmo, ou para contratar
qualquer programador disponível ou empresa para reali-
zá-las. Os usuários não estarão mais à mercê do progra-
mador ou empresa que é dono dos fontes e é o único que
pode realizar mudanças.147
O processo do desenvolvimento do GNU a partir de 1985
trouxe diversos aprendizados para Stallman. O principal
deles é o fato de que não bastava criar um projeto que tives-
se como princípio a liberdade e o livre uso e compartilha-
mento se não houvesse alguma forma de proteger e garantir
essa liberdade também de forma jurídica. Assim, em 1989,
foi publicada a General Public License (GPL), uma licença
genérica que cobria todos os códigos do projeto GNU e
que visava estabelecer liberdades de uso que o copyright
em voga nos Estados Unidos não permitia. Stallman pre-
cisava “garantir aos usuários do GNU os direitos básicos
de acesso, cópia, modificação e redistribuição dos progra-
mas e para isso era preciso restringir as restrições a esses
direitos. Ele então estabeleceu, com a ajuda do copyright,
um sistema que permitia a todos o direito da acessarem
os seus programas e a ninguém o direito de restringir esse
Stallman, O Manifesto GNU. Disponível em: https://www.gnu.org/
147
gnu/manifesto.pt-br.html.
147
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acesso”148. Registrou o copyright do programa para, então,
liberá-lo, criando um tipo de processo contagioso em que
todos os usos só são possíveis se transferidos a outros. Ga-
rantia, assim, que ninguém se apropriasse do software.
No texto original da GPL, constam as liberdades que
caracterizariam, a partir de então, o que é um software
livre, e também a justificativa para usar o sistema de
copyright para protegê-lo dele próprio:
Para proteger os seus direitos, nós precisamos fazer res-
trições que proíbem a qualquer um negar a você esses
direitos ou pedir a você que abdique deles. Essas res-
trições traduzem-se em certas responsabilidades para
você se você distribuir cópias do software, ou se você
modificá-lo. Por exemplo, se você distribuir cópias de
um programa, grátis ou por uma taxa, você deve dar aos
recebedores todos os direitos que você tem. Você deve
garantir que eles também recebam ou possam conseguir
o código-fonte. E você deve dizer a ele os seus direitos.149
O hack no sistema jurídico para garantir as liberdades
do software livre que deu origem à GPL ganhou o nome
de copyleft. Foi um trocadilho com a palavra copyright
proposto, segundo conta Stallman150, por seu amigo Don
Hopkins em uma carta enviada a ele em 1984 (ou 1985),
na qual Hopkins escrevia a seguinte frase ao final da men-
sagem: “Copyleft – all rights reversed” (Copyleft – todos os
direitos invertidos), numa clara relação às notificações de
copyright que incluíam a frase “All rights reserved” (Todos
148
Torres, op. cit., p.133.
149
Licença Pública Geral GNU, disponível em: https://www.gnu.org/
licenses/licenses.pt-br.html.
150
Stallman, Free Software, Free Society; Gay, op. cit.; Stallman,
Software libre para una sociedad libre, p.293.
148
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os direitos reservados). Ao longo dos anos, diversas possi-
bilidades de interpretação do trocadilho para além desta
inicial foram criadas, entre elas de que copyleft seria “cópia
de esquerda” em paralelo ao copyright, “cópia de direita”.
Com trocadilho ou de forma literal, o copyleft foi o
conceito, expresso na licença GPL e outras ligadas ao Pro-
jeto GNU que a seguem até hoje, de requerer a posse legal
para, na prática, renunciar a esta ao autorizar que todos
façam o uso que desejarem da obra, desde que transmi-
tam suas mesmas liberdades a outros. A exigência formal
da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá co-
locar um copyright em cima de uma obra copyleft e ten-
tar limitar o seu uso. Stallman já afirmou que seu objetivo
inicial foi idealista: difundir a liberdade e a cooperação,
promovendo o software livre, e substituir o software pro-
prietário que proíbe a colaboração. Sua tentativa foi a de
buscar conciliar a manutenção da liberdade de uso e mo-
dificação do software com uma proteção para que ela não
fosse apropriada livremente por qualquer um. Como ele
mesmo afirmou:
A maneira mais fácil de liberar um programa é colocá-lo
em domínio público, sem direitos autorais. Isso permi-
te que as pessoas compartilhem o programa e suas me-
lhorias, se desejarem. Mas também permite que aqueles
que não acreditam em cooperação convertam o pro-
grama em software proprietário. Eles podem fazer al-
terações, muitas ou poucas, e distribuir seus resultados
como um produto proprietário. As pessoas que recebem
o programa com essas modificações não desfrutam da
liberdade que o autor original lhes deu; o intermediário
despojou-as dela.151
151
Stallman, Software libre para una sociedad libre, p.125.
149
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A partir da GPL e do copyleft, foi construído um aparato
legal que, nos anos seguintes, se provaria uma ideia pos-
sível de ser posta em prática não apenas no universo da
computação, mas também em outras áreas do conheci-
mento e da cultura, aglutinando vários outros grupos em
torno de um desejo antigo exposto na sociedade de demo-
cratização dos bens culturais152. Tornar o direito do acesso
maior que o direito de restrição foi algo que, até então,
costumava se manifestar de diversas formas: na negação
da propriedade intelectual, nas práticas anticopyright que
criticavam a posição de ver os bens culturais como so-
mente mercadorias, no uso indiscriminado de trechos de
outras obras sem efetuar pagamento ou mesmo sem reco-
nhecimento de fonte (como nos diferentes usos de plágio
criativo) e na recusa da autoria a partir do anonimato ou
de identificação coletiva. A ideia de usar o próprio sistema
de propriedade intelectual para burlá-lo se mostrou como
uma novidade que, com a popularização da internet, logo
se espalharia para diversos lugares e áreas muito distantes
da sua origem.
III.
No final dos anos 1990, o copyleft se alastra de pelo menos
duas diferentes formas. A primeira como uma ideia e uma
prática de enfrentamento ao status quo do direito autoral e
do conhecimento tido como mercadoria, caminho adota-
do por movimentos ativistas de áreas como meio ambiente
e direitos humanos; anarquistas, autonomistas e integran-
tes de iniciativas ligadas a uma esquerda antineoliberalis-
152
Torres, op. cit., p.131.
150
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mo; e artistas alinhados a uma contracultura de questiona-
mento da autoridade em diversas áreas, como muitos dos
citados no capítulo anterior. O segundo caminho de pro-
pagação do copyleft se dá como um discurso aglutinador
de práticas em prol da defesa da liberdade de informação e
acesso a partir da digitalização e da internet, caso de mui-
tos hackers ligados ao software livre e ao código aberto e
de ciberativistas que, nessa época, se propagam para áreas
como o compartilhamento livre de arquivos na rede e a de-
fesa de uma mídia livre que busque perspectivas diferentes
do jornalismo das grandes redes.
Em alguns casos, as duas formas se misturam, como ve-
remos mais adiante. Mas, em primeiro lugar, é importante
dizer como, dez anos depois da criação da GPL, em 1999 o
copyleft se torna inspiração principal para a criação de um
movimento em torno de uma cultura livre (free culture), so-
bretudo a partir dos Estados Unidos e da Europa. Projetos
que surgem nessa época, como o Science Commons, Open
Acess e Open Educational Resources (OER) – no Brasil,
traduzido por Recursos Educacionais Abertos (REA)153 –,
vão propagar o livre acesso, uso e compartilhamento de
recursos em diferentes áreas da mesma forma que a esta-
belecida a partir das liberdades do software livre propostas
por Stallman. Em uma sociedade onde informação, código
e lei passam a formar uma trindade cada vez mais pode-
rosa, ideias como a liberdade, os commons e a abertura se
desenvolvem como chaves em um movimento de cultura
livre que visa dar alternativas ao progressivo cerceamento
e controle da cultura à época154.
153
Mais informações sobre Recursos Educacionais Abertos em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Recursos_educacionais_abertos.
154
Mansoux, Livre como queijo: confusão artística acerca da abertura,
151
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Artistas ligados à contracultura e à liberdade do conhe-
cimento passam a olhar para a ideia do copyleft e vê-la
como tática, se apropriando dela e a desenvolvendo para
fins diversos, inclusive jurídicos. É o caso do surgimen-
to da primeira licença livre fora do âmbito do software,
a Licença de Arte Livre155, criada no início de 2000 por
um grupo de artistas franceses no fórum on-line chama-
do Ataque Copyleft. Publicada em julho de 2000, ela se
baseia nos mesmos princípios do copyleft original e surge
pelo desejo de desencadear processos criativos, e não por
questões ligadas aos direitos autorais ou ao uso de apli-
cativos156. Na visão dos que propuseram a licença, o soft-
ware livre abriu o caminho real para a expansão de técni-
cas criativas a partir das mídias digitais, e a arte livre (a
licença) ajudaria a evitar a apropriação exclusiva da arte
livre (como prática): “Se fixarmos o copyleft como um
princípio orientador, a Arte Livre se conecta com o que
a arte sempre foi, desde tempos remotos, mesmo antes de
reconhecerem que ela possui uma história: uma elabora-
ção da mente, em revolta contra uma cultura que gostaria
de dominá-la e entendê-la”157.
De tradição anticopyright e de nomes coletivos dos
anos 1980 e 1990, o coletivo italiano Wu Ming mostra-
ria identificação com o copyleft ao usá-lo como bastião
para a sua defesa contra a propriedade intelectual. Os pri-
meiros textos e entrevistas do coletivo a jornalistas que
mencionam a questão datam de 2002 e 2003; em especial,
em Belisário; Tarim (orgs.), Copyfight, p.195.
155
Disponível em: http://artlibre.org/licence/lal/pt.
156
Moreau, Sobre arte livre e cultura livre, em Belisário; Tarim, op.
cit., p.159.
157
Ibidem, p.162.
152
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Copyright e maremoto158, texto publicado por um dos in-
tegrantes do coletivo (Wu Ming 1), busca defender a open
source e o copyleft como estratégias que se aliam ao livre
compartilhamento contra a privatização da cultura – e
que poderiam superar a legislação de propriedade intelec-
tual da época. A força do copyleft derivaria do fato de ser
uma inovação jurídica vinda de baixo que supera a mera
“pirataria”, enfatizando a pars construens159 do movimen-
to real160.
A open source e o copyleft se estendem atualmente mui-
to além da programação de software: as “licenças aber-
tas” estão em toda parte, e tendencialmente podem se
converter no paradigma do novo modo de produção que
liberte finalmente a cooperação social (já existente e vi-
sivelmente posta em prática) do controle parasitário, da
expropriação e da “renda” em benefício de grandes po-
tentados industriais e corporativos.161
Em 2005, o texto Notas inéditas sobre copyright e copyleft
atualiza o tema e aponta o copyleft não como um movi-
mento ou ideologia, mas um termo que “abriga uma série
de práticas, cenários e licenças comerciais e que encarna
o que se precisa para reformar e adaptar as leis autorais ao
‘desenvolvimento sustentável’”162.
158
Wu Ming, Copyright e maremoto.
159
Pars construens é uma expressão que designa um “argumento cons-
trutivo” em algum debate, em contraponto a “pars destruens”“. A dis-
tinção foi feita por Francis Bacon, ainda em 1620. Nota do texto de
Wu Ming, Copyright e maremoto.
160
Ibidem.
161
Ibidem.
162
Wu Ming, Notas inéditas sobre copyright e copyleft, em La Remezcla.
153
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Também no início dos 2000, uma parte do ativismo di-
gital e da academia jurídica passa a observar a movimen-
tação em torno da cultura livre e unir-se em oposição ao
cada vez maior endurecimento de leis de direito autoral,
principalmente nos Estados Unidos, lugar de origem dos
primeiros computadores pessoais, dos softwares para es-
ses computadores e de outros inventos tecnológicos rea-
lizados no Vale do Silício. Algumas dessas atualizações na
lei foram o Digital Millennium Copyright Act (DMCA) e o
Sonny Bono Copyright Act (também conhecido como o já
citado Mickey Mouse Protection Act) – nesse mesmo ano,
o Brasil aprovou sua última lei de direitos autorais, que,
ainda vigente até a publicação deste livro, ampliou de 60
para 70 anos o prazo de proteção de direitos de autor após
sua morte163.
Um dos principais atores do ativismo e do direito que
passa a se organizar em torno da noção de cultura livre
é Lawrence Lessig, advogado e professor de direito em
Harvard. Membro do Berkman Center for Internet &
Society, Lessig acabara de lançar Code and Other Laws of
Cyberspace (1999), livro que o tornara referência em direi-
to e governança na internet, quando se envolveu na defe-
sa de Eric Eldred, organizador de uma página na internet
que disponibilizava livros em domínio público e que havia
tirado o seu site da rede em protesto ao acréscimo de vin-
te anos no prazo de validade do direito autoral proposto
no Sonny Bono Copyright Act. Conhecido como Eldred
vs. Ascroft, o caso, de 1999, se popularizou no meio em
função do alcance do site, que na época tinha mais de
20 mil acessos por dia, e pela articulação em sua defesa
163
Valente, Implicações jurídicas e políticas do direito autoral na inter-
net, p.150.
154
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proposta por Lessig, que reuniu diversas organizações
em defesa do interesse público, como Eletronic Frontier
Foundation (EFF), a Free Software Foundation (FSF), a
Public Knowledge, entre autores, advogados, economistas
e até empresas de tecnologia, como a Intel164.
Lessig argumentava que a extensão do prazo dos direi-
tos de autor violava a Constituição dos Estados Unidos,
que determinava, como Thomas Jefferson e outros libe-
rais defenderam no final do século XVIII, que a proteção a
direitos autorais teria prazo limitado165. Mesmo apelando
ao documento máximo do país, a ação de Lessig foi ne-
gada em todas as instâncias, inclusive na Suprema Corte.
Serviu, entretanto, para mostrar tanto para Lessig quanto
para outros ativistas que os caminhos políticos e jurídicos
tradicionais estavam fechados para a negociação sobre fle-
xibilização dos direitos autorais e “que os direitos de aces-
so e a proteção ao domínio público, nos círculos oficiais,
eram vistos como interferências prejudiciais ao comércio
eletrônico”166. No final dos anos 1990, as legislações para
a internet se adaptavam a partir das leis de direito auto-
ral usadas no entretenimento e na cultura, estabelecidas a
partir de acordos como os de Berna e de Paris, no século
XIX, naquele momento também já incorporados à Orga-
nização Mundial do Comércio (OMC).
O caminho buscado a partir das derrotas jurídicas foi
o de construir um fato novo para apresentar outros cami-
nhos, jurídicos e políticos, para a defesa do conhecimento
e da cultura livre. Desse movimento nascia, em 2001, o
164
Ibidem, p.151.
165
Na cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição Ame-
ricana, citada na nota 55.
166
Valente, op. cit., p.154.
155
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Creative Commons (CC), uma organização sem fins lu-
crativos que visava construir licenças alternativas ao res-
tritivo “Todos os direitos reservados” do copyright. Ofere-
cia como opção “alguns direitos reservados”, em que cada
criador poderia escolher o que gostaria de liberar, indo
do mais restritivo – que era igual ao copyright já existente
– ao menos, como o domínio público167. O projeto come-
çou com Lessig, Hal Abelson e Eric Aldred à frente, com
apoio financeiro do Center for the Public Domain, centro
de pesquisas ligado à Universidade Harvard, onde Lessig
trabalhava, tendo por objetivo “expandir o reduzido do-
mínio público, fortalecer os valores sociais do comparti-
lhamento, da abertura e do avanço do conhecimento e da
criatividade individual”168. Procurava ser uma alternativa
pragmática ao sistema vigente do copyright e se inspirava
abertamente no movimento do software livre e no copy-
left, embora trouxesse características mais amplas, com
licenças que serviriam para diversos tipos de obras cultu-
rais e não apenas um tipo (o software), como a GPL.
Como muitas das propostas que buscam ampliar o al-
cance de um dado conhecimento, o Creative Commons
teve que simplificar alguns procedimentos, o que levou a
muitas críticas sobre uma despolitização da iniciativa e da
própria ideia do copyleft. Na construção de seus conjun-
tos de licenças, por exemplo, o CC estendeu as possibi-
lidades de escolha do copyleft original proposto na GPL
sem estabelecer liberdades, direitos nem qualidade fixas
– ou sem distinguir o que seria uma licença livre e uma
167
As licenças CC existentes em 2020 estão detalhadas no site: https://
creativecommons.org/licenses.
168
Em Bollier, Viral Spiral: How the Commoners Built a Digital Repu-
blico of their Own, traduzido a partir de Valente, op. cit., p.156.
156
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licença proprietária, ambas possíveis dentro das seis li-
cenças de escolha no projeto. Assim, Benjamin Mako Hill,
Florian Kramer, Dimitry Kleiner, Anna Nimus, entre ou-
tros à época, apontariam que o CC não estabeleceria uma
posição ética como o software livre, ou mesmo como o
movimento de código aberto169 – dissidência mais flexível
comercialmente em seus princípios que o software livre,
mas que também teria, como este, ideias políticas defini-
das sobre o que estariam defendendo e o que não.
Nessa perspectiva crítica, o Creative Commons dei-
xaria demasiado livres as escolhas para os criadores (ou
consumidores), o que serviria mais para reservar os direi-
tos aos usuários do que aos proprietários de direitos auto-
rais170. Na crítica de Nimus: “o Creative Commons serve
169
Software de código aberto (free/libre/open source software, acrôni-
mo Floss adotado pela primeira vez em 2001) é um nome usado para
um tipo de software que surgiu a partir da chamada Open Source Ini-
tiative (OSI), estabelecida em 1998 (http://www.opensource.org) como
uma dissidência com princípios um pouco mais flexíveis que os do
software livre (https://opensource.org/osd), o que propiciou uma ex-
pansão considerável tanto do termo “open source” quanto de projetos e
empresas que têm o software como produto e motor de seus negócios.
A OSI tem como texto filosófico central A catedral e o bazar, de Eric
Raymond, publicado em 1999. Nele, Raymond trabalha com a ideia de
que “Havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios”, para dizer que,
se o código fonte está disponível para teste, escrutínio e experimentação
pública, os erros serão descobertos mais rapidamente. O ensaio original
pode ser lido, na íntegra, em inglês em: http://www.catb.org/~esr/wri-
tings/cathedral-bazaar/cathedral-bazaar, e, traduzido para o português,
em: https://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/arquivos/a-catedral-e-o-ba-
zar-eric-raymond.pdf.
170
Kramer, O mal-entendido do Creative Commons, em Belisário;
Tarim, op. cit., p.180-1.
157
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para ajudar o produtor a manter o controle sobre a ‘sua’
obra, o que legitima o controle exercido pelo produtor an-
tes de rejeitá-lo e impõe a distinção entre produtor e con-
sumidor antes de revogá-lo”171. Nesse entendimento, que
ecoa muitas das práticas antiarte e contrárias ao direito
autoral das vanguardas artísticas do século XX, o CC seria
como uma versão rebuscada do copyright, que “não con-
testa o regime de copyright como um todo nem preserva
o seu estatuto legal de modo a virar a prática do copyright
do avesso, como o copyleft faz”172.
Não é uma surpresa nem um demérito o caminho prag-
mático adotado pelo Creative Commons. De influência mar-
cadamente liberal, da tradição de John Locke, Condorcet e
Thomas Jefferson, Lessig não queria abolir o copyright, mas
reformá-lo. Sua proposta, apresentada via Creative Com-
mons, defendia abertamente a liberdade dos criadores, que
estava sendo atacada pelo constante aumento do prazo de
extensão dos direitos autorais, o que também ameaçava a
manutenção de um domínio público comum. Assim, sua po-
sição foi a de “agregar mais apoio em torno dos objetivos que
refazem a paisagem social da criatividade”173, o que tornou
a iniciativa, pelo menos nos primeiros anos, desprovida de
todos os princípios políticos e éticos contrários ao copyright
que boa parte dos defensores da software livre, do copyleft e
de uma cultura livre de tradição anticopyright traziam.
Em diferentes ocasiões, Stallman veio a público falar
que, com a propagação do CC nos anos 2000, muita gente
passou a questionar a diferença entre copyleft e o Creative
Commons. Nos termos propostos para o hack jurídico
171
Nimus, op. cit., p.52.
172
Ibidem.
173
Ibidem.
158
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do copyleft, apenas uma das licenças do CC estaria con-
templada: a CC BY SA – Compartilhamento pela mesma
licença174, que permite o reuso e o compartilhamento da
obra, inclusive para fins comerciais, desde que mantenha
as liberdades obtidas adiante para outros usos, de modo a
“contagiar” as outras obras e garantir que elas não sejam
fechadas com copyright. Outra licença, a CC BY175, que dá
as mesmas liberdades do domínio público, também é uma
licença livre nos termos da GPL e das quatro liberdades
do software livre, ao passo que as outras quatro principais
licenças Creative Commons – que podem não permitir a
modificação da obra e proibir o uso para fins comerciais,
por exemplo – não seriam livres.
Mesmo com as críticas, a estrutura do CC, a praticida-
de de seu conjunto de licenças e sua intenção de buscar
defender, mesmo que de forma genérica, o compartilha-
mento e o domínio público facilitaram a sua propagação
por diversos países e para além do mundo da tecnologia.
As disputas em torno do compartilhamento de arquivos
digitais nos anos 2000 ajudaram também a popularizar o
Creative Commons como uma alternativa viável para o
combate ao discurso da criminalização da pirataria para
quem baixava arquivos protegidos por copyright na rede.
“Tudo fica mais fácil quando você não precisa de interme-
diários” era uma frase ouvida num vídeo de divulgação do
CC176 da época que ecoava a praticidade para os criado-
174
Texto completo da licença disponível em: https://creativecom-
mons.org/licenses/by-sa/2.5/br.
175
Disponível na íntegra em: https://creativecommons.org/publicdo-
main/zero/1.0/deed.pt_BR.
176
“Seja criativo”, o vídeo, ainda pode ser visto, dublado em português,
no link: https://www.youtube.com/watch?v=FTSnkvni4bM.
159
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res escolherem, de modo antecipado, quais direitos que-
riam preservar (além do crédito como autor, estabelecido
como padrão para todas as obras e reconhecido em qual-
quer tipo de legislação de propriedade intelectual) e quais
queriam liberar. O direito de adaptação ou livre compar-
tilhamento de uma música, por exemplo, facilitaria sua
difusão em diferentes versões remixadas – um caso exem-
plar nesse aspecto é do disco citado nesse mesmo vídeo
de apresentação do CC, chamado “Redd Blood Cells”, no
qual o baixista Steven McDonald, da banda Redd Kross,
regravou em uma versão com baixo em todas as músicas o
disco “White Blood Cells”, do White Stripes, banda só de
guitarra, voz e bateria.
A partir de 2003 e 2004, a difusão do CC fez surgir
grupos que traduziram e adaptaram suas licenças para
as realidades locais em países como Japão, Coreia do Sul,
México, Croácia, Portugal, Espanha, Alemanha, Argenti-
na, Uruguai, México, geralmente organizados a partir de
instituições de pesquisa e universidades ou de grupos au-
tônomos. No Brasil, os primeiros anos da década coinci-
diram com a ascensão de Lula à Presidência do país, em
2002, e de Gilberto Gil como ministro da Cultura, em
2003. Figura central da música brasileira, Gil se reuniu
com Lessig junto do antropólogo Hermano Vianna, e,
segundo consta, “compreendeu rapidamente o projeto e
comprou a causa”177. Na análise de Hermano Vianna, ami-
go e parceiro do músico brasileiro, “a cultura do compar-
tilhamento e principalmente a do sampling estariam tão li-
gadas ao tropicalismo que a compreensão da necessidade
de pensar a cultura livre foi imediata para Gil”178. O quão
177
Valente, op. cit., p.156.
178
Bollier, op. cit., p.185, traduzido por Valente, op. cit., p.157.
160
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recombinado já não era o tropicalismo quando Tropicá-
lia ou panis et circencis, álbum marco do movimento de
1968, juntava Vicente Celestino, John Cage, cultura popu-
lar e erudita passando estrategicamente pela cultura pop
e fortemente influenciada pela antropofagia proposta por
Oswald de Andrade179?
A adesão do Ministério da Cultura (MinC) liderado por
Gil ao Creative Commons ocorreu a partir de ações como
o desenvolvimento da licença CC-GPL, em 2003, que tra-
duziu o texto inicial da GPL para o português, e da adoção
das licenças nos materiais produzidos pelo MinC. Marcou
também um momento de comprometimento do ministé-
rio com o software livre, o que resultou em projetos como
os Pontos de Cultura, que, a partir de 2004, distribuiu kits
de computadores com sistemas operacionais livres para
pequenos produtores culturais Brasil afora. Uma rara
política pública que reuniu tecnologia livre e cultura po-
pular, o Cultura Viva180, como ficou conhecido o projeto,
potencializou a propagação do software e da cultura livre
no país e tornou o Brasil, à época, um dos principais polos
desenvolvedores e consumidores de tecnologias e cultu-
ra livre do mundo. Gil, por sua vez, tornou-se próximo
de Lessig e um defensor público do CC; divulgou-o como
ferramenta democratizante e socializante – o único minis-
179
Em Viveiros de Castro, op. cit., p.81.
180
O Cultura Viva é “uma política cultural voltada para o reconhe-
cimento e apoio às atividades e processos culturais já desenvolvidos,
estimulando a participação social, a colaboração e a gestão compar-
tilhada de políticas públicas no campo da cultura”. Apesar de, no mo-
mento deste texto, o projeto estar parado e nem existir Ministério
da Cultura no Brasil, ele pode ser conhecido em detalhes no portal
http://culturaviva.gov.br.
161
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tro da Cultura de qualquer país a fazê-lo, o que também
contribuiu para dar visibilidade mundial ao projeto181.
Uma posição conciliadora, proposta pelo antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, sintetiza o impacto do Crea-
tive Commons no Brasil e no mundo de um ponto de vista
tanto conceitual quanto pragmático.
É uma tentativa, a meu ver altamente meritória. Eles estão
tentando evitar que o mundo virtual seja cercado, assim
como foi o mundo geográfico. Que ele seja privatizado.
É uma tentativa de manter a informação como um bem
de domínio público. O grande ponto para o Creative
Commons é que a informação não segue o regime da
soma zero, que ela pode ser passada para frente e não
diminui com isso. Isso não significa que um autor deva
ser plagiado; o ponto é facilitar a circulação. […] A ideia
é que o copyright significa “all rights reserved” e o Cre-
ative Commons significa “some rights reserved”. E você
diz quais são eles. Existem várias fórmulas, vários tipos
de licenças abertas. Trata-se de tentar criar um modo de
coabitação no plano da informação que seja tolerável,
e que evite o que está acontecendo, que é o controle da
informação pelas grandes companhias. Agora isso tudo
ainda é, de certa forma, um paliativo. O Creative Com-
mons pode ser visto, como o é efetivamente pelos mais,
digamos, radicais, como um estratagema capitalista. O
verdadeiro anarquista não quer saber de Creative Com-
mons nem de copyleft, é totalmente radical. A princípio
estou com eles, acho a propriedade privada uma mons-
truosidade, seja ela intelectual ou não, mas sei também
que não adianta dar murro em ponta de faca, tapar o sol
181
Valente, op. cit., p.157.
162
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com a peneira. Acho que você tem que transigir, tem que
fazer algum tipo de negociação.182
A propagação da cultura livre nos anos 2000 teve, além do
copyleft e das licenças Creative Commons, outro elemento
importante: a publicação de Free Culture (Cultura livre), de
Lawrence Lessig, em 2004. O livro resgata a história da pro-
priedade intelectual a partir de casos emblemáticos, alguns
deles já comentados aqui – como as batalhas nos tribunais
ingleses do século XVII que originaram o copyright e o uso
de histórias de domínio público pela Disney. Inspirada no
software livre, a obra faz a defesa de um conceito de cultura
livre como aquela que deve ser restrita o mínimo possível,
de forma a possibilitar seu compartilhamento, distribuição,
cópia e uso sem que isso afete a propriedade intelectual dos
bens culturais. Com isso, ajuda a propagar uma visão de cul-
tura que organiza um movimento em prol de modificações
nas leis de direito autoral atuais, que, segundo Lessig e ou-
tros ativistas, dificulta a criatividade e propaga uma “cultura
da permissão”, em que todo criador deve pedir permissão se
quiser usar uma determinada obra, seja qual for a finalidade.
Um movimento pela cultura livre, como passa a ser identifi-
cado nessa época, lutaria para manter um domínio público
vibrante e acessível a todos, criando, além de leis, também
tecnologias, estratégias e táticas para manter as criações li-
vres, não necessariamente “grátis”, parafraseando a conhe-
cida frase de Stallman usada no contexto da liberdade do
software livre: “Think free as in free speech, not free beer”183.
Viveiros de Castro, op. cit., p.93-4.
182
“Pense livre como em liberdade de expressão, não cerveja grátis.”
183
Muito conhecida no meio do software livre, a frase é atribuída a Stall-
man por Lessig pela primeira vez em 2006, disponível em: https://
www.wired.C.om/2006/09/free-as-in-beer.
163
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Cultura livre, o livro, também apresenta propostas prá-
ticas de defesa do domínio público. Algumas delas che-
garam a ser discutidas e ainda hoje são consideradas por
reformistas, embora se tenha a noção de que, para o inte-
resse dos conglomerados de proteção aos direitos autorais
em todo o mundo, elas ainda são vistas como radicais de-
mais. A diminuição do prazo de extensão do copyright,
por exemplo, é uma proposta que sempre existiu e que
Lessig retoma no livro, de forma a considerá-la a partir da
ideia de que esse período “deveria ser longo o suficiente
para incentivar a criação, não mais”184. O que, além de fa-
vorecer o acesso e manter obras por mais tempo em domí-
nio público, evitaria também a necessidade de construir
constantes exceções jurídicas que complicam o entendi-
mento, para o grande público que não é advogado, do que
é protegido e do que é aberto. Lessig afirma que, até 1976,
o período médio de duração de um copyright nos Estados
Unidos era de 32,2 anos, e que talvez esse período médio
fosse adequado.
Sem dúvida, os extremistas irão chamar tais ideias de “ra-
dicais”. (Afinal de contas, eu os chamo de “extremistas”.)
Mas, repito, o período que eu havia recomendado era mais
longo que o período estabelecido por Richard Nixon. Onde
está o radicalismo em pedir uma legislação de copyright
mais generosa do que a presidida por Richard Nixon?185
Outras ideias apresentadas por Lessig na publicação de
2004 soariam como premonitórias para as décadas se-
guintes, como a relacionada ao compartilhamento de ar-
quivos na rede.
184
Lessig, op. cit., p.263.
185
Ibidem, p.285.
164
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Quando for extremamente fácil se conectar a serviços de
conteúdo, será mais fácil se conectar a serviços de acesso
a conteúdo que baixar e armazenar conteúdo nos muitos
dispositivos que teremos para “tocar” conteúdo. Será mais
fácil, em outras palavras, assinar um serviço do que se tor-
nar o administrador de um banco de dados, como todos
no mundo de tecnologias de compartilhamento como o
Napster essencialmente se tornaram. Serviços de conteúdo
competirão com o compartilhamento de conteúdo, mesmo
que cobrem dinheiro pelo conteúdo ao qual dão acesso.186
V.
A internet dos anos 1990 e 2000, período no qual a cultura
livre se espalhou, foi um momento de extrema liberdade e
imaginação, manifestada pelo otimismo reinante em tor-
no das possibilidades que a rede trazia e pela liberdade de
compartilhamento permitida nos diversos sites de dispo-
nibilização dos mais variados arquivos de bens culturais
do planeta. Como uma rede baseada na troca de informa-
ções, a internet desde seus primórdios permitiu e facilitou
o livre compartilhamento de arquivos. Enquanto ainda
era nicho usado principalmente por cientistas, militares e
representantes da contracultura, nos anos 1980 e nos pri-
meiros anos da década de 1990, a livre circulação de infor-
mações não chegou a incomodar de modo significativo as
indústrias baseadas na propriedade intelectual – afinal, na
época, só era possível enviar arquivos pequenos, bytes de
informação que circulavam entre poucas pessoas. Os for-
matos de codificação de um arquivo de áudio, por exem-
plo, só transformariam uma música em dados que po-
186
Ibidem, p.289.
165
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dem ser enviados na internet livremente a partir de 1993,
com o lançamento do MP3187, um dos primeiros tipos de
compreensão de áudio com perdas quase imperceptíveis
ao ouvido humano. Ainda assim, demoraria alguns anos
para que o formato se popularizasse e a capacidade da
transmissão de dados na internet conseguisse transportar
uma música sem sobrecarregar a rede.
Com o início da internet comercial no mundo a partir de
1994 (no Brasil em 1995), milhares de pessoas passaram a
poder subir e baixar arquivos livremente, protegidos ou não
por copyright, a partir de práticas par a par (peer to peer,
também abreviada para p2p), como o torrent, processo des-
centralizado de compartilhamento que facilita o download
de forma a cada usuário poder baixar partes de um arquivo
a partir de outras partes espalhadas em diversos computa-
dores – quanto mais dispositivos, mais rápido o processo.
A facilidade de circulação de informação proporcionada
pela internet cresceu exponencialmente com o aumento
da velocidade das conexões; as redes discadas de 56 kbps
comuns em 1995188, em poucos anos seriam de 1.000 kbps
187
O seu bitrate (taxa de bits) é da ordem de kbps (quilobits por segun-
do), sendo 128 kbps a taxa-padrão, na qual a redução do tamanho do
arquivo é de cerca de 90% – o tamanho do arquivo passa a ser 1/10 do
tamanho original. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/MP3. Como
todas as tecnologias citadas neste livro, é fruto de muitas experiências
e longos anos de pesquisas científicas, que remetem a formas de trans-
mitir sons em alta qualidade e jeitos de codificar áudios, que resulta-
ram no formato MPEG e, então, no MP3 (MPEG3), história contada
em detalhes no artigo “Genesis of the MP3 Audio Coding Standard”,
de H. G. Musmann, da Universidade de Hannover, na Alemanha, dis-
ponível em: https://ieeexplore.ieee.org/document/1706505.
188
Com essa velocidade, um arquivo de música (3,5 megabytes) em
MP3, por exemplo, demoraria em média de 15 a 30 minutos para ser
166
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com a popularização do serviço conhecido como ADSL
(Assymmetric Digital Subscriber Line, Linha Digital Assi-
métrica para Assinante189), responsável pela maior parte
do acesso à internet de computadores pessoais já no início
dos anos 2000. Com mais velocidade para baixar arquivos
maiores na rede, uma prática temida e combatida desde o
princípio do direito autoral voltaria a ser o foco: a pirataria.
Para as indústrias baseadas na propriedade intelectual,
os problemas com a pirataria começaram a valer com o
Napster, software criado em 1999 – ano também em que
baixado para um computador pessoal, enquanto um vídeo de baixa
qualidade (700 megabytes), de 28 a 42 horas. Como os dados pela
internet e a voz pelo telefone eram transmitidos pelo mesmo canal,
somente uma operação poderia ser realizada por vez: baixar um ar-
quivo em MP3 ocuparia a linha telefônica por até 30 minutos, o que
caracterizava, para fins de cobrança, uma ligação local de duas horas.
Uma operação que, a depender do valor do pulso ou do minuto, po-
deria aumentar o valor da conta telefônica em centenas de reais no
Brasil nos primeiros anos de internet comercial (Foletto, Um mosaico
de parcialidades na nuvem coletiva, p.117-8).
189
De modo geral, a ADSL funciona também a partir das linhas e
cabos telefônicos, mas com a diferença de que os dados são dividi-
dos em três na hora do envio: os dados de download, ou seja, dos
cabos que levam as informações da internet para as centrais, e destas
para o computador; dados de upload, do computador para os cabos,
as centrais e a internet; e a voz via telefone, que é separada das ou-
tras informações a partir de um aparelho chamado Splitter, instalado
tanto na linha do usuário como na central telefônica. A transmissão
simultânea desses três tipos de dados se dá em frequências diferentes,
mas nos mesmos cabos: a linha telefônica serve como “estrada” para a
circulação dos dados dos três tipos. Não há mais a discagem para um
número específico para estabelecer uma conexão, como na dial up, o
que desocupa o telefone e não implica cobrança de pulsos quando do
acesso à internet, barateando o serviço. (Foletto, op. cit., p.121).
167
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o formato de distribuição de música MP3 tornava-se co-
mum – por um jovem hacker chamado Shawn Fanning.
Funcionava da seguinte forma: um usuário baixava o soft-
ware, acessava uma interface de busca, procurava por uma
música e, caso encontrasse disponível um arquivo com a
canção (ou disco) disponibilizado por um ou mais compu-
tadores também com o software, selecionava-o para baixar
e esperava. As redes de internet domésticas em 1999 e 2000
eram lentas, com velocidade equivalente a 1/10 a 1/300 da
velocidade de duas décadas depois; então, a espera pelo
download de uma música poderia ser às vezes de horas,
um livro algumas dezenas de minutos e um filme, dias ou
semanas. Em qualquer das velocidades, a possibilidade de
escolha era gigantesca e o arquivo vinha gratuito.
A sacada de Fanning e de seu cofundador Sean Parker
(que depois seria um dos primeiros acionistas do Face-
book) foi criar um software de interface gráfica amigável,
facilmente baixável nos computadores da época, para que
qualquer pessoa pudesse buscar suas músicas, em MP3, por
nome do artista, disco, faixas e até gêneros inteiros, e fazer
o download de uma cópia para sua máquina190. Era o há-
bito de compartilhar músicas, popularizado nas gravações
em fitas cassetes dos anos 1970 em diante, levado a uma
escala global facilitado por um formato que permitia ao
mesmo tempo compartilhar a música e mantê-la consigo
nos HDs, CDs e disquetes da época. Uma música em MP3
baixada no Napster trazia também como novidade o fato
190
Deak; Foletto, Ambiente digital de difusão: por onde circula a
cultura online?, BaixaCultura, 14 jun. 2019. Disponível em: http://
baixacultura.org/ambiente-digital-de-difusao-por-onde-circula-a-
cultura-online.
168
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de ser um “bem não rival”191, o que significa dizer que po-
deria coexistir em diferentes cópias e ser transportada para
qualquer aparelho que conseguisse ler (portanto tocar) as
combinações de 0 e 1 que comprimiam uma canção, por
mais complexa que fosse, em um pequeno arquivo que re-
sultava em cerca de 4 MB de informação. Nesse momento,
não apenas o computador pessoal tocava o formato, mas
uma série de aparelhos de som digitais e dispositivos me-
nores, chamados genericamente de “tocadores de MP3”, di-
fundidos a partir do Ipod, da Apple, lançado em 2001. Sem
falar nos discos compactos a laser (CD-RW), que – como as
fitas antes, mas com capacidade de armazenar cerca de 10
horas de centenas de músicas e não apenas 60 minutos – se
popularizaram como um jeito barato de distribuição físi-
ca de arquivos (capacidade: 700 MB) nesse período, depois
substituídos pelo Digital Video Disc (DVD), com um pou-
co mais de seis vezes a capacidade do CD (4,7 GB), e os pen
drives, com ainda mais espaço (5, 10, 15 GB em diante).
191
Um outro conceito, criado no Brasil pelo professor de ciência da
computação da USP Imre Simon e pelo pesquisador Miguel Said Vieira,
falava em “rossio não rival” (ver Simon; Vieira, O rossio não-rival (The
Non-Rival Commons), Revista da USP). Eles argumentavam que a me-
lhor tradução para commons seria rossio, que, de acordo com o dicio-
nário Houaiss, é um “terreno roçado e usufruído em comum”. Segundo
Savazoni, “o objetivo do esforço empreendido pelos autores era encon-
trar uma forma de traduzir um termo que não encontra em português
correlato ideal, o que o torna realmente difícil de assimilar. Ao fim, a
ideia não ganhou muitos adeptos. Tanto que vários autores optaram
por manter a expressão no original em inglês, “commons”, gerando um
anglicismo que, a meu ver, manteve o conceito secundarizado nos de-
bates político-culturais em português” (Savazoni; O comum entre nós:
da cultura digital à democracia do século XXI).
169
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O download de MP3 gratuito foi a primeira grande pos-
sibilidade de quebra, na internet, do sistema baseado na
venda de bens culturais erigido pela exploração da proprie-
dade intelectual ainda no século XIX. Sem remunerar os
autores pelo download, esse sistema, tendo o Napster como
primeiro caso, foi rapidamente atacado: já no final de 1999,
a Record Industries Association of America (RIAA) moveu
uma ação contra o software de Fanning e Parker, que em
seu primeiro ano de funcionamento teve que responder nos
tribunais pela acusação de pirataria e se defender contra um
pedido de indenização de 100 mil dólares por música bai-
xada. Mesmo com todo o apoio obtido na época, o Nap-
ster perdeu o processo e, no ano seguinte, teve que cessar
o compartilhamento de obras registradas em copyright, o
que não significava que precisasse fechar seus serviços in-
teiramente. Mas não encontrou solução que fizesse o filtro
entre obras com copyright ou não – o que seria muito difícil
sem interferir na autonomia e nos dados de cada uma das
pessoas que disponibilizavam conteúdo no software – e, em
julho de 2001, fechou suas atividades, para no ano seguin-
te reabrir como um serviço de assinaturas de download de
músicas e assim permanecer até hoje192.
A repercussão que o caso teve entre artistas193 e ciberati-
vistas; os mais de 100 mil usuários ativos que o Napster re-
192
Sem o alcance que obteve em seus primeiros dois anos, o site foi
comprado pelo serviço chamado Rhapsody em 2011 e funciona por
assinatura paga no endereço: https://us.napster.com/home.
193
Um dos casos mais emblemáticos dessa época foi o processo que
o Metallica, tendo como porta-voz seu baterista e compositor Lars
Ulrich, moveu em 2000 contra o Napster em busca de não apenas o
dinheiro de Fanning e seu software como o de usuários que baixavam
as músicas da banda, fãs do som do grupo. Se não era algo inédito, era
170
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gistrava em 1999, na maioria jovens do mundo inteiro que
davam seus primeiros passos na internet; a capa da revista
Time de outubro de 2000 com a frase “What’s Next for Naps-
ter?” (“o que vem para seguir o Napster?”) e uma foto do jo-
vem (19 anos) Fanning de boné e fones de ouvido imensos;
todos indícios de que o processo não terminaria ali. Soft-
wares que funcionavam de maneira semelhante, baseados
no compartilhamento p2p, se espalharam pela rede, caso de
Gnutella, Grokster, Kazaa, FreeNet, Morpheus, Soulseek, en-
tre outros, que levaram adiante os mesmos procedimentos
de livre compartilhamento de arquivos, enquanto a RIAA
seguiu e intensificou os impopulares processos contra usuá-
rios que compartilhavam arquivos nesses programas194.
Nos anos seguintes, a miniaturização dos dispositivos
digitais, e consequentemente o seu barateamento, abriu
ainda mais espaço em CD-ROM, DVDs, HDs e pen dri-
ves para armazenamento de arquivos. A popularização de
novas tecnologias de transmissão de dados, como a já cita-
no mínimo raro ver um artista processar seus próprios fãs. Sobre esse
caso, ver: https://en.wikipedia.org/wiki/Metallica_v._Napster,_Inc.
194
Só em 2004 foram 264 ações movidas pela RIAA, processos que, se-
gundo Valente, op. cit., p.82, foram escolhidos de forma exemplar: “A
lei norte-americana, direcionada originalmente a pessoas jurídicas, e
não físicas, previa a indenização de 750 a 30 mil dólares, aumentando
para 150 mil no caso de condutas dolosas, por cada obra cujos direitos
autorais houvessem sido infringidos. As ações causaram grande como-
ção pública, em especial pelos grandes valores envolvidos, mas também
porque a identificação de usuários via endereço IP levava a erros e fez
com que a RIAA movesse ações contra indivíduos errados, como foi o
caso de um processo contra um morto e uma avó que não sabia baixar
música. O resultado, para a indústria de conteúdo, foi uma antipatia e
uma dificuldade de posicionamento subsequente no espaço público”.
171
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da ADSL (que popularizou o conceito de banda larga195),
via TV a cabo, ondas de rádio e satélites, e depois os siste-
mas 2, 3 e 4G também para os smartphones, triplicaram
a velocidade da internet e diminuíram o tempo de down-
load e upload de conteúdos, enquanto o acesso à rede se
tornava mais barato e mais fácil em todo o planeta – so-
bretudo no norte global. Nesse cenário, a batalha pelo livre
compartilhamento de arquivos se tornou uma discussão
incontornável. A cultura livre se espraiava na esteira da
bandeira da liberdade de acesso e circulação de informa-
ção e encontrava espaço para se fortalecer nos serviços de
compartilhamento de arquivos e entre pessoas que baixa-
vam conteúdo (com ou sem copyright, muitos não sabiam
ou não viam diferença) livremente e queriam manter essa
prática. À época, Lessig disse que, “ao passo que no mun-
do analógico a vida dispensa copyright, no mundo digital
a vida está sujeita à lei do copyright”196, uma frase que de-
monstra um certo espírito desses anos em que a principal
questão política e legal na rede girou em torno do down-
load: sua legalidade ou não, seu impacto na construção do
conhecimento, no acesso à informação, na cadeia de pro-
195
Banda larga é um conceito utilizado para, de modo geral, definir
conexões mais rápidas que as discadas via modens analógicos de 56
kbps. A recomendação da União Internacional de Telecomunicação
define banda larga como a capacidade de transmissão que é superior a
2 ou 5 mbps por segundo. A variação do que é considerado banda lar-
ga ao redor do planeta, porém, é diversa; a Colômbia estabeleceu uma
velocidade mínima de 1.024 kbps e os Estados Unidos de 25 mbps,
por exemplo. No Brasil ainda não há consenso que indique qual é a
velocidade mínima para uma conexão ser considerada de banda lar-
ga. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Banda_larga.
196
Lessig, Code and Other Laws of Cyberspace, p.192.
172
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dução das artes, na sustentabilidade de projetos culturais,
na necessidade de uma reforma das leis de direito autoral
para que estas deixassem de criminalizar uma prática ha-
bitual de milhões de pessoas.
Os grandes intermediários já citados, representados
por organizações que tinham dinheiro suficiente para
contratar diversos advogados e ir até o fim em qualquer
processo, acionaram na Justiça alguns ícones do livre com-
partilhamento na rede, caso do site de torrents The Pirate
Bay (TPB). Pressionados por empresas ligadas à Motion
Pictures Association (MPAA), promotores suecos, país de
origem do The Pirate Bay, entraram com acusações em 31
de janeiro de 2008 contra Fredrik Neij, Gottfrid Svartholm
e Peter Sunde, que administravam o site, e Carl Lundström,
empresário sueco que havia financiado de início o TPB,
por ajudar a disponibilizar conteúdos com direitos auto-
rais. Foram condenados em 17 de abril de 2009 a uma pena
de prisão de um ano e ao pagamento de 2,7 milhões de
euros às empresas representadas pela MPAA, como 20th
Century Fox, Columbia Pictures, Warner Bros, EMI, entre
outras. O caso teve apelação em 2010, que reduziu o tempo
de prisão de todos os acusados (4 a 10 meses). Depois de
alguns anos foragidos, cumpriram suas penas e desde 2015
estão liberados. O site, que agregava links mas não hospe-
dava os conteúdos protegidos por direitos autorais alega-
dos, se mantém na ativa a partir de diversos espelhos197.
Na década de 2000, as organizações ligadas à indústria
da intermediação tornaram também comuns campanhas
197
Sobre o caso, ver o documentário The Pirate Bay: Away from the Ke-
yboard, dirigido por Simon Klose e lançado em 2013, disponível na ín-
tegra em: https://www.youtube.com/watch?v=eTOKXCEwo_8. E a pá-
gina na Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Pirate_Bay_trial.
173
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antipirataria em que insistiam na comparação de um ar-
quivo, copiável e não rival, com um bem físico rival como
um CD ou DVD; que um filme baixado era um DVD a
menos vendido e, com isso, se ajudava a “matar” os artistas
de fome198; que a pirataria “acabava com a emoção”, pois o
arquivo baixado não tinha a mesma qualidade do visto em
DVD ou no cinema199; que, “quando você está baixando
arquivos MP3, você também está baixando o comunismo”,
numa imagem hoje histórica em que um Lênin vestido
de farda militar e cabeça de diabo aparece ao lado de um
jovem branco de fones de ouvido em frente a um com-
putador. Houve outros motes parecidos em campanhas,
mas nenhuma chegou a acabar com o compartilhamento
de arquivos; um site fechado era como matar uma cabe-
ça da Hidra de Lerna, outra crescia no lugar. Mas, ainda
assim, serviram para produzir muitos números de cópias
destruídas, sites fechados, pessoas processadas, e, princi-
palmente, para mostrar para a indústria da intermediação
cultural – principalmente estúdios e distribuidoras de ci-
nema e vídeo para a televisão, gravadoras e distribuidoras
de música e editoras de livros – que não seria dessa forma
que terminariam com o compartilhamento de arquivos.
Nos anos 2000 também se propagou a ideia de liberar
bens culturais e educacionais já existentes para uso, com-
partilhamento e reapropriação. Na educação, a partir de
198
Um exemplo está disponível em: http://baixacultura.org/propagan-
das-antipirataria-3.
199
Mote de uma campanha da Honour Intellectual Property (HPI)
que trazia super-heróis como o Super-Homem, Homem de Ferro e
outros salvando o mundo com os dizeres, em inglês, “Piracy kill the
real thrill”. Mais detalhes em: http://baixacultura.org/propagandas-
-antipirataria-o-retorno-2.
174
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2002, a já citada comunidade internacional REA surgiu
com o objetivo de promover o acesso, uso e reuso de bens
educacionais. Nos museus, bibliotecas e instituições de
memória, houve um movimento semelhante com a ado-
ção das licenças Creative Commons, em particular, como
mote para tornar os acervos dessas instituições mais aces-
síveis, conectados e disponíveis para que usuários pudes-
sem contribuir, participar e compartilhá-los200, no movi-
mento chamado Open GLAM (Gallery, Library, Archive,
Museum). Enraizadas nos princípios éticos do software
livre e recombinantes da cultura livre, ambas as iniciativas
conquistaram espaço em diversas instituições e governos
em diferentes lugares do planeta e das mais variadas ideo-
logias. São, em 2020, depois de muita organização, der-
rotas e aprendizados no caminho, as áreas onde mais se
encontram legalmente obras livres.
VI.
O movimento do livre compartilhamento na rede crimi-
nalizado como pirataria só passaria a diminuir sua força
na década seguinte, com a entrada de dois grandes atores
que, juntos, transformariam a internet em algo bastante
diferente daquela dos primeiros anos. O primeiro foram
os serviços de streaming, que, de uma tendência vaga nos
anos 2000, se tornaram um investimento básico mensal,
como água e luz, para milhões de famílias de classe média
em diversos lugares do mundo a partir dos anos 2010. E
200
Em “Os 5 princípios do Open Glam”, Creative Commons br, 24 set.
2019. Disponível em: https://br.creativecommons.org/os-5-princi-
pios-do-open-glam.
175
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que contou com, é importante frisar, o considerável cres-
cimento da velocidade na rede nesse período, com fibras
óticas que permitem uma velocidade pelo menos cem ve-
zes maiores que no início dos anos 2000.
A mesma indústria que promovia campanhas antipi-
rataria soube ouvir uma demanda reclamada por alguns
dos que usavam os torrents para ter acesso a diversas pro-
duções culturais mundiais: faça melhor que eu pago201.
Criaram (ou se aliaram a) plataformas com muita música,
filmes e séries à disposição de forma fácil, barata, numa
interface amigável, já legendados em muitas línguas (caso
dos filmes e séries), com cada vez mais potentes algorit-
mos que aprendiam o gosto das pessoas e indicavam ou-
tros produtos que o assinante poderia querer de forma
cada vez mais precisa. Funcionava, ainda, nos já diver-
sos dispositivos (smartphones, tablets) que passariam a
se tornar cada vez menores, mais potentes e populares, e
com isso conseguiram tanto ganhar aqueles que achavam
difícil baixar um filme (ou uma música) como legalizar
o consumo cultural on-line, já que tudo aquilo que está
no Netflix, no Spotify, na Amazon Prime e no Deezer,
alguns dos mais populares desses serviços em 2020, é dis-
ponibilizado dentro da lei202. Não acabaram com o do-
wnload par a par, via torrent, mas tornaram essa opção
mais trabalhosa, restrita a grupos menores – no início na
década de 2020, ainda um número considerável (e difícil
de mensurar) de pessoas, mas notoriamente menor que
nas décadas anteriores.
201
Sobre essa ideia, leia “Faça melhor que eu pago: desafio à indústria”,
Leo Germani, 10 jan. 2010. Disponível em: https://leogermani.com.
br/2010/01/10/faca-melhor-que-eu-pago-desafio-a-industria.
202
Deak; Foletto, op. cit.
176
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O segundo ator a entrar no cenário e diminuir o mo-
vimento do livre compartilhamento na internet foram as
redes sociais, primeiro o Orkut (ano de lançamento: 2004),
depois o MySpace (entre 2005 e 2008, a rede social digital
mais popular do planeta) e finalmente, e em muito maior
escala, o Facebook (100 milhões de usuários em 2008, 2,5
bilhões em 2020). Navegar na internet era uma frase co-
mum nos anos 1990 e 2000 para designar o hábito cotidia-
no de entrar em um site e, dele, pular para outro, e outro, e
outro, até se perder, horas depois, em uma página em que
não se sabia bem como se havia entrado. Flanêur digital
era outra expressão utilizada para identificar esse cami-
nhante sem rumo pela rede, que se perdia nas esquinas dos
blogs como um andarilho pelas ruas das grandes cidades.
O Facebook, em especial, mudou esse movimento; trou-
xe a cidade inteira para o caminhante andar sem sair do
lugar. Uma cidade construída por uma única empresa pri-
vada que, em cada movimento feito pelo seus habitantes,
produzia um dado, o qual, recombinado a outros milha-
res, tornava-se muito rentável para ser comercializado pela
empresa – o “petróleo” do século XXI, na expressão que se
tornou clichê na boca de governantes e futurólogos junto
de outra também tornada de uso geral a partir dos anos
2010: Big Data.
Falar com as pessoas, escrever, publicar, tirar fotos, ver
vídeos e trabalhar, atividades que antes eram feitas em lu-
gares diferentes na rede, passaram a poder ser realizadas
em um único lugar, o Facebook – que depois, com planos
cada vez mais ambiciosos de criar uma internet parale-
la em seus domínios, foi transformado em dois, com a
compra do Instagram (em 2012, por US$ 1 bilhão), e em
177
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três, com o WhatsApp (em 2014, por US$ 16 bilhões203).
Em conjunto com outras das chamadas big techs (Google,
Amazon, Apple e Microsoft), a empresa criada por Mark
Zuckerberg mudou o jeito de as pessoas produzirem e
consumirem informação na internet. Passou a dizer onde,
como e de que forma a informação passaria a circular na
rede – e não eram mais os sites, torrents e blogs criados
para o livre compartilhamento de arquivos, mas um único
espaço fechado, vigiado e monopolizado, uma ferramenta
de modulação de opiniões e comportamentos conforme
os caminhos oferecidos pelos cada vez mais complexos (e
secretos) algoritmos204.
Foi o fim do curto verão da internet livre205 e o começo
de uma certa ressaca da internet206, em que críticas a certos
203
Fonte: https://tecnoblog.net/151547/facebook-compra-whatsapp-
-16-bilhoes-de-dolares.
204
Ver Souza; Avelino; Amadeu, A sociedade de controle: manipulação
e modulação nas redes digitais.
205
Essa expressão vem do remix de O curto verão da anarquia, de
Hans Magnus Enzensberger, adaptada por Paulo José Lara (vulgo Pa-
jeh) em uma conversa de bar em 2019 em São Paulo, com o nome de
algum projeto que virá.
206
Em 2018, sintetizei essa ideia num texto chamado “Ressaca da
internet, espírito do tempo”, escrito no BaixaCultura. Um trecho:
“Não sabia, ou não queria acreditar, ou não queria escrever nem falar
publicamente que não acreditava, que os grandes atores da internet
transformariam a internet no que ela é hoje, um espaço fechado onde
nós estamos presos em bolhas algorítmicas privadas das quais pouco
ou nada sabemos do seu funcionamento – e só de um ano pra cá,
com Trump e Brexit, começamos a ver as potencialidades nefastas
para a política desse arranjo entre pessoas e sistemas técnicos como
o Facebook”. Disponível em: http://baixacultura.org/ressaca-da-inter-
net-espirito-do-tempo.
178
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comportamentos ingênuos adotados nas duas primeiras
décadas da rede passaram a ser frequentes – entre estes à
cultura livre e, particularmente, ao copyleft. O sociólogo
espanhol César Rendueles, em um livro que é todo uma
análise da crença ciberfetichista de que a internet resolve-
ria todos os nossos problemas sociais, econômicos e po-
líticos (Sociofobia, 2016), resgata um aspecto importante
nessa crítica pós-ressaca: a livre circulação de informação
e compartilhamento de arquivos pode ser vista também
como uma desregulamentação completa, próxima à que
ocorre no livre mercado – que estava na raiz da criação do
copyright e da proposta inicial de Lessig da cultura livre.
Guarda uma relação, portanto, com a universalização do
mercado capitalista desenvolvido a partir do século XIX e
propaga o “dogma de que a coordenação social surge es-
pontaneamente da interação individual egoísta, sem ne-
cessidade de nenhuma mediação institucional”207.
A crença ciberfetichista criticada por Rendueles foi mui-
to popular nos primeiros anos de internet e moldou uma
forma de pensar ainda hoje dominante no noticiário de tec-
nologia e no discurso das startups digitais. Um texto conhe-
cido dessa época a demonstra de maneira nítida: “A Decla-
ração de Independência do ciberespaço”208, publicada em 8
de fevereiro de 1996, escrito por John Perry Barlow – um
dos criadores da EFF e incentivador do Creative Commons
– em resposta a um ato que regularia as telecomunicações
nos Estados Unidos e pela primeira vez incluía a internet209.
207
Rendueles, Sociofobia: mudança política na era da utopia digital, p. 94.
208
Barlow, A Declaração de Independência do ciberespaço, em Fórum
Econômico Mundial, Davos, Suíça, 8 fev. 1996. Disponível em: http://
www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm.
209
Tendo sido um dos criadores da Eletronic Frontier Foundation
179
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“Governos do Mundo Industrial, vocês, gigantes aborreci-
dos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético, o novo
lar da Mente. Em nome do futuro, eu peço a vocês do pas-
sado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos
entre nós. Vocês não têm a independência que nos une”210.
Suas primeiras palavras já trazem, como num manifes-
to, uma visão utópica e idealizada de que a internet seria
algo externo à sociedade, expressa de forma mais evidente
num outro trecho na sequência: “Estamos formando nos-
so próprio Contrato Social. Essa maneira de governar sur-
girá de acordo com as condições do nosso mundo, não do
seu. […] Nosso mundo é diferente. Seus conceitos legais
sobre propriedade, expressão, identidade, movimento e
contexto não se aplicam a nós. Eles são baseados na maté-
ria. Não há nenhuma matéria aqui”211.
Barlow, também poeta e letrista de uma das mais co-
nhecidas bandas da contracultura hippie da Costa Oeste
dos Estados Unidos, o Grateful Dead, soube traduzir a no-
vidade que a internet representou na história da humani-
dade e se esbaldou com a promessa de que essa liberdade
transformaria para melhor toda a sociedade.
(EFF) em 1990, Barlow acompanhava e escrevia sobre aspectos
econômicos, políticos e tecnológicos da internet nesse período. A
declaração é um texto que traz ecos de outra reflexão chamada “A
economia das ideias”, publicada em janeiro de 1994 na revista Wired
(https://www.wired.com/1994/03/economy-ideas), e foi encomen-
dado para um projeto chamado 24 Hours in Cyberspace, um evento
que teve como objetivo reunir fotógrafos, jornalistas, editores, pro-
gramadores e designers para criar, no dia 8 de fevereiro de 1996, uma
“cápsula do tempo” colaborativa da vida on-line da época. Fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/24_Hours_in_Cyberspace#cite_note-4.
210
Ibidem.
211
Ibidem.
180
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Estamos criando um mundo em que todos poderão
entrar sem privilégios ou preconceitos de acordo com
a raça, poder econômico, força militar ou lugar de nas-
cimento. Estamos criando um mundo onde qualquer
um em qualquer lugar poderá expressar suas opiniões,
não importando quão singular, sem temer que seja co-
agido ao silêncio ou conformidade. Nossas identidades
não possuem corpos, então, diferentemente de vocês,
não podemos obter ordem por meio da coerção física.
Acreditamos que, a partir da ética, compreensivelmente
interesse próprio de nossa comunidade, nossa maneira
de governar surgirá. Nossas identidades poderão ser dis-
tribuídas através de muitas de suas jurisdições.212
Outro texto desse período, escrito para uma revista digital
inglesa chamada Mute Magazine213 em 1994, se tornaria
conhecido ao analisar essa ideia tecnoutópica: A ideolo-
gia californiana, de Richard Barbrook e Andy Cameron. A
ideologia em questão seria uma mescla das atitudes boê-
mias e antiautoritárias da contracultura hippie da Costa
Oeste dos EUA com o utopismo tecnológico (outro nome
para o ciberfetichismo) e o (neo)liberalismo econômico.
Uma mescla de ideias um tanto inusitada – “quem pen-
saria que uma mistura tão contraditória de determinismo
tecnológico e individualismo libertário se tornaria a or-
todoxia híbrida da era da informação?”214 – que forma o
espírito das big techs dos anos 1990 em diante e alimenta
o entendimento de que todos podem ser “hip and rich”.
Para isso, bastaria acreditar em seu trabalho e ter fé em
212
Ibidem.
213
Barbrook; Cameron, The Californian Ideology. Mute, v.1, n.3, 1o set.
1995. Disponível em: http://www.metamute.org/editorial/articles/cali-
fornian-ideology.
214
Barbrook; Cameron, A ideologia californiana, p.10.
181
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que as novas tecnologias de informação vão emancipar o
ser humano ao ampliar a liberdade de cada um e reduzir o
poder do Estado burocrático215.
As palavras de Barbrook e Cameron em 1995 são, qua-
se duas décadas depois, precisas e premonitórias:
Por um lado, estes artesãos hi-tech não apenas tendem a
ser bem pagos, mas também possuem considerável au-
tonomia sobre seu ritmo de trabalho e local de emprego.
Como resultado, a fronteira cultural entre o hippie e o
“homem organização” tornou-se bastante vaga. Porém,
por outro lado, esses trabalhadores estão presos pelos
termos de seus contratos e não têm garantia de emprego
continuado. Sem o tempo livre dos hippies, o trabalho
em si tornou-se o principal caminho de autossatisfação
para boa parte da “classe virtual”.216
A ideologia californiana reflete tanto as disciplinas da
economia de mercado quanto as liberdades do “artesana-
to hippie”, um híbrido unido pela fé, por vezes cega, de
que a tecnologia digital vai resolver os problemas e criar
uma sociedade igualitária e sem privilégios ou preconcei-
tos onde, como muito bem representa “A Declaração de
Independência do ciberespaço”, de Barlow, todos possam
expressar suas opiniões sem se importar com o quanto
elas sejam singulares e diferentes.
Com a ascensão do streaming e das redes sociais fica-
ria mais visível que uma sociedade onde as tecnologias
de informação conectadas em rede resolvem tudo não é
necessariamente melhor, e pode ser muito pior. Um siste-
ma algorítmico forte que, como um deus ex machina, seja
chamado para resolver tudo ao final endossa uma crença
215
Ibidem.
216
Ibidem.
182
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também conhecida como solucionismo tecnológico – a
ideia de que basta um software, um algoritmo, mais tec-
nologia, para resolver e consertar todos os problemas do
mundo. É a busca de uma saída mágica, rápida e supos-
tamente indolor que descarta as alternativas institucionais
ou construídas pela organização da sociedade civil, mais
lentas e complexas, e que pode ser comprada pronta, ofe-
recida por empresas criadas ou de alguma forma relacio-
nadas aos serviços fornecidos pelas big techs. Um caminho
que, durante a pandemia do novo coronavírus em 2020,
passou por uma espécie de túnel de aceleração ultraveloz,
com a proliferação de aplicativos que avaliavam, por exem-
plo, os deslocamentos das pessoas em quarentena, ou ras-
treavam e qualificavam quem poderia ou não sair de casa
a partir de uma série de dados coletados e processados por
algoritmos privados217. Os mesmos dados usados para algo
217
Reportagem de Sam Biddle, “Coronavírus traz novos riscos de
abuso de vigilância digital sobre a população”, The Intercept, 6 abr. 2020,
disponível em: https://theintercept.com/2020/04/06/coronavirus-
covid-19-vigilancia-privacidade, diz que na Coreia do Sul, em Taiwan
e em Israel, autoridades usaram dados de localização de smartphones
para impor quarentenas individuais. A Palantir, empresa contratada
pela NSA dos Estados Unidos, ajudou o Serviço Nacional de Saúde
da Grã-Bretanha a rastrear infecções. Aplicativos que se aproveitam
da alta precisão dos sensores presentes nos smartphones para impor
distanciamento social ou mapear os movimentos dos infectados foram
implantados em Cingapura, na Polônia e no Quênia. No Brasil, uma
das principais operadoras de internet, a Vivo, diz que anonimiza os
dados de localização de seus usuários, mas, na prática, é possível
localizá-los, o que viola os direitos individuais por influir na esfera
privada de cada pessoa sem autorização e conhecimento, como mostra
uma reportagem de Tatiana Dias no The Intercept Brasil: “Vigiar e
lucrar” (https://theintercept.com/2020/04/13/vivo-venda-localizacao-
183
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entendido como positivo porque diz respeito à saúde de
toda a sociedade – o controle do deslocamento de pessoas
que poderiam transmitir um vírus – podem também ser
usados para uma intrusão ainda maior da publicidade de
produtos customizados. O que gera ainda mais classifica-
ção – e consequente exclusão – das pessoas conforme seus
padrões de consumo na internet e impulsiona a vigilância
on-line de todos os hábitos de uma pessoa na rede.
Além de pôr ainda mais em risco a privacidade dos
usuários, soluções tecnológicas prontas, produzidas por
empresas privadas e compradas como salvadoras por go-
vernos, não tocam naquilo que se constituiu como a ins-
tituição central da vida moderna: o mercado218. A crítica
de Rendueles ao copyleft reside também no fato de que o
problema principal a ser resolvido com ele é o rompimento
das barreiras de livre circulação da informação e acesso a
bens culturais, sem, entretanto, e na maior parte das vezes,
tocar nas condições sociais desse mercado. A forma como
a já citada energia viva das pessoas passa a ser explorada
por empresas que não as tratam mais como trabalhado-
res, mas colaboradores, trocando direitos trabalhistas his-
toricamente conquistados por uma suposta liberdade de
escolher seus horários de trabalho, tendeu a ser, durante
boa parte da existência do copyleft até aqui, um problema
lateral. A fonte dos problemas escolhida não seria o mer-
cado da informação nem o mercado de trabalho, mas sim
anonima). Esses mesmos dados de localização foram cedidos para
empresas e governos para o monitoramento da pandemia no Brasil.
218
Morozov, Solucionismo, nova aposta das elites globais, Outras Pa-
lavras, 23 abr. 2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/tecno-
logiaemdisputa/solucionismo-nova-aposta-das-elites-globais.
184
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as barreiras à circulação e ao uso da informação219.Outro
aspecto da crítica ao copyleft é que mais acesso à informa-
ção ou mais obras baixadas não necessariamente significa
consciência crítica. A desinformação e o crescimento de
um mercado de informações falsas (fake news) foi, tanto
quanto a proliferação do midiativismo220, um dos resulta-
dos da “liberação do polo emissor da informação” para que
qualquer um – com acesso à internet – pudesse falar em
um blog, site ou um perfil em redes sociais. Um resultado
que é fruto direto de o mercado (de softwares e produtos
tecnológicos em especial) se manter intocável, sem regu-
larização estatal ou equilíbrio externo, o que nos últimos
anos tem trazido consequências como a proliferação das
informações falsas e o uso destas na manipulação de mas-
sas de pessoas para fins político-eleitorais, caso das elei-
ções e de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e de
Jair Bolsonaro no Brasil em 2018.
O rompimento de todas as barreiras de entrada de
acesso à fala na rede alimentou – e foi alimentado – pelo
que o cientista e escritor Jaron Lanier chama de Bummer
(Behaviors of User Modified Made into an Empire for Rent221),
219
Rendueles, op. cit., p.87.
220
Midiativismo é uma identificação que, popularizada nos anos 1990
e 2000, relaciona-se a movimentos de reação que “aumentam a cons-
ciência pública sobre a influência da mídia e fomentaram as demandas
de democratização e acesso público à mídia”, como diz a pesquisadora
Stepania Milan, “When Algorithms Shape Collective Action: Social
Media and the Dynamics of Cloud Protesting”, em Social Media + So-
ciety. Em alguns casos, é usado como sinônimo de mídia alternativa
e mídia cidadã, entre outros termos. Sobre as definições possíveis de
midiativismo escrevi um texto (Foletto, “Midiativismo, mídia alterna-
tiva, radical, livre, tática: um inventário de conceitos semelhantes”).
221
Lanier a define em Dez argumentos para você deletar agora suas re-
185
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uma máquina estatística (presente nas redes sociais e nos
algoritmos de streaming, por exemplo) que vive nas nuvens
da computação e, sob o pretexto de organizar a informação
do mundo, tem modificado o comportamento de milhares
de pessoas. A Bummer, diz Lanier, busca “otimizar a vida”,
e ao fazer isso nivela qualquer tipo de informação: o que
importa é a circulação de dados, sejam quais forem. É nesse
contexto que a proliferação das informações falsas se con-
sagra ao adquirir maior valor de troca do que as verídicas,
sendo mais baratas para produzir e potencialmente mais
fáceis de circular, direcionadas de acordo com os interesses
de grupos específicos para reforçar suas perspectivas pré-
vias sobre a realidade222. Nesse cenário, “mais próximo a um
pesadelo reacionário do que a um comunitarismo”, como
diz Rendueles223, não por acaso têm novamente se discutido
as formas de regulação estatal das big techs, especialmente
des sociais, livro que propõe uma crítica feroz às redes sociais, os prin-
cipais exemplos de atuação dessa máquina estatística. Na p.44, ele usa
uma curiosa fórmula para memorizar os seis componentes da Bum-
mer, cada uma a ser desenvolvida nas páginas seguintes de seu livro:
“A de aquisição de Atenção que resulta na supremacia do babaca; B de
meter o Bedelho na vida de todo o Mundo; C de Comprimir Conteú-
do goela das pessoas abaixo; D de Direcionar o comportamento das
pessoas da maneira mais sorrateira possível; E de Embolsar dinheiro
ao deixar que os maiores babacas ferrem secretamente todas as outras
pessoas; F de multidões Falsas e sociedade Falsificadora”.
222
A análise do valor das informações jornalísticas verdadeiras e da
proliferação das informações falsas a partir dos oligopólios de tecnolo-
gia da informação é um dos focos que o professor e pesquisador Elias
Machado tem trabalhado para sua tese de livre-docência na UFSC. Ele
a tem discutido publicamente nas próprias redes sociais e a antecipou
a mim, em algumas conversas virtuais, de onde formulei esse trecho.
223
Rendueles, op. cit., p.102.
186
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na União Europeia e nos Estados Unidos, a partir de leis
de proteção de dados pessoais, de propostas de moderação
do espalhamento de informações falsas nas redes sociais e
taxação dos lucros das big techs224. É curioso notar que es-
sas propostas de regulação já estavam, entre outros luga-
res, em diversos trechos do já citado ensaio de Barbrook e
Cameron, de 1995, que aponta para um futuro digital como
uma mistura de “intervenção estatal, empreendedorismo
capitalista e cultura faça-você-mesmo”225.
VII.
A escolha do movimento da cultura livre em tratar a bar-
reira ao acesso à informação e ao conhecimento como
sua principal questão tem várias justificativas, algumas já
apresentadas aqui, boa parte delas relacionada à questão
da área de origem de seu termo, a produção de software.
Para Rendueles, e também Dimitry Kleiner em The Tele-
kommunist Manifesto (2010), o copyleft falharia ao não
perceber as diferenças implícitas entre o software e a cultu-
ra livre. No primeiro, as condições sociais de remuneração
dos programadores de software, por exemplo, não costu-
mam ser dependentes da venda por unidade de produção
(software), mas por serviço continuado, desenvolvimento,
customização e manutenção, entre outras formas ainda
224
Sobre taxação: em 2020, a Europa lançou um pacote tributário que
teve como medidas garantir que os países do bloco troquem informa-
ções sobre as receitas geradas pelas vendas em plataformas on-line,
a ser implementado nos anos seguintes. Fonte: https://www1.folha.
uol.com.br/mercado/2020/07/europa-lanca-pacote-tributario-para-
-apertar-cerco-a-gigantes-digitais.shtml?.
225
Barbrook; Cameron, op. cit., p.37.
187
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mais complexas que envolvem a venda casada com outros
produtos. É prática na área de desenvolvimento de softwa-
re liberar um código e vender serviços sobre ele também
porque esse procedimento, além de ser parte do modo co-
laborativo e fragmentado em que o software é produzido
desde seu início226, não atrapalha a remuneração dos seus
desenvolvedores. Não só é possível liberar um código e
vender serviços sobre ele em paralelo como também existe
um mercado de tecnologias abertas, inspirado na ideia do
movimento open source, em que um dos principais atores
é a Microsoft, histórica opositora ao software livre227.
Nesse aspecto, a situação da cultura é um pouco diferen-
te. Trabalhadores do setor, como músicos, em sua maioria
autônomos não assalariados (ao contrário de programado-
res de software), têm como principal fonte de renda a execu-
ção individual de suas obras ao vivo (shows) e de uma por-
centagem por obra comercializada228. A liberação de uma
música e a venda de serviços sobre ela, tal qual no software,
é ainda possível – e prática de muitos artistas, seja por prin-
cípios éticos ou, principalmente, como forma de “isca” para
a venda de shows. Mas, não sendo assalariados como os de-
226
“O desenvolvimento de software pode e deve ser fragmentado. Há
toda uma mitologia sobre programadores independentes trabalhando
em sua garagem de madrugada, mas a verdade é que o desmembra-
mento de um grande projeto em um pacote de problemas a se resolver
coletivamente em uma espécie de linha de montagem não é uma op-
ção, e sim uma necessidade técnica.” Rendueles, op. cit., p.90.
227
Um texto da Linux Foundation explica como funciona o trabalho
open source da Microsoft: Baker, The Open Source Programa at Mi-
crosoft: How Open Source Thrives, The Linux Foundation, 2 mar. 2018,
disponível em: https://www.linuxfoundation.org/blog/2018/03/open-
-source-program-microsoft-open-source-thrives.
228
Rendueles, op. cit., p.86.
188
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senvolvedores de software, é mais difícil existir serviço agre-
gado a ser oferecido que compense o seu custo. Para Ren-
dueles e Kleiner, liberar gratuitamente a informação usada
para a produção de um software – o código – não altera a
remuneração (na maioria dos casos, já garantida) de seus
produtores quanto disponibilizar na íntegra e de graça uma
informação musical – uma música ou um disco – modifi-
caria os ganhos de um músico autônomo. Esse argumento,
diz Rendueles, foi um dos que teria limitado o alcance das
licenças livres baseadas no copyleft para a área cultural.
Há também nessa posição uma ressalva importante:
licenciar uma obra cultural para modificação e também
para uso comercial, como o copyleft propôs primeiramen-
te para o software, pode se tornar, na prática, pouco razoá-
vel para músicos e outros artistas independentes. Por mais
criatividade que haja na escrita de linhas de código, ele é
um conjunto de instruções a serem executadas por uma
máquina, um tipo de produto intelectual que tem uma
função específica que depende de outro objeto para ser
realizado. Não é preciso dizer que uma obra de arte como
uma música ou um filme tem por objetivo uma apreciação
estética ou de entretenimento que não costuma ser apenas
funcional. Um software e uma obra cultural são objetos
de naturezas diferentes, produzidos de jeitos e para fins
distintos, o que significaria que também seus produtores
não deveriam ser tratados da mesma forma
O próprio Stallman comenta a questão: “para os roman-
ces, e em geral para as obras que são utilizadas como entrete-
nimento, a redistribuição textual não comercial poderia ser
uma liberdade suficiente para os leitores”229. O propositor
Em “Malinterpretar el copyright: una sucesión de errores”, na edi-
229
ção (em espanhol) aqui usada: Stallman, Software libre para una socie-
189
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do copyleft argumenta que esse tipo de obra, assim como
trabalhos que informam o pensamento de uma pessoa (me-
mórias, artigos de opinião e científicos), deveriam ter possi-
bilidades limitadas de uso, pois são diferentes das obras que
ele categoriza como “funcionais”, nas quais se incluem recei-
tas, obras educativas e os softwares. Ele então defende que,
nos casos de obras estéticas e que informam o pensamento
de alguém, ter a liberdade de fazer cópias já seria suficien-
te para que qualquer pessoa pudesse compartilhar como e
onde bem quisesse, vetando o uso comercial e certas possi-
bilidades de modificação da obra que pudessem alterar ou
deturpar a visão proposta pelo seu autor. Essa perspectiva
de Stallman apresenta o copyleft como uma ideia que não
quer destruir o copyright, mas reformá-lo, inclusive com
alguns pontos que retomam seu início no século XVIII –
caso da proposta, defendida pelo criador do software livre
no mesmo texto, de alteração para dez anos do período de
duração do copyright230. Nesse entendimento, os autores te-
riam, em tese, formas de garantir que suas ideias não seriam
deturpadas e que seus ganhos não seriam tão afetados.
Um outro modo, mais prático, de equilibrar a equação
remuneração dos autores vs. respeito às formas “originais”
das ideias vs. acesso público aos bens criativos da humani-
dade é a visão que Kleiner231 apresenta com o conceito de
dade libre, p.119. Tradução minha.
230
Ibidem. E como detalha Aracele Torres: “A sua justificativa para redu-
zir o monopólio sobre a cópia a um prazo de dez anos é a de que essa re-
dução teria pouco impacto sobre a edição de obras de hoje, pois ele con-
sidera esse tempo suficiente para que uma obra de sucesso seja rentável.
Além do mais, de acordo com ele, as obras de um modo geral costumam
estar fora de catálogo bem antes desse prazo” (Torres, op. cit., p.168).
231
Kleiner, The Telekommunist Manifesto.
190
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licenças copyfarleft232, que têm uma regra para uso na pro-
dução coletiva e outra para uso por quem empregue tra-
balho assalariado em sua produção. Aos trabalhadoras/es,
por exemplo, seria permitido o uso, inclusive comercial,
da obra cultural, mas não àqueles que explorem o trabalho
assalariado, que seriam obrigados a negociar o acesso233.
De acordo com sua proposta, “seria possível preservar um
estoque comum de bens culturais disponível a produtores
independentes das grandes indústrias da intermediação já
citadas, mas ao mesmo tempo impedir sua expropriação
por agentes privados”234.
Estoque comum de bens culturais. Domínio público.
Aqui aportamos num campo de discussão maior em que,
desde meados dos anos 2000, a cultura livre tem desembo-
cado como um afluente caudaloso: o comum (procomún,
em espanhol; commons, em inglês235). Conceito amplo,
232
Uma versão atualizada da mesma ideia ganhou o nome de copyfair e
foi definida por Michel Bauwens, fundador da P2P Foundation, como
“um princípio que visa reintroduzir requisitos de reciprocidade nas
atividades de mercado”. Faz isso ao preservar o direito de compartilhar
conhecimento sem objeções, mas visa sujeitar a comercialização
de tais bens comuns a algum tipo de contribuição para esses bens
comuns (https://wiki.p2pfoundation.net/Copyfair). Uma das licenças
criadas como exemplo desse conceito e com as mesmas limitações
de venda que a copyfarleft é a Peer Production License (https://wiki.
p2pfoundation.net/Peer_Production_License), usada no âmbito do
comum – no Brasil, é a usada no projeto Biblioteca do Comum (http://
bibliotecadocomum.org).
233
Foletto; Martins; Luna, Encontro on-line cultura livre do sul: a pro-
dução cultural comunitária para a construção do comum, Contratex-
to, p.114.
234
Ibidem.
235
Savazoni, op. cit., p.29-30.
191
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de larga tradição histórica que remete aos gregos236, o co-
mum, historicamente, definiu tanto um conjunto de recur-
sos (bosques, água, ar, campos) e coisas (uma ferramenta,
uma máquina) como um produto social e uma prática.
Em O comum entre nós, Rodrigo Savazoni usa as palavras
de Massimo De Angelis, “there is no commons without
commoning”237, e as do pesquisador brasileiro Miguel Said
Vieira para designar o comum como um “substantivo” (o
conjunto de bens compartilhados) e um “verbo” (a ação de
compartilhar; o commoning, o “fazer comum”)238.
São muitos os pesquisadores e pesquisadoras que tra-
balham com a ideia de comum. A começar por “A tra-
gédia dos comuns”, publicado em 1968 pelo ecologista
Garret Hardin, que, ao analisar o uso comum de um pas-
to aberto por diferentes rebanhos, argumenta que uma
gestão comum desse e outros comuns livres levarão a sua
destruição – a solução seria a privatização ou a estatiza-
ção. Algumas décadas mais tarde, Elinor Ostrom con-
fronta essa ideia e, com estudos sistemáticos dos modelos
de gestão autônoma de bens comuns como alternativa à
gestão privada ou exclusivamente estatal dos bens natu-
rais, ganha o Prêmio Nobel em Ciências Econômicas em
2009239. Também a partir dos anos 1990 e 2000, o comum
se (re)aproxima da luta política do final do século XIX,
em especial na esquerda de origem autonomista e a par-
tir de obras (como Multidão, de 2004) de Michel Hardt e
236
Savazoni, op. cit., p.45.
237
De Angelis, Introduction. The Commoner, n.11, p.1.
238
Savazoni, op. cit., p.39.
239
Depois, cria a Associação Internacional para o Estudo dos Comuns
(Iasc), que hoje reúne pesquisadores e ativistas do comum de diferen-
tes países. Site: https://iasc-commons.org.
192
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Antonio Negri, que desenvolvem um conceito de comum
“como resultante da prática biopolítica da multidão, que
se constitui como uma rede ‘aberta e em expansão’, múlti-
pla e disforme, ampla e plural, que age para que possamos
‘trabalhar e viver em comum’”240. Há também a obra de
Sílvia Federici, que, sobretudo em Calibã e a bruxa (2004)
e O ponto zero da revolução (2019), evoca a importância
do trabalho feminino para preservar os comuns: “As mu-
lheres estavam na dianteira na luta contra os cercamen-
tos, tanto na Inglaterra quanto no ‘Novo Mundo’, e eram
as defensoras mais ferrenhas das culturas comunais que a
colonização europeia tentava destruir”241.
O comum passa a ser com mais frequência relaciona-
do a bens como software, conhecimento e aos arquivos de
bens culturais na rede, assim como nos modos autônomos
de gestão desses bens pelas comunidades, em meados da
década de 2000, com a propagação das tecnologias digitais
e da internet. Ao transformar o software em um conheci-
mento de uso, produção e gestão comum, o copyleft tor-
nou o software livre um commons intelectual, diz Benkler
em The Wealth of Networks (2006), um dos primeiros a
aproximar o comum das tecnologias digitais em rede. Os
commons intelectuais seriam baseados na informação di-
240
Savazoni, O comum entre nós: da cultura digital à democracia do
século XXI, p.46.
241
Em Federici, O ponto zero da revolução, p.313. Até hoje, são grupos
de mulheres que preservam os comuns dos modos de vida coletivos nas
montanhas do Peru e de agricultoras de subsistência africanas (que, se-
gundo Federici, produzem 80% dos alimentos que a população do con-
tinente consome), para citar dois exemplos. O trabalho da historiadora
aproxima os estudos feministas do comum e coloca os meios materiais
de reprodução como mecanismo primário para o “tornar comum”.
193
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gital posta em circulação na internet, bens não rivais que,
ao serem consumidos ou usados por uma pessoa, não se
tornam indisponíveis para ser consumidos ou usados por
outras242. Por conta dessa característica, formariam uma
nova modalidade de produção do conhecimento cola-
borativa baseada em bens comuns (commons-based peer
production – CBPP), que, na visão do autor, geraria uma
nova economia mais democrática e distributiva que a do
período industrial.
A formulação de Benkler foi usada nos anos seguin-
tes por alguns “economistas do comum”, entre eles Michel
Bauwens, criador da P2P Foundation, que “aponta que
a economia dos pares dá origem a um terceiro modo de
produção, de governança e de propriedade, que persegue
o adágio ‘de cada um de acordo com suas capacidades; a
cada um de acordo com suas necessidades’”243. A cultura
livre, nesse sentido, seria a face dos bens culturais desse
terceiro modo de produção (os outros dois seriam, grosso
modo, o capitalismo e o socialismo), que “reorganizaria o
sistema produtivo em torno do cuidado e da solidarieda-
de, da troca equitativa entre pares e baseada na atuação
de empreendedores cidadãos cujo objetivo final não é a
maximização do lucro, mas sim a melhoria das condições
sociais de todas e todos”244.
242
Torres, op. cit., p.137.
243
Savazoni, op. cit., p.49.
244
Ibidem, p.49.
194
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195
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CAPÍTULO 6
CULTURA COLETIVA
196
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Eu sou porque nós somos.
Ubuntu
O Mestre disse: “Eu transmito, mas não
inovo; sou verdadeiro no que digo e
devotado à Antiguidade”.
Confúcio, Os analectos, aprox. séc.
IV-II a.C.
A visão ameríndia trata, por exemplo,
os objetos como registros menos passi-
vos das capacidades de um sujeito do que
as objetificações personificadas dessas
relações. De modo que a criação se dá
distribuída na relação entre os múlti-
plos objetos e pessoas, sem esta sepa-
ração entre sujeito e objeto, intelec-
to e matéria, que estamos acostumados
a fazer no Ocidente. A subjetividade
também existe nos objetos e forma uma
animada paisagem composta de diferentes
tipos de níveis de ações humanas.
Marcela Stockler Coelho de Souza,
The Forgotten Pattern and the Sto-
len Design: Contract, Exchange and
Creativity among the Kĩsêdjê, 2016
Como feministas temos que nos opor ao
caráter patriarcal do direito de autor,
gerar um paradigma que valorize a cria-
197
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ção como prática social e comunitária e,
sobretudo, buscar mudar as leis que hoje
criminalizam ou proíbem práticas funda-
mentais para a liberdade de expressão,
para a troca, a distribuição e a reapro-
priação da cultura. Temos que calar as
musas que inspiram os gênios, para que
possam enfim falar as mulheres.
Evelin Heidel (Scann), Que se callen
las musas, 2017
198
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I.
O fato de nós, ocidentais, termos claro que a organização
de ideias em um dado objeto que circula para outras pes-
soas nos torna autores – portanto, supostamente legítimos
proprietários de direitos autorais sobre nossa criação – é
fruto de um percurso filosófico e de um modo de ver o
mundo que foi brevemente apresentado até aqui neste li-
vro. Mas esse modo de ver o mundo e as coisas não é o
único presente neste planeta conhecido como Terra, mas
apenas uma perspectiva, destacada genericamente aqui
como ocidental. Mesmo que essa seja a perspectiva do-
minante, reguladora da vida nas sociedades capitalistas,
cabe lembrar que existem outras, presentes em muitos lu-
gares e comunidades tradicionais, que entram em conflito
com certas ideias e modos de agir arraigados na socieda-
de capitalista, na qual a propriedade intelectual se erigiu.
Cuidado, solidariedade, colaboração e coletividade, por
exemplo, são valores ainda importantes e dominantes em
muitas comunidades e culturas milenares que mantiveram
alguns de seus costumes baseados na suficiência, e não na
199
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acumulação, e no cultivo de uma sabedoria colaborativa e
coletiva à margem da busca individualista e proprietária
da cultura predominante no Ocidente.
Como falar em original e cópia, por exemplo, se uma
cultura de dois milênios do Extremo Oriente incentiva a
reprodução e trata como mais importante do que a origem
de uma ideia o seu conteúdo e a sua permanência, mesmo
que modificada e reinventada a cada contexto? Ou como
dizer que há um único humano dono de ideias quando para
muitos povos originários, entre eles alguns ameríndios, não
existe a separação entre sujeito e objeto como conhecemos
no Ocidente, e a subjetividade criadora, a quem se deveria
atribuir a “autoria” ou a “posse” dos bens, é distribuída em
uma vasta rede que inclui pessoas e objetos, natureza e so-
ciedade de modo praticamente simétrico?
Na África, por exemplo, há alguns séculos uma filosofia
humanista pré-colonial conhecida como Ubuntu245 diz: “eu
sou porque nós somos”. Termo de origem nguni banto, in-
fluente na luta contra o apartheid na África do Sul e conheci-
da daí até a África Subsaariana, o Ubuntu se caracteriza pela
humanidade com seus semelhantes através da veneração aos
seus ancestrais, de forma fraterna e com compaixão, incluin-
do aí considerar semelhantes todas as formas de vida – um
245
Considerada uma filosofia de circulação oral e não associada a ne-
nhum texto específico, é uma palavra que tem variantes em diversas
línguas africanas: umundu em Kikuyu e umuntu em Kimeru, duas lín-
guas faladas no Quênia; bumuntu em kiSukuma e KiHaya, faladas na
Tanzânia; vumuntu em shiTsonga e shiTswa em Moçambique; bomoto
em Bobangi, falado na República Democrática do Congo; gimuntu
em kiKongo e giKwese, falados no mesmo Congo e em Angola, res-
pectivamente. Fonte: Eze, Intelectual History in Contemporary South
Africa, p.91.
200
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biocentrismo que também se opõe ao antropocentrismo ca-
racterístico da sociedade ocidental246, na qual se constituem
a propriedade intelectual e o direito autoral. “A episteme e a
filosofia negra do Ubuntu tem um sentido de conhecimento
diferente do Ocidente, um conhecimento integralizador da
razão e da emoção, de forma que o sujeito não apenas vê o
objeto, mas também o sente, portanto, ‘sujeito e objeto estão
mutuamente afetados no ato do conhecimento’”247.
Uma cosmovisão que tem valores como respeito, corte-
sia, compartilhamento, comunidade, generosidade, con-
fiança e desprendimento248, em que o nós prevalece e o eu
está incluso no nós, tem dificuldade de se encaixar numa
sistema filosófico e jurídico como o do Ocidente. Como
tornar um produto único e pertencente a uma pessoa se
ele é fruto de um esforço coletivo ancestral e tem por fim
a veiculação de uma ideia (ou um objeto) construído a
muitas mãos? Comunidades que têm um modo e uma
prática de conhecer o mundo guiadas pelo coletivo e pelo
comunitário permanecem, ainda que com dificuldades e
muitos embates, preservando seus bens culturais e suas
tradições há muito tempo, em que pese o confronto com
a visão ocidental exclusivista que enxerga produtos de an-
cestralidade apenas como um bem passível de circulação
num mercado. Mais do que nos manter presos a um pas-
246
Negreiros, Ubuntu: considerações acerca de uma filosofia africana
em contraposição à tradicional filosofia ocidental, Problemata: R. In-
tern. Fil., v.10, n.2, p.123.
247
Mance, Filosofia africana: autenticidade e libertação, em Serra, O
que é filosofia africana?, p.75.
248
Como apontados por Nelson Mandela em um vídeo expli-
cativo do Ubuntu disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Ficheiro:Experience_ubuntu.ogv.
201
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sado idealizado, examinar um pouco mais algumas dessas
perspectivas podem iluminar caminhos alternativos para
o presente e nos deixar entender um pouco mais como a
cultura através dos tempos se fez e se faz livre.
II.
Shanzai é um neologismo chinês criado nos anos 2000
para dizer o que é falso, fake. Abarca de literatura a prê-
mios Nobel, deputados, parques de diversões, tênis, mú-
sicas, filmes, histórias das mais diversas. No princípio, o
termo se referia só aos telefones (smartphones) ou à falsi-
ficação de produtos de marcas como Nokia ou Samsung e
que se comercializam com o nome de Nokir, Samsing ou
Anycat. Logo, porém, se expandiram para todas as áreas,
em jogos que, à maneira do Dada, usavam da criatividade
e de efeitos paródicos e subversivos com as marcas “ori-
ginais” para criar outros nomes – Adidas, por exemplo,
se converte em Adidos, Adadas, Adis, Dasida249... São, po-
rém, mais que meras falsificações: seus desenhos e funcio-
nalidades não devem nada aos originais e as modificações
técnicas ou estéticas realizadas lhes conferem uma iden-
tidade própria250. Os produtos shanzai se caracterizam
sobretudo por sua grande flexibilidade, adaptativos con-
forme as necessidades e situações concretas, “algo que não
está ao alcance de uma grande empresa, pois seus proces-
sos de produção estão fixados em longo prazo”251.
249
Han, Shanzai: el arte de la falsificación y la deconstrucción en China,
p.73.
250
Ibidem.
251
Ibidem.
202
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Em Shanzhai: el arte de la falsificación y la deconstruc-
ción en China, o filósofo sul-coreano radicado na Ale-
manha Byung-Chul Han analisa diversas obras artísticas
chinesas, shanzai ou não, e ocidentais para trabalhar com
a ideia de como são construídas as noções de autoria e
originalidade no Extremo Oriente. Para ilustrar a diferen-
ça em relação ao Ocidente, cita a ideia de ádyton, que em
grego antigo significa “inacessível” ou “intransitável”. A
origem da palavra remete ao espaço interior de um tem-
plo da Grécia antiga que era completamente apartado do
exterior onde se celebravam os cultos religiosos. “O isola-
mento define o sagrado”, diz Han: a noção do estar isolado
para poder se encontrar com Deus, ou consigo mesmo, é
diferente no Extremo Oriente, a começar pela arquitetura
dos espaços ditos sagrados: “O templo budista se caracte-
riza pela permeabilidade ou pela abertura completa. Al-
guns templos têm portas e janelas que não isolam nada”252.
No pensamento chinês não há ádyton, nem como espa-
ço, nem como ideia. Nada se separa nem se fecha: o pen-
samento de que algo esteja apartado ou isolado do todo
é alheio ao modo de pensar predominante no Extremo
Oriente253. Assim, não haveria a ideia de original tal qual
se entende no Ocidente, posto que a originalidade pres-
supõe um começo no sentido estrito, o que uma parte do
pensamento chinês tradicional renega ao não conceber
a criação a partir de um princípio absoluto e individual,
mas sim pelo processo contínuo, sem começo nem final,
sem nascimento nem morte, fundamentalmente coletivo.
A desconfiança dos princípios imutáveis e dos “gênios”
criativos individuais remete à falta de essência e a um cer-
252
Ibidem.
253
Ibidem.
203
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to vazio que, aos olhos ocidentais – exemplificados por
Han no pensamento crítico a essas noções orientais do fi-
lósofo alemão Hegel, um dos mais influentes pensadores
do Ocidente –, pode ser visto como hipocrisia, astúcia ou
até mesmo imoralidade.
Falar em autoria, originalidade e, em consequência,
de direito autoral, copyright e cultura livre no Extremo
Oriente é, portanto, diferente de falar sobre isso no mun-
do ocidental. Esse modo de pensar que ignora o ádyton,
o “inacessível”, seja enquanto lugar ou como ideia, parte
de uma noção de verdade como processo, ou seja: mais ba-
seado na inclusão contínua de diversos elementos do que
na exclusão e consequente união em torno de um único
elemento separado do todo, como costumamos pensar
no Ocidente. Se a verdade está em processo contínuo de
produção, a noção de onde ela vem – sua originalidade
– perde importância; não é mais a origem única que im-
porta, mas que o conteúdo dessa verdade transcenda, cir-
cule, seja reorganizado e complementado de acordo com
contextos, objetivos e propósitos variados. Cada elemento
é importante como parte de uma ideia que transcende de
maneira coletiva, não como parte isolada que detém uma
origem e uma autoria.
Diante disso, o processo criativo de uma obra artísti-
ca e cultural nessa região é marcado pela continuidade e
por mudanças silenciosas, não pela ruptura que uma ideia
genial trazida por um artista promove, como consagrada
na visão ocidental a partir do romantismo. Não se va-
loriza tanto a matriz da ideia, sua origem ou seu autor,
mas como ela vai – ou precisa – ser continuada. Se a ideia
permanece na cópia, então é como se a obra continuasse,
sem ruptura, sem uma “nova obra”. É como na natureza:
204
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células antigas são substituídas por um novo material ce-
lular. Não se pergunta pela célula original; “o velho morre
e é substituído pelo novo. A identidade e a novidade não
são excludentes”254.
Uma parte desse modo de ver a verdade, a originali-
dade e o processo de criação como algo mais coletivo que
individual, remete ao confucionismo (儒學), conjunto de
doutrinas morais, éticas, filosóficas e religiosas criadas pe-
los discípulos de Confúcio após a sua morte, em 479 a.C.,
que teve grande influência no pensamento da China e de
países como as Coreias, Japão, Taiwan e Vietnã, principal-
mente até inícios do século XX. Natural da província de
Lu, hoje Shantung, leste da China, Confúcio vinha de uma
família nobre em decadência e teve diversas ocupações
em sua vida – professor, funcionário público, político, car-
pinteiro, pastor – até cerca dos 50 anos de idade, quando
começou a viajar com frequência pelas províncias chine-
sas e angariar discípulos em torno de sua filosofia basea-
da na vida simples, na coletividade e no altruísmo255. Era
uma proposta filosófica que retomava alguns costumes de
dinastias chinesas mais antigas como Shang (1600-1046
a.C.) e a própria Zhou (1046-256 a.C.), período em que
havia uma decadência moral e ética na sociedade chinesa.
A partir da dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), os en-
sinamentos de Confúcio passaram a exercer profunda in-
254
Ibidem, p.64.
255
Apesar de sua importância na tradição chinesa, poucas das infor-
mações sobre Confúcio são de fato comprovadas. As aqui citadas são
baseadas no registro da Wikipédia em inglês (https://en.wikipedia.
org/wiki/Confucius) sobre ele e na introdução da edição brasileira de
Os analectos, escrita pelo também tradutor da obra do chinês para o
inglês, D. C. Lau.
205
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fluência nos governos e na sociedade chinesa, fornecendo
o plano do que seria uma vida ideal e a régua pela qual
as relações humanas deveriam ser medidas256. Reinventa-
das e reinterpretadas por diversas pessoas ao longo dos
séculos, suas ideias moldariam uma série de costumes nas
áreas da educação, cultura, política e das relações sociais
do país durante diferentes momentos da China imperial.
Só perderiam força no início do século XX, quando ter-
mina o período imperial chinês e o confucionismo passa a
ser acusado de ser “tradicional demais” para conviver com
o dinamismo da então sociedade moderna ocidental.
A influência dos ensinamentos de Confúcio na forma
de ver a criação na China e nos países do Extremo Oriente
passa a ganhar certa repercussão nos estudos sobre proprie-
dade intelectual a partir principalmente do livro To Steal
a Book is An Elegant Offense: Intelectual Property Law in
Chinese Civilization, de William P. Alford, publicado em
1995. O título do livro, “Roubar um livro é uma transgres-
são elegante”, vem de um conceito popular (Qie Shu Bu
Suan Tou) chinês a partir de Kong Yiji, livro lançado em
1919 por um conhecido escritor da época chamado Lu Xun.
A história da obra gira em torno de um personagem central
que dá nome ao livro, um intelectual autodidata alcoólatra
e fracassado que frequenta uma taverna na cidade de Lu-
zhen (魯鎮), base de outras ficções de Xun. Ele não passou
no exame de xiucai, um dos muitos da China imperial da
época, e usa em seu discurso frases clássicas confusas, que
geram desprezo entre os outros frequentadores do local,
que o ridicularizam também por “fazer bicos” e roubar para
comer e beber. Uma de suas atividades era copiar manuscri-
Yu, Intellectual Property and Confucianism: Diversity in Intellectual
256
Property: Identities, Interests and Intersections, p.5.
206
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tos para clientes ricos; às vezes, também surrupiava livros
desses clientes para trocar por vinho na taverna. “Roubar
um livro é uma ofensa elegante” era o argumento que usava
quando insultado pelos frequentadores do local.
Kong Yiji, o personagem principal, foi construído como
um “arlequim caricato” representando um intelectual auto-
didata do período clássico chinês em decadência257 – no fi-
nal do livro, o personagem morre espancado e é esquecido.
A obra foi produzida no contexto do Movimento 4 de Maio,
do qual Lu Xun fazia parte, que em 1919 se notabilizou por
protestos na capital Pequim e pela crítica anti-imperialis-
ta (a última dinastia imperial, Qing, havia terminado em
1911), na qual o confucionismo e seu modo tradicional,
hierárquico e coletivista eram considerados como obstá-
culo à modernização na “competição com outras nações
do mundo ocidental”258. Nessa perspectiva, a literatura do
Movimento 4 de Maio, alinhada também às ideias moder-
nizadoras de outros lugares do mundo nesse período, deve-
ria tentar evitar os clichês da linguística tradicional chinesa
que dificultaram e restringiram o pensamento criativo das
pessoas por séculos e apostar na inovação tanto no conteú-
do, tido como antiquado, como na forma.
Mas quais seriam esses valores e ideias tradicionais que
os modernistas do 4 de Maio combatiam? Para o confu-
cionismo, o passado trazia valores sociais, éticos e morais
– a ideia da família, por exemplo, como unidade básica
que organiza a comunidade – que deveriam ser incorpo-
rados na sociedade contemporânea. A necessidade de co-
nhecer o passado para o crescimento pessoal ditava que
257
Em Yu, op. cit., que também cita aqui Feng, Intellectual Property in
China, p.167.
258
Yu, op. cit., p.15.
207
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houvesse amplo acesso à herança comum de todos os chi-
neses259. Como ter propriedade sobre essas obras do pas-
sado permitiria a poucos monopolizar um conhecimen-
to tão essencial para todos, havia então uma contradição
entre os direitos de propriedade intelectual e os valores
morais tradicionais da China defendidas por Confúcio.
Ao enaltecer valores familiares e direitos coletivos, os
chineses não teriam desenvolvido o conceito de direitos
individuais, portanto não considerariam a criatividade e
a inovação como propriedade individual, mas sim como
um benefício coletivo para a comunidade e a posteridade.
Para aqueles que consideram o individualismo um pré-re-
quisito essencial para o desenvolvimento dos direitos de
propriedade intelectual, essa visão de mundo representa-
ria um grande desafio260.
Havia outro fato importante instalado na cultura chi-
nesa e dos povos do Extremo Oriente a partir do confu-
cionismo. Nessa filosofia, desde muito pequenas as crian-
ças eram ensinadas a pensar a partir da memorização e
da cópia dos clássicos, procedimento que, segundo seus
mestres, incutiria nos jovens valores familiares, piedade
filial e respeito ancestral261. A memorização e a cópia, es-
pecialmente das obras de Confúcio, tornaram-se procedi-
mentos necessários para garantir o sucesso nos exames do
Serviço Público Imperial, aplicados durante treze séculos
(entre 605 e 1905, aproximadamente) e que consistiam
numa série de provas que serviam para selecionar a quem,
entre a população (masculina e descendente da aristocra-
259
Alford, Steal a Book Is an Elegant Offense: Intellectual Property Law
in Chinese Civilization, p.20.
260
Yu, op. cit., p.4.
261
Ibidem.
208
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cia), seria permitida a entrada na burocracia estatal – o
que traria poder e glória aos candidatos e honra a suas
famílias, distritos e províncias.
Quando essas crianças cresciam, elas se tornavam mais
compiladores que compositores. Memorizavam tantas his-
tórias clássicas que passavam a construir suas narrativas a
partir de um extenso processo de copiar e colar (cut-and-
-paste) frases, trechos e passagens desses textos antigos. Se
aos olhos de um ocidental, especialmente do século XX e
XXI, isso seria visto como plágio, para os chineses da épo-
ca era visto como um traço distintivo de intelectualidade e
conhecimento cultural. “Quando autores chineses tradicio-
nais tomam emprestado trechos de um texto preexistente
e, principalmente, de um clássico, espera-se que o leitor re-
conheça a fonte do material emprestado instantaneamente.
Se um leitor é infeliz o suficiente para deixar de reconhecer
esse material citado, é culpa dele, não do autor”262.
Em Lún Yǔ (論語, em português conhecido como
Os analectos ou Diálogos), principal coleção de ensaios e
ideias atribuídas a Confúcio, está escrito: “O Mestre disse:
‘Eu transmito, mas não inovo; sou verdadeiro no que digo
e votado à Antiguidade’ (shù ér bù zuò)”263. Embora essa
afirmação possa trazer um certo desestímulo à criativida-
de, tinha por motivo enfatizar o papel de cada um como
o portador de uma tradição, e não como o fundador ou
originador de uma nova doutrina264. Em outro lugar de Os
analectos, é atribuída a Confúcio a frase: “Merece ser um
262
Em Yu, op. cit., p.8, e Stone, What Plagarism Was Not: Some
Preliminary Observations on Classical Chinese Attitudes Toward What
the West Calls Intellectual Property, Marquette Law Review, 2008.
263
Confúcio, Os analectos, livro VII, cap.1, p.62.
264
Yu, op. cit., p.7.
209
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professor o homem que descobre o novo ao refrescar na
sua mente aquilo que ele já conhece (wēn gù ér zhīxīn /
kěyǐ wéi shī yǐ)”265. Segundo Yu, o pensamento de Confúcio
manifestaria uma visão de que “a capacidade de fazer uso
transformador de obras preexistentes pode demonstrar a
compreensão e a devoção ao núcleo da cultura chinesa,
bem como a capacidade de distinguir o presente do passa-
do através de pensamentos originais”266.
Um último fator que teria influenciado a divergência
chinesa com relação à propriedade intelectual tal qual ela
foi concebida no Ocidente é um certo desdém dos confu-
cionistas pelo comércio e pela criação de obras por puro
lucro. Mais uma vez, Os analectos: “As ocasiões em que o
Mestre falava sobre lucro, Destino e benevolência eram
raras (Zi hǎn yán lì)”267. Em sua amplamente usada tra-
dução para o inglês, Arthur Waley esclareceu o ensino
do mestre acrescentando a nota de rodapé: “Podemos ex-
pandir: raramente falamos de assuntos do ponto de vista
do que pagaria melhor, mas apenas do ponto de vista do
que era certo”268. Os comerciantes (shāng) eram conside-
rados a mais baixa entre as quatro classes sociais da socie-
dade tradicional chinesa, atrás de oficial-estudioso (shì),
fazendeiro (nóng) e artesão (gōng). Não seria surpresa,
portanto, que os confucionistas não tenham dado ênfase,
até o século XX, à noção de propriedade intelectual e à
ideia correlata dos direitos comerciais exclusivos269.
265
Confúcio, op. cit., p.44.
266
Yu, op. cit., p.7.
267
Confúcio, op.cit., p. 69.
268
Yu, op. cit., p.8.
269
Como afirma Yu, “A propriedade intelectual pode ser vista também
na expressão chinesa do termo “patente”, zhuānlì (专利), que pode
210
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Ao lado do budismo e o xintoísmo, os outros dois con-
juntos de ideias mais difundidos no Extremo Oriente, a
influência do confucionismo na cultura chinesa fez a
perspectiva do direito autoral na região ser voltada, du-
rante muito tempo, mais à defesa de uma base de infor-
mação pública, de livre acesso e reuso – o que no Ocidente
foi chamado de domínio público. A demora da China em
assinar tratados internacionais de propriedade intelec-
tual (a partir da década de 1980, quando também o país
passa a ser parte da World Intellectual Property Organi-
zation) tem relação com uma cultura coletiva e de defe-
sa do domínio público enraizada desde muito tempo em
sua sociedade. E também se associa com a propagação
da cultura shanzai já citada, que tem a cópia como base
para a recriação de diferentes produtos e marcas a partir
de uma prática criativa compiladora enraizada no dia a
dia do povo da região, mesmo com a perda da influência
do confucionismo.
Porém, nas últimas décadas do século XX e nas primeiras
do XXI, a China não só tem se adequado à visão de proprie-
dade intelectual ocidental como se tornou, em 2020, a cam-
peã de pedidos internacionais de patentes, à frente dos Esta-
dos Unidos270. De outro lado, também é o país a que mais se
ser literalmente traduzida como “benefício exclusivo” ou “lucro ex-
clusivo”. Curiosamente, o falecido dr. Arpad Bogsch, o diretor-geral
de longa data da Organização Mundial da Propriedade Intelectual,
achou o termo tão problemático que “sugeriu que alguma outra ter-
minologia chinesa deveria ser empregada para substituir os dois ca-
racteres chineses, a fim de evitar mal-entendidos” (Yu, op. cit., p.8).
270
Matéria divulgada pela AFP a partir de comunicado da Wipo em
2019 dizia que a China “conquistou o título” pela primeira vez. “Em
1999, o Ompi recebeu 276 solicitações da China, contra 58.990 em
211
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atribuem infrações de direitos autorais na área musical; a In-
ternational Federation of the Phonographic Industry (IFPI)
afirma que 95% das músicas que circulam no país ocorrem
a partir de downloads sem autorização dos proprietários271.
Para além do questionamento dos dados dessas pesquisas,
podemos nos perguntar: como seria uma legislação que res-
peitasse o passado coletivista da cultura confucionista do Ex-
tremo Oriente e dialogasse com uma noção contemporânea
de direito autoral do status quo do capitalismo? Yu aposta
em noções que não visam a uma legislação maximalista – ou
seja, que não tenham todos os direitos reservados aos detento-
res de um copyright, por exemplo. O que é o caso do Creative
Commons, citado por ele como exemplo de opção em que
“os confucionistas podem ter desdém pelo comércio e ainda
assim abraçar os direitos de propriedade intelectual”272.
III.
“Presente de índio” (Indian giver) é um termo que aparece
nas línguas ocidentais a partir do contato dos colonizadores
europeus com os povos originários do continente que seria
então batizado por um deles de América. Na língua inglesa,
2019, 200 vezes mais hoje do que há 20 anos”, detalhou o diretor-geral
da organização, Francis Gurry. Fonte: AFP, China se torna campeã de
pedidos internacionais de patentes, UOL Notícias, 7 abr. 2020, disponí-
vel em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/07/
china-se-torna-campea-de-pedidos-internacionais-de-patentes.htm.
271
O combate à dita pirataria na China pela IFPI gosta de mostrar esses
dados, dizendo como e quanto ganhariam as indústrias da cultura se
houvesse a adequação às normas ocidentais de direito autoral. Exem-
plos estão disponíveis na página da organização: http://www.ifpi.org.
272
Yu, op. cit., p.7.
212
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ele é registrado pela primeira vez em 1765 para definir um
tipo de presente pelo qual se espera uma retribuição equi-
valente. Um século depois, Indian giver foi compilado em
um dicionário de americanismos como uma frase comum
entre crianças de Nova York para se referir a um presente
que alguém dá e toma de volta273, o mesmo significado que
ganhou na língua portuguesa e que, particularmente no
Brasil, se soma ao sentido de um “presente indesejado” que
a expressão ganhou no uso cotidiano.
O uso comum da expressão parte de uma ação que en-
tende como “normal” alguém receber um presente e con-
sumi-lo como qualquer outra coisa recebida ou adquirida.
Ocidental e de origem europeia, esse normal não é o costu-
me de muitos povos originários do continente americano e
de outras regiões do planeta. Para estes, o que quer que seja
presenteado ou doado deve ter alguma retribuição, ser pas-
sado adiante, no máximo substituído, não guardado para
sempre ou reinvestido para proveito exclusivo de uma pes-
soa. Um presente é o começo de uma relação circular de
vai e volta, que pressupõe responsabilidades mútuas e não
termina com o ato de receber, guardar e usar em algum
momento, como no hábito das sociedades ocidentais onde
o capitalismo prevalece como modo principal de organizar
a vida. Sendo o início de uma relação, não pode ser con-
sumido e descartado como uma simples mercadoria. Caso
seja, poderá ser tomado de volta: “presente de índio”.
O seguinte causo contado por Viveiros de Castro é ilus-
trativo.
273
Notado em 1765 por Thomas Hutchinson em History of Massachu-
setts: From the First Settlement thereof in 1628, until the Year 1750. E
depois definido no dicionário citado, escrito por John Russell Bartlett.
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Indian_giver.
213
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É muito comum uma equipe de filmagem chegar
numa área indígena e oferecer 30 mil dólares para
filmar, e os índios conversarem entre si e fazerem uma
contraproposta, 40 mil dólares, e fecharem o negócio.
Fica combinado. Então se faz o filme e a equipe acha que
resolveu o problema. Paga diretinho e coisa e tal. Quando
o filme sai, o diretor recebe um telefonema dizendo o
seguinte: “Você está nos devendo dinheiro, você roubou
da gente!”. Aí ele diz: “Peraí, eu assinei um papel, eu já
dei os 40 mil”, e os índios: “Não, mas você não pagou
não-sei-o-quê”, ou então “não foi para todo mundo”. Aí
ele de repente se dá conta de que os índios têm uma con-
cepção da transação, da relação social em geral, radical-
mente oposta à nossa. Quando fazemos uma transação,
entendemos que ela tem começo, meio e fim, eu lhe dou
um troço, você me paga, estamos quites, você vai para
um lado, eu vou para o outro. Ou seja, a transação é feita
em vista de seu término. Os índios, ao contrário: a tran-
sação não termina nunca, a relação não termina nunca,
começou e não vai acabar nunca mais, é para a vida intei-
ra. Ao pedir mais dinheiro, não é exatamente o dinheiro
que os índios querem, mas a relação. Eles não aceitam
que acabou o lance, acabou coisa nenhuma, agora é que
vai começar. Donde os famosos estereótipos: os índios
pedem o tempo todo. Sim, pedem. E reclamamos que o
que eles obtêm é jogado fora de repente: as aldeias ficam
cheias de objetos descartados que os índios pediram para
nós, insistiram até conseguir, e quando conseguem não
cuidam, jogam fora, deixam apodrecer, enferrujar. E os
brancos ficam com aquela ideia de que esses índios são
uns selvagens mesmo, não sabem cuidar das coisas. Mas
é claro, o problema deles não é o objeto, o que eles que-
rem é a relação.274
274
Viveiros de Castro, Economia da cultura digital, em Savazoni; Cohn
214
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Na antropologia, há muitos estudos sobre o tipo de tran-
sação que ocorre na troca (ou doação) de presentes. Um
dos mais antigos e influentes é o do francês Marcel Mauss,
o hoje clássico “Essai sur le don”, publicado na França em
1924, traduzido no Brasil como “Ensaio sobre a dádiva”275,
em que ele compara diferentes sistemas de dádivas entre
sociedades da Polinésia, Melanésia e noroeste do conti-
nente americano para explicitar a troca de dádivas como
um fenômeno que pressupõe transações diversas – jurídi-
cas, morais, estéticas, religiosas, mitológicas –, além das
econômicas. Mauss afirma que o sistema de troca de dá-
divas nessas sociedades tem um princípio comum regu-
lador: a obrigação de dar, receber e retribuir. No lugar de
reduzir essas transações a meros câmbios de presentes, o
francês mostra que esses processos carregam consigo uma
dimensão moral que confere sentido às relações sociais, o
que as caracteriza como prestações de serviços que visam
estabelecer novas alianças e fortalecer antigas276.
Mauss nota que os bens em circulação nesses sistemas
são inseparáveis de seus proprietários e possuem uma
substância moral própria relacionada à matéria espiritual
(orgs.). Cultura digital.br, p.90.
275
A referência original é Mauss, “Essai sur le don”, L’Année Sociologi-
que I, p.30-186. Em português, o texto está disponível em uma cole-
tânea de artigos do autor: Mauss, Sociologia e antropologia. O antro-
pólogo Marshall Sahlins situa as ideias de dádiva na filosofia política
a partir de Mauss em Stone Age Economics (Economia da Idade da
Pedra), publicado em 1972. Lewis Hyde discorre sobre o tema na área
da cultura e da arte em The Gift (A dádiva), em 1983; entre diversas
outras obras consistentes que desenvolvem, aperfeiçoam e recombi-
nam as ideias de Mauss sobre dádiva.
276
Sertã; Almeida, Ensaio sobre a dádiva, em Enciclopédia de Antropo-
logia. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/obra/ensaio-sobre-dádiva.
215
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do doador de um dado objeto277. Essa substância é doada
quando da troca de um presente e passa a circular jun-
to desse objeto, que então nunca vai ser apenas um “sim-
ples objeto”, seja ele qual for, mas algo que tem intenção e
que convive em igualdade com as pessoas. Nesse sentido,
o sistema da mercadoria conhecido no Ocidente se tor-
na diferente para as perspectivas dos povos tradicionais.
Nas palavras da antropóloga Marilyn Strathern (1984), é a
oposição da economia da commodity, na qual as pessoas e
coisas assumem a forma social de coisas, com a economia
da dádiva (gift), na qual pessoas e coisas assumem a forma
social das pessoas278. É nesse sentido que, em sociedades
originárias de diversos locais do mundo, o modelo de pro-
priedade (particularmente o de propriedade intelectual),
calcado na relação da obra de arte como mercadoria de
consumo, se torna insuficiente para lidar com uma rela-
ção mais duradoura e complexa da circulação de objetos/
bens279. No sistema cultural das sociedades originárias, é
perceptível, em primeiro lugar, a centralidade dos valores
coletivos, ligados à pluralidade e à sobrevivência da comu-
nidade, em relação aos valores individuais, de uso exclu-
sivo e escolha individual. O que, por sua vez, faz com que
os bens culturais e de conhecimento nesse contexto sejam
mais difíceis de se tornar apenas mais uma commodity
277
Ibidem.
278
Strathern, The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems
with Society in Melanesia, p.84. Citado, nesses termos, por Coelho de
Souza, The Forgotten Pattern and the Stolen Design: Contract, Ex-
change and Creativity among the Kĩsêdjê, em Brightman; Fausto;
Grotti, Ownership and Nurture: Studies in Native Amazonian Property
Relations.
279
Coelho de Souza, op. cit., p.183.
216
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vendida como mercadoria, pois há princípios e respon-
sabilidades de reciprocidade e solidariedade que buscam
valorizar a substância moral própria – que poderíamos
também nomear como “alma” – dos objetos em suas re-
lações com as pessoas e o mundo. Para citar um exemplo,
os direitos do povo guarani, um dos mais presentes no
Brasil e na América do Sul, são guiados pelos princípios
de valoração de direitos coletivos em detrimento dos indi-
viduais, o que produz normas mais flexíveis, discutidas de
tempos em tempos em comunidade nas Aty Guassu (gran-
de assembleia), baseadas em suas práticas culturais e que
buscam manter o equilíbrio da convivência e o respeito
às tradições280.
Em segundo lugar, há de se ressaltar que, no sistema
cultural das sociedades originárias, a noção de coletivida-
de é ainda mais complexa do que parece. A antropóloga
Marcela S. Coelho de Souza (2016) diz que, para povos
ameríndios como o Kĩsêdjê, da região próxima ao parque
do Xingu, norte do estado do Mato Grosso, na Amazô-
nia brasileira, nem sujeito nem objeto, nem criador nem
criatura se comportam de acordo com as expectativas oci-
dentais embutidas nessas acepções. O coletivo aqui não
envolve apenas pessoas, mas também objetos e as diferen-
tes relações mútuas entre estes, o que torna o vocabulário
proposto pela noção de propriedade intelectual, calcado
280
“O Direito indígena é uma práxis nascida do consenso social, modi-
ficando-se na própria práxis. São esses princípios que norteiam a moral
comunitária, tabus e mitos, que cerceiam e redirecionam a convivência
social ao plano do equilíbrio e quando então ocorre um desequilíbrio,
esses princípios são direcionados a sanar a ruptura havida.” Vale con-
ferir o artigo: Machado; Ortiz, Direito e cosmologia Guarani: um di-
álogo impreterível, Revista de Direito: trabalho, sociedade e cidadania.
217
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na separação clara entre sujeito e objeto, criador e criatu-
ra, muito pobre para ser usado nesses casos.
Não é fácil harmonizar a lógica de direitos coletivos de
um dado sujeito sobre seu objeto de criação também por-
que, para muitos povos ameríndios, quase tudo que define
a cultura humana vem de fora, ou é obtido de forças exte-
riores. No caso do povo Kĩsêdjê, por exemplo, o milho vem
do rato; o fogo do jaguar; nomes e ornamentos corporais
de uma raça de anões canibais; músicas das abelhas, abu-
tres, árvores e tartarugas aquáticas, entre outros casos que
permitem afirmar: “se a cultura dos Kĩsêdjê pertence aos
Kĩsêdjê, é justamente por que não são eles os criadores”281.
Coelho de Souza afirma que, quando direitos envolven-
do bens culturais e de conhecimento estão em jogo, eles
nunca surgem como direitos coletivos que podem ser ine-
quivocamente atribuídos a pessoas ou grupos, mas antes
a uma vasta rede de prerrogativas heterogêneas, direitos e
obrigações que não se encaixam facilmente nos moldes da
representação legal requerida nas formas de um contra-
to jurídico282.
Criação e propriedade intelectual no pensamento oci-
dental, especialmente a partir do Iluminismo e de John
Locke no século XVII, são noções ligadas à ideia de que
objetos (histórias, narrativas) são feitos a partir do inte-
lecto humano, fruto de nossa subjetividade e como algo
que é uma extensão de nossa identidade. Nessa ideia, a
criatividade é concretizada com a produção de um dado
281
Coelho de Souza, op. cit., p.183.
Coelho de Souza, op. cit., p.181, citando outro texto conhecido da
282
antropologia no Brasil: Carneiro da Cunha, “Cultura” e cultura: co-
nhecimentos tradicionais e direitos intelectuais, em Cultura com as-
pas e outros ensaios, p.311-73.
218
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objeto, mas não emana deste, que permanece inerte e sem
vida – pelo menos em sua concepção legal e tradicional. A
propriedade intelectual, nesse sentido, é ancorada na rela-
ção entre pessoas com respeito a (e mediada por) coisas283,
com uma clara separação entre o que é matéria e o que é
espírito, sujeito e objeto.
A visão ameríndia é bastante distinta. Trata, por exemplo,
os objetos como registros “menos passivos das capacidades
de um sujeito do que as objetificações personificadas dessas
relações”284. De modo que a criação se dá distribuída na rela-
ção entre os múltiplos objetos e pessoas, sem essa separação
entre sujeito e objeto, intelecto e matéria, que estamos acos-
tumados a fazer no Ocidente. A subjetividade também exis-
te nos objetos e forma uma animada paisagem composta de
diferentes tipos de níveis de ações humanas285. Para os ame-
ríndios, cada objeto, assim como animal, é potencialmente
um sujeito, o que nos faz remontar ao perspectivismo amerín-
dio proposto por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze
Lima, conceito amplamente difundido na antropologia e que
podemos definir como a ideia de que “seres providos de alma
reconhecem a si mesmos e àqueles a quem são aparentados
283
Coelho de Souza, op. cit., p.182. Tradução minha para: “Property
is anchored as a relation among people with respect to (mediated by)
things”.
284
Ibidem, p.182.
285
Adaptação minha, no original: “In this distributed mode, recom-
binations are not the work of an intellect separated from matter; here,
subjectivity exists distributed in objects, forming ‘an animated landsca-
pe composed of different kinds of bodies in which change and effect are
events with meaning on the same level as human actions’ (Leach, 2004,
p.169). […] ‘People’ and ‘things’ appear then as indexes of capacities
and powers the apprehension of which becomes the focus of the explicit
practice of subjects” (Coelho de Souza, op. cit., p.183).
219
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como humanos, mas são percebidos por outros seres na for-
ma de animais, espíritos ou modalidades de não humanos”286.
Embora essa concepção seja específica do perspectivis-
mo ameríndio, ela também pode ser aproximada a uma
noção mais ampla, compartilhada por outros povos ori-
ginários da América Latina e de outros lugares do mun-
do, de não separação entre natureza e sociedade. Central
para o que se costuma chamar de modernidade, essa se-
paração tem sido questionada na antropologia faz muitas
décadas287, com mais força ainda a partir dos fenômenos
ligados ao aquecimento global, a partir dos anos 1990, em
que decisões políticas tomadas por governos, pessoas e em-
presas (“sociedade”) têm provocado alterações irreversíveis
no clima do planeta (“natureza”). Para os povos originários,
como os Kĩsêdjê e os Guarani citados aqui, essa divisão
nunca existiu; a mesma concepção de mundo que não sepa-
ra sujeito e objeto e que os inclui no que é chamado coletivo
também não vê diferença entre natureza e sociedade.
Não é por acaso, portanto, que a influência indígena em
países latino-americanos tem trazido o debate em torno
286
Essa definição aqui vem com a ajuda de Maciel, “Perspectivismo ame-
ríndio”, em Enciclopédia de antropologia. Disponível em: http://ea.fflch.
usp.br/conceito/perspectivismo-amer%C3%ADndio. O conceito está
detalhado em, entre outras obras, Um peixe olhou para mim: o povo
Yudjá e a perspectiva, de Tânia Stolze Lima; e A inconstância da alma
selvagem e outros ensaios de antropologia e Metafísicas canibais: elementos
para uma antropologia pós-estrutural, de Eduardo Viveiros de Castro.
287
Entre outros autores, Bruno Latour, em Jamais fomos modernos,
discute a ideia de que a modernidade começa com a cisão entre na-
tureza e sociedade no mundo ocidental, o que abriu caminho para a
destruição da natureza. “A natureza e a sociedade não são dois polos
distintos, mas antes uma mesma produção de sociedades-naturezas,
de coletivos” (p.138).
220
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dos direitos da natureza288, uma perspectiva que questiona
essa separação e tenta incluir árvores, rios, montanhas e
florestas como seres de direito dentro de um sistema legal
vigente ocidental. A Constituição de Montecristi da Re-
pública do Equador, por exemplo, promulgada em 2008,
afirma no artigo 71 do capítulo VII:
A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e se rea-
liza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a
sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos
vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. Toda pes-
soa, comunidade, povoado, ou nacionalidade poderá exi-
gir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da
natureza. [...] O Estado incentivará as pessoas naturais e
jurídicas e os entes coletivos para que protejam a natureza
e promovam o respeito a todos os elementos que formam
um ecossistema.289
A inclusão (ou tentativa) de seres vivos não humanos em
legislações e constituições, como no caso do Equador, re-
verbera também a ideia do bem viver (buen vivir), uma
noção comum há muito tempo entre povos originários da
288
Ou “direitos não humanos”. Ver Gudynas, Direitos da natureza: éti-
ca biocêntrica e políticas ambientais.
289
A Assembleia Constituinte foi presidida por Alberto Acosta, e in-
cluiu ainda 99 artigos que abordam expressamente a questão. Esse
trabalho faz parte de um movimento de diferenciação latino-ameri-
cana da tradicional teoria constitucional europeia, chamado na área
de “neoconstitucionalismo latino-americano”, que inclui também as
constituições da Colômbia (1994) e da Venezuela (1999). Para mais
detalhes, ver: Shiraishi Neto; Tapajós Araújo, “‘Buen vivir’: notas de
um conceito constitucional em disputa”, Pensar, p.379-403, maio-ago.
2015. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view-
File/2886/pdf.
221
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América Latina290 e que tem sido retomada nas últimas
décadas como uma crítica ao desenvolvimentismo e à ne-
cessidade de crescimento e acúmulo de riquezas à custa
tanto da natureza quanto de muitas das populações que
dela vivem diretamente. Para o bem viver, também não
deve haver separação entre natureza e sociedade, o que,
por sua vez, não deve ser confundido como uma “volta ao
passado”, mas a busca, nas raízes ancestrais dos povos ori-
ginários, por uma convivência mais harmoniosa entre ho-
mem e natureza que nos traga saídas, particulares a cada
comunidade, para a crise ambiental e também social que
vivemos hoje.
Em povos nos quais não há separação entre natureza
e cultura, sujeito e objeto, e em que o coletivo, em toda a
complexidade que esse termo pode ter para esses povos,
é prioritário em relação ao individual, é mais difícil falar
de noções como propriedade intelectual, direitos autorais
e cultura livre tal qual comentamos até este capítulo291. As
290
O termo remete a idiomas originários: sumak kawsay em quéchua,
suma qamaña em aimará, além de aparecer também como nhandereko
e teko porã, em guarani. Há noções similares ainda entre os povos Ma-
puche no Chile, os Kunas no Panamá, os Shuar e os Achuar da Ama-
zônia equatoriana, assim como nas tradições maias da Guatemala e de
Chiapas no México. Ver Acosta, O bem viver: uma oportunidade para
imaginar outros mundos.
291
Além de Brightman; Fausto; Grotti (orgs.), Ownership and Nurture:
Studies in Native Amazonian Property Relations, de 2016, coletânea
que traz o artigo de Marcela Coelho de Souza aqui citado, há pelo me-
nos duas obras importantes para quem quer ir mais a fundo no tema:
Strathern, Property, Substance, and Effect: Anthropological Essays on
Persons and Things, e Hirsch; Strathern, Transactions and Creations:
Property Debates and the Stimulus of Melanesia. Agradeço a Eduardo
Viveiros de Castro por essas três indicações.
222
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ideias de cópia, plágio, apropriação e remix foram apre-
sentadas dentro de uma concepção proprietária de mundo,
vigente no Ocidente desde o princípio do capitalismo, mas
que para esses povos citados não é o normal. Ainda assim,
não há como negar que o sistema capitalista busca, com
frequência, se apropriar dos conhecimentos e dos bens
culturais desses povos originários para deles extrair valor
e então vender como mercadoria – como é o caso desde
produtos da floresta usados como remédios ancestrais a
padrões de desenhos reconhecidos como design. Como,
então, criar mecanismos que fomentem o pensamento co-
letivo e comunitário incutido nesses povos, respeitem sua
cosmovisão e, ao mesmo tempo, protejam sua cultura de
gerar mercadorias a serem colocadas à venda num mer-
cado onde a maior parte do valor obtido não irá para eles?
Há dificuldade de uma resposta única para essa ques-
tão. Se, como já vimos, um software tem condições de
produção diferentes de uma música ou de um desenho,
também os contratos desses bens precisam ser diferentes,
de acordo com contextos e atores envolvidos. A proteção
de um domínio público amplo não é excludente da remu-
neração de quem (re)cria, como demonstram as licenças
Arte Livre, Creative Commons e Copyfarleft citadas no
capítulo anterior. A equiparação de objetos e pessoas e o
estabelecimento de uma relação longa de dádiva que não
termina sem guerra podem ser contemplados por nego-
ciações mais complexas, que inventem outros termos que
não os habituais utilizados no campo da propriedade in-
telectual. Algumas das palavras desse novo vocabulário
não têm nada de novas; o copyleft oitentista e o milenar
comum oriundo do res commune romano, por exemplo,
podem ser usados e recriados a partir das perspectivas
223
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ameríndias citadas para estabelecer novos e proteger ve-
lhos comuns através de práticas cotidianas de cuidado e
resistência – inclusive no aspecto legal, essa interface de
mediação que muitas vezes é necessária para a garantia de
um bem viver para todos.
IV.
O cultivo de bens culturais livres à margem da busca in-
dividualista e proprietária da cultura predominante no
Ocidente requer resistência e criatividade. Resistir é pro-
cedimento necessário para a preservação de uma ampla
base de dados coletiva de criação, ao passo que criar é ne-
cessidade básica para reinventar conceitos e práticas para
construir caminhos alternativos de produção, circulação e
remuneração da cultura menos restritivos e mais autôno-
mos. Nesse sentido, há propostas distintas. Para o Creative
Commons, reformar as leis de direitos autorais conceden-
do o direito de escolha das liberdades de uso, circulação
e produção para os identificados como autores é um ca-
minho para a construção de um domínio público vibrante
e acessível. Para o copyleft proposto por Stallman, tornar
softwares e alguns bens culturais livres é uma saída para
lutar contra monopólios que retiram a liberdade de criação
e de escolha autônoma dos usos de uma determinada obra.
Outras pessoas, como a ativista do conhecimento livre
Evelin Heidel (Scann), dizem que o feminismo deveria se
opor ao caráter patriarcal do direito de autor. Propõe, en-
tão, modificar a legislação não de modo punitivista para
dar mais proteção a criações de mulheres que ficaram de
fora dessas legislações, mas sim para gerar um paradigma
que valorize a criação como prática social e comunitária.
224
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“Buscar modificar as leis que hoje criminalizam ou proí-
bem práticas fundamentais para a liberdade de expressão,
para o intercâmbio, a distribuição e a reapropriação da cul-
tura”, de modo que se calem as musas que inspiram os gê-
nios para que, enfim, se possa falar das mulheres292.
Para alguns também aqui citados, como Anna Nimus,
abolir o copyright pode ser a saída. Joost Smiers e Marieke
van Schijndel imaginaram um mundo sem copyright que
tem como ideia principal o fato de que a proteção ofere-
cida pelos direitos de autor não é necessária para o pro-
cesso de expansão da criação artística. Eles citam diversos
argumentos que fazem que seja ilógico apostar no direito
autoral como modelo de regulação da produção cultural;
o fato de ser um direito exclusivo e monopolista de uma
obra privatiza uma parte essencial da nossa comunicação e
prejudica a democracia, por exemplo293; a questão de se ele
é de fato um incentivo econômico ao criador, motivo ale-
gado desde o princípio do direito autoral, mas que alguns
estudos econômicos citados demonstram que, das receitas
obtidas de cópias vendidas, 10% vai para 90% dos artistas
e 90% vai para 10%294; a falsa ideia de originalidade como
expressão individual e exclusiva de algum criador; o fra-
casso do combate à chamada pirataria de arquivos digitais
de obras culturais na rede. Como solução, Smiers e Van
Schijndel apontam para algo próximo ao comum: “Acredi-
tamos que é possível criar mercados culturais de forma a
292
Heidel (Scann), op. cit. Disponível em: https://www.genderit.org/
es/feminist-talk/columna-que-se-callen-las-musas-por-qu-el-femi-
nismo-debe-oponerse-al-copyright.
293
Smiers; Van Schijndel, Imagine um mundo sem direitos do autor
nem monopólios, p.10.
294
Ibidem, p.13.
225
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que a propriedade dos recursos de produção e distribuição
esteja nas mãos de muita gente. Nessas condições, acha-
mos nós, ninguém poderá controlar o conteúdo ou a utili-
zação das formas de expressão cultural através da detenção
exclusiva e monopolista de direitos de propriedade”295.
No Encontro de Cultura Livre do Sul, realizado por co-
letivos culturais da Ibero-América nos dias 21, 22 e 23 de
novembro de 2018296, eu e uma série de ativistas e pesqui-
sadores discutimos e buscamos respostas para algumas das
questões abordadas neste livro. Durante as seis mesas de de-
bate do encontro, falamos sobre políticas públicas e marcos
legais de direitos do autor; digitalização de acervos e acesso
ao patrimônio cultural em repositórios livres; de labora-
tórios, produtoras colaborativas, hackerspaces, hacklabs e
outras formas de organizações que defendem e praticam no
dia a dia a cultura livre; de como nos inserimos em uma
rede internacional que também defenda os bens comuns;
das muitas formas de produção cultural – editorial, musi-
cal, audiovisual, fotográfica – que estão sendo realizadas
no âmbito das licenças e da cultura livre; e das plataformas,
conteúdos e práticas educacionais que têm o livre como pa-
radigma de ação e propagação.
Junto com os mais de duzentos participantes, pensa-
mos sobre as especificidades da cultura livre no sul global
em relação ao norte. Como um dos resultados, escreve-
mos o Manifesto da Cultura Livre do Sul Global297, que
propõe alguns princípios, conceituais e práticos, que acre-
295
Ibidem, p.6.
296
Todos os debates podem ser vistos aqui: http://baixacultura.org/
encontro-de-cultura-livre-do-sul-todos-os-videos-y-relatos.
297
Disponível em: http://baixacultura.org/cultura-livre-do-sul-glo-
bal-um-manifesto.
226
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ditamos serem importantes para a propagação e o cuidado
de uma cultura livre neste sul que não é somente geográfi-
co. O trecho a seguir do manifesto foi um desfecho para o
encontro – e também cabe estar aqui, adaptado, não para
encerrar, mas para manter acesa a longa e contínua dis-
cussão sobre a cultura livre através dos tempos.
A discussão sobre a liberdade de usos e produção de tec-
nologias livres tem sido fundamental para a cultura livre
desde o princípio, mas acreditamos que, no sul, temos a
urgência maior de nos perguntar para que e a quem ser-
vem nossas tecnologias livres. Não basta somente discu-
tir se vamos usar ferramentas produzidas em softwares
livres ou se vamos optar por licenças livres em nossas
produções culturais: necessitamos pensar em tecnolo-
gias, ferramentas e processos livres que sejam usados para
dar espaço, autonomia e respeito aos menos favorecidos,
financeira e tecnologicamente, de nossos continentes, e
para diminuir as desigualdades sociais em nossos locais,
desigualdades estas ainda mais visíveis no contexto de
ascensão fascista global que vivemos neste 2020.
Desde o sul, temos que pensar na cultura livre como um
movimento e uma prática cultural que dialogue intensa-
mente com as culturas populares de nossos continentes;
que respeite e converse com os povos originários da Amé-
rica, que estão aqui em nosso continente vivendo em uma
cultura livre muito antes da chegada dos “latinos”; que de-
fenda o feminismo e os direitos iguais a todos, sem distin-
ção de raça, cor, orientação sexual, identidade e expressão
de gênero, deficiência, aparência física, tamanho corporal,
idade ou religião; que dialogue com a criatividade recom-
binante das periferias dos nossos continentes, afeitas ao
compartilhamento comunitário e sendo alvo principal do
extermínio praticado por nossas polícias regionais; que
busque resguardar nossa privacidade a partir de táticas
227
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antivigilância e na defesa do direito ao anonimato e à crip-
tografia; e que lute pela propagação das fissuras no sistema
capitalista, buscando, a partir de uma prática cultural e
tecnológica anticopyright, formas alternativas e solidárias
de vivermos em harmonia com Pachamama sem esgotar
os recursos já escassos de nosso planeta.
Pensar e fazer a cultura livre desde o sul requer pensarmos
na urgência das necessidades de sobrevivência do nosso
povo. Requer nos aproximarmos da discussão sobre o
comum, conceito-chave que nos une na luta contra a pri-
vatização dos recursos naturais, como os oceanos e o ar,
mas também dos softwares livres e dos protocolos abertos
e gratuitos sob os quais se organiza a internet. Nos apro-
ximar do comum amplia nosso campo de disputa no sul
global e nos aproxima do cotidiano de comunidades, cen-
trais e periféricas, que lutam no dia a dia pela preservação
dos bens comuns.
Importante lembrar que o conceito de comum do qual
buscamos nos aproximar deve ser pensado como algo
em processo, como um fazer comum (commoning em in-
glês). Isso é, não termos em vista somente o produto em
si – livro, vídeo, música, hardware ou software livres –,
mas as nossas próprias práticas e dinâmicas para através
das quais juntos criarmos novas formas de viver, conviver
e também produzir. Este é o fazer comum. Por isso, é im-
portante mantermos vivas as conexões que percorreram
todas as palavras, links, referências e pessoas citadas, de-
batidas, registradas e envolvidas nas páginas deste livro
que aqui continua.
Internet, Ibero-América,
sul-global, 23 de novembro de 2018
remixado no inverno de 2020
228
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229
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POSFÁCIO
230
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Depois de tanto falar em criação, reapropriação, proprie-
dade, cópia, comum, copyleft e copyright através de tem-
pos, de lugares e de visões de mundo diferentes, convém
perguntar: e este livro, qual a sinalização do autor para a
cópia, o uso (privado ou público), a citação e a reapropria-
ção? Adota-se alguma licença, qual?
Minha – nossa, porque, apesar de haver um nome por
trás desta obra, ela não deixa de ser coletiva, como vocês
perceberam ao longo da leitura – escolha é pela licença que
representa o copyleft: Creative Commons CC BY SA298.
Ela diz que este trabalho pode ser compartilhado – co-
piado e redistribuído – por qualquer meio ou formato e
adaptado – remixado, transformado – para qualquer pro-
Seu texto está disponível na íntegra aqui: https://creativecommons.
298
org/licenses/by-sa/4.0/.
231
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pósito. Desde que haja atribuição de autoria, o que signi-
fica que qualquer uso deve mencionar quem escreveu este
trabalho e onde ele foi modificado – parto do ponto de
que quem quiser compartilhar, usar e adaptar este livro
o fará de maneira razoável. E que qualquer obra deriva-
da desta seja compartilhada pela mesma licença descrita
aqui, uma garantia que não permite o fechamento deste
trabalho em uma licença que restrinja todas as indicações
citadas acima.
A abrangência dessa licença é aplicada às formas mate-
riais com que esta obra circula: impressa como livro, em
formato de um arquivo digital E-book e disponibilizada
em partes dentro de plataformas na internet. A escolha
por ela parte do pressuposto de que este trabalho só exis-
te porque muitos outros existiram; e que fomentar outras
obras será um elogio às ideias que aqui circulam. Sabemos
das possibilidades de apropriação indevida e preguiçosa
que muitos já fizeram de obras semelhantes, mas optamos
por esse risco para garantir que este livro será livre para
diferentes fins, inclusive o comercial.
Nesse aspecto, estimulamos o uso, a reapropriação e a
(re)venda deste trabalho para fortalecer pequenas editoras
e selos alternativos, desde que respeitadas as orientações
já indicadas; caso você queira fazer isso, ficaríamos felizes
se nos avisassem. Recordamos, porém, que o trabalho de
editoras independentes como esta precisa ser remunera-
do para que continue existindo. Por isso, considere com-
prá-lo impresso e, assim, valorizar as escolhas editoriais e
gráficas feitas aqui, assim como o investimento financei-
ro realizado – é isso que fará com que outras obras como
esta sejam publicadas. Lembramos, por fim, que a melhor
experiência de ler este texto – como muitos outros – é
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aquela propiciada por esta invenção de milhares de anos
chamada livro impresso, com o cheiro do papel a penetrar
as narinas e estimular uma leitura lenta, de anotações e
sublinhares diversos que puxam diálogos e levam adiante
a experiência única e singular de conhecer.
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AGRADECIMENTOS
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Este livro foi escrito, em sua redação final, entre setembro
de 2019 e setembro de 2020, período do início da pande-
mia do novo coronavírus e de uma quarentena que durou
muito mais que 40 dias. Muitas pessoas me permitiram
e ajudaram a escrevê-lo. Seria difícil citar todas; algumas
delas estão nas referências e nas notas de rodapé.
Outras posso agradecer aqui. As trocas de ideias com
Elias Machado e Leonardo Retamoso Palma foram im-
portantes para muitas das discussões deste trabalho. Em
diferentes momentos e de diferentes formas, foram inter-
locutores, propulsores ou colaboradores das ideias aqui
trazidas nos últimos anos: Rodrigo Savazoni, Mariana Va-
lente, Felipe Fonseca, André Deak, Pedro Markun, Evelyn
Gomes, Lívia Ascava, Sheila Uberti, Janaína Spode, Ca-
rolina Dalla Chiesa, Aline Bueno, Fabrício Solagna, Leo-
nardo Roat, Augusto Paim, Luís Eduardo Tavares, Aracele
Torres, Guilherme Flynn, Pablo Ortellado, Sérgio Ama-
deu, Eduardo Viveiros de Castro, Marcelo Träsel, Rubens
Velloso, Gustavo Torrezan, Sávio Lima Lopes, Reuben da
Cunha Rocha, Edson Andrade, Victor Wolfenbüttel, Wil-
liam Araújo, Pedro Jatobá, Rodrigo Troian, Joel Grigolo,
Iuri Martins, Thiago Almeida, Douglas Freitas, Márcia
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Veiga, Angelo Kirst Adami e Tatiana Dias (que deu pre-
ciosas sugestões na reta final do texto). Agradeço também
a Daniel Santini e Cauê Seignermartin Ameni, pelo apoio
e confiança no projeto. E a Beatriz Martins, Carlos Lun-
na, Jorge Gemetto, Mariana Fossati, Dani Cottilas, Bar-
bi Couto e a rede de Cultura Livre do Sul, que estiveram
como laboratório de muitas das palavras escritas aqui, as-
sim como a Rede das Produtoras Culturais Colaborativas,
ambos coletivos que põem em prática alguns dos entendi-
mentos da cultura livre.
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SOBRE O AUTOR
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Foto: Sheila Uberti
Leonardo Feltrin Foletto nasceu em Taquari, interior do
Rio Grande do Sul. Formado como jornalista na UFSM,
em Santa Maria-RS, fez Mestrado em Jornalismo na UFSC
e Doutorado em Comunicação na UFRGS, com pesquisas
ligadas a comunicação, tecnologia e ativismo. Como jorna-
lista de redação, esteve em A Razão, de Santa Maria, e na
Folha de S.Paulo (Ilustrada). Foi professor visitante em al-
gumas universidades (PUC-RS, UCS, Unisinos, PUC-SP e
Unochapecó) e escreveu Efêmero revisitado: conversas sobre
teatro e cultura digital, a partir de uma bolsa da Fundação
Nacional das Artes (Funarte) em 2011. Desde 2007 traba-
lha com comunicação digital, cultura livre e tecnopolítica
no Brasil e na Ibero-América em projetos como Casa da
Cultura Digital (São Paulo e Porto Alegre), Ônibus Hacker,
Festival BaixoCentro, Fórum Internacional do Software
Livre (FISL), Rede de Produtoras Culturais Colaborativas,
hackerspace Matehackers, Labhacker, Creative Commons
Brasil e LabCidade (FAU-USP), entre outros. Além do
BaixaCultura (baixacultura.org), espaço on-line de cultu-
ra livre e (contra) cultura digital em atividade desde 2008,
laboratório e extensão de boa parte das ideias trazidas aqui.
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Fontes: Minion Pro e Andale Mono
Papel: Pólen Bold 80g
Impressão: Graphium
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N
no mercado das tecno- ão é porque é que
logias de reprodução. tem que
de ser.
ser.Esse
Esse
E com isso escanca- é o gosto que fica
ra que a cultura li- do giro que este li-
vre já se encontra no vro faz em torno de
meio de nós. múltiplas e diversas
abordagens a respeito
Mariana Valente da apropriação in-
Diretora do InternetLab dividual de bens da
e professora do Insper.
cultura, e em torno
Coordenadora do Creative
Commons Brasil. do que se trata, afi-
nal, ser alguém que
cria. No percurso, dá
visibilidade ao fato
de nem sempre, nem em
em todos
todos os lugares,
os lugares a
a cultura
cultura ter
foisido
- ou- ou
é
- ordenada
ser - ordenada
sob sob
a ló- a
gica dada
lógica propriedade
proprieda-
intelectual.
de intelectual.
Em Em
um um
aberto questionamento
sobre a que servem os
regimes de proprie-
dade intelectual, o
LEONARDO FOLETTO, nascido
livro traz ao centro
em Taquari, interior do Rio
Grande do Sul, é jornalis- do palco as práticas
ta, pesquisador e professor. de resistência cons-
Formado pela UFSM, fez Mes- cientes e espontâneas
trado em Jornalismo na UFSC e – na arte, no coti-
Doutorado em Comunicação na
diano das ruas e na
UFRGS. Trabalha com comuni-
cação digital, cultura livre internet, nos ativis-
e tecnopolítica no Brasil e mos, nas articulações
na Ibero-América em projetos comunitárias em torno
como o BaixaCultura, labora- do comum, na noção de
tório online de cultura livre
coletividade de povos
e (contra) cultura digital,
em atividade desde 2008. ameríndios, e mesmo