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A Cultura é Livre: Uma história da resistência antipropriedade

Authors Leonardo Foletto

License CC-BY-SA-4.0

Plaintext
                                N
no mercado das tecno-                ão é porque é que
logias de reprodução.                tem que
                                         de ser.
                                              ser.Esse
                                                    Esse
E com isso escanca-                  é o gosto que fica
ra que a cultura li-            do giro que este li-
vre já se encontra no           vro faz em torno de
meio de nós.                    múltiplas e diversas
                                abordagens a respeito
        Mariana Valente         da apropriação in-
   Diretora do InternetLab      dividual de bens da
   e professora do Insper.
                                cultura, e em torno
  Coordenadora do Creative
           Commons Brasil.      do que se trata, afi-
                                nal, ser alguém que
                                cria. No percurso, dá
                                visibilidade ao fato
                                de nem sempre, nem em
                                em todos
                                todos  os lugares,
                                          os lugares a
                                a cultura
                                cultura  ter
                                           foisido
                                                - ou- ou
                                                       é
                                - ordenada
                                ser  - ordenada
                                             sob sob
                                                 a ló- a
                                gica dada
                                lógica   propriedade
                                           proprieda-
                                intelectual.
                                de  intelectual.
                                               Em Em
                                                   um um
                                aberto questionamento
                                sobre a que servem os
                                regimes de proprie-
                                dade intelectual, o
LEONARDO FOLETTO, nascido
                                livro traz ao centro
em Taquari, interior do Rio
Grande do Sul, é jornalis-      do palco as práticas
ta, pesquisador e professor.    de resistência cons-
Formado pela UFSM, fez Mes-     cientes e espontâneas
trado em Jornalismo na UFSC e   – na arte, no coti-
Doutorado em Comunicação na
                                diano das ruas e na
UFRGS. Trabalha com comuni-
cação digital, cultura livre    internet, nos ativis-
e tecnopolítica no Brasil e     mos, nas articulações
na Ibero-América em projetos    comunitárias em torno
como o BaixaCultura, labora-    do comum, na noção de
tório online de cultura livre
                                coletividade de povos
e (contra) cultura digital,
em atividade desde 2008.        ameríndios, e mesmo
                        1



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                              A CULTURA É LIVRE
                        UMA HISTÓRIA DA RESISTÊNCIA ANTIPROPRIEDADE




                                       Leonardo Foletto

                                          1a edição




                         leonardo foletto

                                                                      3



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               Coordenação editorial
               Cauê Seignemartin Ameni e Daniel Santini
               Preparação
               Tulio Kawata
               Revisão
               Hugo Maciel de Carvalho
               Capa, ilustrações e diagramação
               Rodrigo Corrêa
               Autonomia Literária
               Conselho editorial
               Cauê Seignemartin Ameni, Hugo Albuquerque & Manuela Beloni
               Fundação Rosa Luxemburgo
               Escritório Brasil – São Paulo
               Diretor Torge Löding
               Esta publicação foi realizada com apoio da Fundação Rosa
               Luxemburgo e fundos do Ministério Federal para a Coopera-
               ção Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).
               Sobre licenças e usos, ver o pósfacio ao final do livro.




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                        PREFÁCIO                 6
                        APRESENTAÇÃO            10
                        INTRODUÇÃO              16
                        CAPITULO 1
                        CULTURA ORAL			         24
                        CAPITULO 2
                        CULTURA IMPRESSA        40
                        CAPITULO 3
                        CULTURA PROPRIETÁRIA   60
                        CAPÍTULO 4
                        CULTURA RECOMBINANTE   94
                        CAPITULO 5
                        CULTURA LIVRE			       130
                        CAPITULO 6
                        CULTURA COLETIVA       196
                        POSFÁCIO               230
                        REFERÊNCIAS            234
                        AGRADECIMENTOS         250
                        SOBRE O AUTOR          254


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                        PREFÁCIO




               6



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                        O arco conceitual aberto por este livro que você tem em
                        mãos vai de Ocidente a Oriente, cobrindo toda a traje-
                        tória das especulações sobre as noções contrastantes de
                        propriedade intelectual e domínio público, desde a Gré-
                        cia, a Roma antigas e a China Imperial sob a influência do
                        confucionismo, passando pela Idade Média e os mundos
                        renascentista e iluminista europeus, pela modernidade
                        globalizante da expansão dos horizontes mundiais do
                        período das descobertas – a expansão para as Américas,
                        África e Ásia –, até os nossos dias, com os extraordinários
                        impactos das modernas tecnologias digitais sobre a pro-
                        dução e circulação de obras culturais em todo o planeta.
                            Esse arco conceitual é, neste livro, vivamente ilustrado
                        pelas várias passagens históricas que deram corpo e alma
                        à construção dos chamados “direitos de propriedade in-
                        telectual”. O livro cobre essa construção com múltiplas
                        observações sobre como “pessoas, grupos e movimentos
                        subverteram o status quo de suas épocas, da criação e cir-
                        culação da cultura e da arte”. Traz ilustrações que vão desde
                        as descrições sobre técnicas de utilização do papiro para
                        a confecção dos primeiros livros em remotas épocas im-
                        periais, passando pela revolução da imprensa abrindo os


                                                                                   7



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               tempos pós-medievais (com Gutenberg), constatando as
               novas injunções econômico-político-sociais na Inglaterra
               e na França – dos séculos XVI ao XVIII – em sua transição
               de monarquias absolutistas para regimes constitucionais
               (com o surgimento do copyright e do direito do autor), ob-
               servando o advento do rádio (com Guglielmo Marconi),
               até, afinal, desembocar na era contemporânea do cinema,
               da televisão e da internet com tudo que nos familiariza,
               hoje, com a chamada Cultura Livre (o software livre, o
               sampler, as várias formas de compartilhamento etc.).
                  A minha referência a esse amplo arco de abrangên-
               cia conceitual do livro vem do desejo de que ele seja lido
               com a lente multifocal que requer, necessária para cobrir
               o largo espectro de ambição do autor ao tratar de uma das
               mais complexas questões da história cultural da humani-
               dade. As implicações da existência de uma ou de múlti-
               plas noções de um direito proprietário, com respeito às
               nossas atividades artísticas e intelectuais ao longo dos vá-
               rios tempos dos desdobramentos da nossa civilização, é
               fundamental para a compreensão de como chegamos até
               aqui e de para onde estamos caminhando como sociedade
               humana. Este livro, ainda que centrado no direito autoral
               em oposição ao domínio público das ideias – seara por si
               só suficiente para preencher todo um universo especula-
               tivo –, nos informa sobre conhecimento e razão, nos aju-
               da a balizar nosso horizonte de desenvolvimento humano
               com a largura da pluralidade de olhares. O livro mira na
               propriedade intelectual, mas revela muito mais: a própria
               noção histórica de propriedade, todo um mundo de ca-
               rências e riquezas dos possuidores e dos despossuídos.
                  Um livro vasto sobre cultura, política, sociologia, an-
               tropologia e história. Um livro de uma sobriedade elo-



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                        quente sobre questões quase sempre nada sóbrias na di-
                        nâmica das disputas humanas. Um livro para a atualidade,
                        para a pós-modernidade e para o futuro civilizatório. A
                        tirar proveito, vejamos.


                                                                    Gilberto Gil




                                                                              9



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                         APRESENTAÇÃO




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                         Este livro nasce de um esforço que data de 2008, ano da
                         criação do BaixaCultura1, blog, site, projeto, laboratório
                         on-line criado por mim e pelo poeta Reuben da Cunha
                         Rocha, então mestrandos de universidades públicas num
                         Brasil que ainda acreditava no futuro. Ao buscar escre-
                         ver sobre produtos culturais que pudessem ser consumi-
                         dos (apreciados, fruídos, curtidos) na internet, em pou-
                         cos meses nos deparamos com a cultura livre, então uma
                         ideia que falava da principal discussão na internet mun-
                         dial daquele momento: o compartilhamento de arquivos
                         na rede e as disputas em torno da (i)legalidade desse ato.
                         Logo puxamos o fio: software livre, copyleft, cultura di-
                         gital, hackers e ciberativismo vieram de um lado; remix,
                         plágio, apropriação, arte radical, contracultura, de outro.
                         Unimos ambos os fios com a pirataria, o compartilhamen-
                         to e a discussão tecnopolítica.
                            Onze anos depois, mais de trezentos textos publicados e
                         um tanto de debates, mostras de filmes, oficinas, palestras,
                         conversas e entrevistas realizadas, o BaixaCultura perma-
                         necia. Sem Reuben desde 2010, coube a mim, com ajuda de

                         1
                             Disponível em: http://baixacultura.org.


                                                                                  11



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              diversas pessoas ao longo desse período, manter o espaço
              aberto, agora em uma outra internet e com a pauta do com-
              partilhamento de arquivos e da cultura livre com menor es-
              paço em todos os lugares. As promessas de transformação
              radical da sociedade que a internet convocava em muitos
              de nós naquela época se transformaram em algo próximo
              a um pesadelo. Em 2020, não houve como fugir de uma
              palavra para descrevê-lo: distopia. Ainda assim, o compar-
              tilhamento de arquivos na rede continua firme nos guetos
              hackers e contraculturais; a cultura livre segue como movi-
              mento em prol não só de uma cultura, mas também de um
              conhecimento livre e dos bens comuns; o copyleft se man-
              tém como um dos maiores hacks em mais de três séculos de
              direitos autorais no Ocidente; o software livre permanece
              como uma utopia de construção colaborativa e solidária de
              tecnologias que, por ora, e por um triz, perdeu a chance
              de ser a realidade global; e o remix virou a principal forma
              de criação artística num mundo que, mais conectado do
              que nunca, não tem mais dúvidas que só se cria recriando.
                  Por todos esses motivos, continua sendo importan-
              te falar de cultura livre. A partir do escopo debatido no
              BaixaCultura nesse período e em diversos outros lugares
              por muitas pessoas, o que este livro busca é dissecar uma
              ideia que começou muito antes da internet e permanecerá
              enquanto houver ser humano vivo criando. Seria, porém,
              uma extensa e hercúlea jornada dar conta de falar de to-
              dos os aspectos que envolvem uma ideia de história tão
              longa. Por isso a escolha de buscar situar, contextualizar,
              recuperar, e debater um mínimo múltiplo comum sobre o
              tema, com ajuda de muitas áreas – história, direito, co-
              municação, arte, sociologia, antropologia, ciência política,
              estudos de ciência e tecnologia, computação.



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                             Desenvolvida e propagada como ideia na década de
                         1990, nos primeiros anos da internet no mundo, a cultura
                         livre se alimenta diretamente do conceito de software livre
                         e do copyleft, ambas criações relacionadas a produtos tec-
                         nológicos – o software – do início dos anos 1980. Sua base,
                         portanto, está relacionada ao desenvolvimento da tecno-
                         logia digital, assim como sua popularização é fruto de um
                         cenário de expansão do acesso à informação a partir da in-
                         ternet. Mas a ideia de cultura livre, pelo menos na perspec-
                         tiva que abordo aqui, tem uma história que começa muito
                         antes do software livre e da internet. Falar de formas livres
                         de criação, uso, modificação, consumo, proteção e reprodu-
                         ção de cultura passa por entender as maneiras de produzir e
                         circular informação e cultura em diferentes períodos histó-
                         ricos, como a Antiguidade, a Idade Média e a modernidade;
                         considerar os mecanismos criados pelo direito ocidental
                         para controlar (e restringir) a criação intelectual; perceber
                         como invenções tecnológicas como a imprensa, o gramofo-
                         ne, o cinema, o rádio, a fotografia, os computadores e prin-
                         cipalmente a internet têm grande importância na alteração
                         de todos os aspectos da criação cultural. Falar de cultura
                         livre também é olhar para como foram sendo construídas
                         as ideias de autoria, propriedade intelectual, original e có-
                         pia, sem esquecer das noções do Extremo Oriente e dos po-
                         vos indígenas das Américas sobre esses assuntos; observar
                         como pessoas, grupos e movimentos subverteram o status
                         quo da criação e da circulação da cultura de suas épocas, em
                         especial ao longo do século XX, e das implicações políticas
                         de suas ações.
                             Pensado durante longo tempo e começado finalmente
                         a ser escrito em 2019, este livro investiga a cultura livre
                         também entre dois lados conhecidos: o da remuneração



                                                                                   13



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              aos criadores, que deveria garantir a continuidade na pro-
              dução de suas obras, e o do acesso, (re)uso e circulação
              das obras, que prometeria à humanidade o direito de fruí-
              -las e recriá-las. Nesses dois polos, muitas vezes colocados
              como antagônicos, há nuances e questionamentos, entre
              os quais o da própria concepção de que alguém possa ser
              dono de uma ideia, uma melodia, uma frase, uma ima-
              gem, uma tecnologia, e a do entendimento de que uma
              obra não possa ser compartilhada ou consumida sem al-
              gum pagamento a quem a criou. Terei dado por cumprido
              o objetivo deste livro se, ao final, der para sacar que há
              muito mais nuances (e polos) para ver e entender a cultura
              livre do que se imagina.


                                                      Leonardo Foletto
                                             São Paulo, inverno de 2020




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                         INTRODUÇÃO




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                         A palavra “cultura” teve tantos sentidos no decorrer da
                         história que vamos, de início, buscar uma definição para
                         conseguir acrescentar a ela o livre que nomeia este livro.
                         O primeiro capítulo do livro Micropolíticas: cartografias
                         do desejo (1984), de Felix Guattari e Suely Rolnik, tem o
                         título “Cultura: um conceito reacionário?”, um texto que
                         traz diferentes sentidos de cultura que podem nos ajudar:
                         o sentido A é definido como cultura-valor e corresponde a
                         um julgamento de valor que determina quem tem e quem
                         não tem cultura. É manifestado, por exemplo, em certos
                         diálogos corriqueiros nos quais se fala que “tal sujeito é
                         bem-educado, estudou em colégios caros, viajou o mun-
                         do, tem cultura”.
                             O sentido B é o de cultura-alma coletiva, algo que, di-
                         ferentemente do primeiro, todos têm: há cultura negra,
                         cultura queer, cultura underground. Seria o conjunto de
                         produções, valores, modos de fazer e de viver, uma “es-
                         pécie de alma um tanto vaga, difícil de captar, e que se
                         prestou no curso da História a toda espécie de ambigui-
                         dade”2. A cada alma coletiva (os povos, as etnias, os gru-

                         2
                             Guattari; Rolnik, Micropolíticas: cartografias do desejo, p.19.


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              pos sociais) é atribuída uma cultura; em muitos casos, é
              também sinônimo de civilização, algo que foi bastante
              problematizado na antropologia, área na qual a cultura é
              foco central e que, por isso mesmo, conta com inúmeros
              conceitos e debates3. O sentido C proposto por Guattari e
              Rolnik é o de cultura-mercadoria, como um produto pos-
              to num mercado de circulação monetária. É um sentido
              mais objetivo que os outros dois, pois se refere a algo que
              podemos ver e tocar: um livro, um quadro, por exemplo.
              Poderíamos usar esse sentido para designar outra noção,
              a de bens culturais, que seriam aqueles objetos postos em
              circulação em um mercado que inclui outras pessoas além
              de seu criador. Alguns exemplos são um desenho publica-
              do num blog na internet, um vídeo produzido a oito mãos
              de um smartphone e disponibilizado numa plataforma de
              streaming, textos políticos diagramados em formato de
              zine para serem vendidos ou distribuídos numa banqui-
              nha na rua, um livro de poesia de uma editora, um ensaio
              sobre arte em uma revista mensal. Existem diversos ou-
              tros; basta satisfazer a necessidade de serem organizados
              em algum formato reconhecido e circularem para diver-
              sas pessoas.
                 No sentido A, não é como falar na liberdade de uma cul-
              tura que é vista como um valor, pois, ainda que seja possí-
              vel escrever, não é lógico falar em “valor livre” em oposi-
              ção a um “valor fechado”, por exemplo. Um sujeito que é
              tido como alguém que tem cultura não é identificado como

              3
                Como muitos outros antropólogos, Clifford Geertz, por exemplo,
              fala em cultura como modos de viver diversos e várias maneiras de
              se expressar (A interpretação das culturas); Marshall Sahlins fala de
              cultura como razão prática (Cultura e razão prática); e Roy Wagner
              fala de capacidade inventiva na alteridade (A invenção da cultura).


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                         portador de uma cultura livre. No sentido B, cultura como
                         “alma coletiva”, ela já é livre a priori; não há cultura under-
                         ground que não seja livre, nem uma cultura como o samba
                         ou hip-hop, por exemplo, que seja toda ela fechada e pro-
                         priedade de uma única empresa. Mas há bens culturais pro-
                         duzidos no âmbito dessas culturas que não são livres, obje-
                         tos que bebem nas ditas almas coletivas e passam a circular
                         num dado mercado e se tornam propriedade de alguns.
                             É, por fim, no sentido C de “cultura” que vamos falar
                         aqui de cultura livre: como uma cultura que é colocada em
                         circulação a partir de certos bens culturais em um dado
                         mercado, bens que são de livre acesso, difusão, adaptação
                         e valor – todas características que vão ser tensionadas ao
                         longo deste livro. Ainda que essa cultura seja uma merca-
                         doria, tida em conjunto como um valor distintivo e fruto
                         de uma alma coletiva que carrega suas políticas e relações
                         sociais, essa distinção por ora nos situa num conceito ao
                         longo das próximas páginas.
                             Definida uma noção maleável de cultura e de cultura
                         livre, podemos passar para outros conceitos que é impor-
                         tante que estejam, embora em versão mínima, neste pró-
                         logo. A noção de que um texto, um livro, uma peça teatral,
                         um quadro possa ser vendido por um valor determinado
                         não é algo dado desde sempre na história da humanidade,
                         mas sim uma concepção estabelecida como senso comum
                         a partir dos séculos XVII e XVIII, com o surgimento dos
                         primeiros monopólios dados a impressores, da invenção
                         do copyright, da propriedade intelectual e dos direitos de
                         autor. Antes disso, havia, claro, produção de livros, de-
                         senhos, pinturas, esculturas, peças teatrais sendo feitos e
                         postos em circulação para diferentes públicos, mas não
                         havia um consenso de que essas obras circulariam em tro-



                                                                                    19



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              ca de uma certa quantia, que seria paga ao seu dono, ou
              a quem as produziu. E não havia por diversos motivos:
              primeiro porque a circulação era restrita, dada a dificul-
              dade de se produzir (no caso de um livro, por exemplo);
              segundo porque a forma de fruição dessas obras era co-
              mumente coletiva e oral, não individual; e terceiro porque
              não era muito claro o sentido de que uma dada obra tinha
              algum dono ou mesmo um autor, como dito no capítulo
              1: “Cultura oral”.
                  Só começa a fazer sentido a relação dos bens culturais
              como mercadorias com um determinado preço e com au-
              tor quando, no século XV, se cria uma máquina de im-
              pressão que propaga certos tipos de bens culturais para
              públicos muito maiores do que existiam até então. Daí se
              estabelecem formas de controlar a circulação desses bens
              com leis, como o copyright, um direito concedido a al-
              guém, de modo exclusivo, para produzir e reproduzir uma
              obra, como apresentado no capítulo 2: “Cultura impres-
              sa”. Logo depois, surge a noção de propriedade intelectual,
              que se consolidou nos séculos seguintes como um ramo
              do direito civil, que vai buscar regular criações do intelec-
              to humano, como mostrado no capítulo 3: “Cultura pro-
              prietária”, a partir de uma relação, até hoje questionada,
              com a propriedade física.
                  A partir do século XIX, a propriedade intelectual se
              consolida dividida em dois ramos. Um deles é o direito de
              autor, estabelecido na sequência do copyright, no século
              XVIII, na França do Iluminismo, como um conjunto de
              prerrogativas dadas por lei a uma pessoa ou uma empresa
              a quem se atribui a criação de uma obra intelectual. Os
              direitos autorais vão ser, por sua vez, divididos em outros
              dois ramos: os direitos morais, referentes às leis que regem



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                         a autoria de uma obra e a sua integridade, ou seja, a possi-
                         bilidade ou não de alterar uma dada criação; e os direitos
                         patrimoniais, que regulam a produção e reprodução co-
                         mercial dessa obra. Nesse período já se percebe que havia
                         uma situação mais complexa na circulação de uma obra
                         para muito mais pessoas; que, com isso, se passava a uma
                         fruição menos coletiva e cada vez mais individual de bens
                         culturais; e, também, que o autor de uma determinada
                         obra pode ser identificado como aquele “que permite su-
                         perar as contradições que podem se desencadear em uma
                         série de textos”4.
                             No final do século XIX e durante o século XX, quando
                         essas noções se consolidam no senso comum e em um sis-
                         tema legal de propriedade intelectual, são inúmeras as for-
                         mas, em especial na arte e na contracultura, de contestar o
                         estabelecido. “Preciso pagar a alguém para ler um livro?”,
                         “Sou dono deste texto?”, “Quem disse que não posso usar
                         um trecho de uma obra para fazer outra, ou para inventar
                         uma nova forma de arte, novos bens culturais?”. Alguns
                         movimentos, vanguardas, artistas e coletivos enfrentam o
                         status quo do direito autoral e da autoria e, por isso, se tor-
                         nam defensores de uma cultura livre antes de o termo se
                         popularizar, assim como há outros que questionam a con-
                         dição de originalidade de uma dada obra numa época de
                         propagação das máquinas técnicas de reprodução, como
                         informado no capítulo 4: “Cultura recombinante”.
                             O outro ramo em que se divide a propriedade intelec-
                         tual é a chamada propriedade industrial. É ligada à produ-
                         ção e uso de determinados bens em escala industrial, o que
                         amplia o controle legal da criação para processos, inven-

                         4
                          Como Michel Foucault conceituou em seu conhecido ensaio “O que
                         é um autor?”, em 1969 em Ditos e escritos, v. 3.


                                                                                    21



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              ções, modelos, desenhos, identificados como obras utili-
              tárias – ou seja, que são usadas para um determinado fim
              em um dado mercado, em oposição ao direito autoral, que
              rege a criação artística, científica, musical, literária e que,
              nessa concepção, não seriam utilitárias. As propriedades
              industriais têm como seu elemento registrador principal
              a patente, uma concessão pública – fornecida por algum
              órgão de Estado, portanto – para um dado titular explorar
              comercialmente, de modo exclusivo e limitado no tempo,
              uma determinada criação. Da lâmpada incandescente à
              máquina fotográfica de filme, do fonógrafo de Thomas
              Edison até o software, as patentes são monopólios de ex-
              ploração comercial de uma ideia que geram muito dinhei-
              ro, por isso também muitas batalhas e questionamentos
              críticos, especialmente do século XIX em diante.
                  A expansão da tecnologia digital e sua quase onipresen-
              ça na vida de boa parte dos mais de sete bilhões de pessoas
              que habitam o planeta Terra no século XXI resultam em
              condições ainda mais complexas de produção, circulação
              e comercialização de bens culturais. Com isso, outra noção
              que perpassa esta obra se torna ainda mais maleável: o que
              é cópia e o que é original, afinal? Se a internet somente fun-
              ciona na base da cópia de dados e arquivos que são repas-
              sados e compartilhados, é possível controlar a reprodução
              de uma música milhões de vezes copiada e que, entretanto,
              continua a existir igualmente em todos as milhões de có-
              pias? A discussão em torno do compartilhamento de arqui-
              vos na rede e suas consequências resulta, enfim, no capítulo
              5: “Cultura livre”, não por acaso o maior de todos.
                  Tradições milenares no Extremo Oriente e em alguns
              povos originários da América Latina nos mostram que o
              mundo não é só o que chamamos de Ocidente e que a pers-



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                         pectiva sobre o que é cópia, original, livre e coletivo tem
                         diferenças significativas entre culturas diversas. São ideias
                         que nos incitam a descolonizar nosso olhar ocidental apli-
                         cado às histórias, filosofias e modos de pensar as coisas e o
                         mundo como conhecemos, e buscar modos diferentes de
                         ver essas questões, como é o caso do conceito de shanzai,
                         na China, sinônimo de produto falso, fake, mas também
                         um jeito de ver os bens culturais como elementos sempre
                         em transformação de acordo com cada contexto, objeti-
                         vo e fim, sem uma única e sagrada origem. E também a
                         perspectiva de alguns povos ameríndios que, ao não se-
                         parar sujeito e objeto, tornam o vocabulário desenvolvido
                         sobre propriedade e direito autoral insuficiente para ser
                         usado com esses povos, como apresentado no capítulo 6:
                         “Cultura coletiva”. É a partir da mescla de algumas dessas
                         experiências não ocidentais citadas e de uma visão desde
                         o chamado sul global que, ao final desse capítulo, aponta-
                         mos algumas alternativas para a propagação e a defesa de
                         uma cultura livre hoje.




                                                                                   23



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                             CAPÍTULO 1
                         CULTURA ORAL




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                         Confio a você, Quinciano, meus livrinhos.
                         Se é que posso chamar de meu o que um poe-
                         ta amigo seu recita. Se eles se queixam de
                         sua dolorosa escravidão, vá acudi-los por
                         inteiro. E quando aquele se proclamar seu
                         dono, diga que eles são meus e que foram
                         libertados. Se você falar em voz alta três
                         ou quatro vezes, fará com que o plagiário
                         se envergonhe.

                          Marco Valério Marcial, Epigramas, séc. I


                         A imitação é essencial, a fabricação é pe-
                         rigosa, a matéria é propriedade coletiva.

                                                     Alguém, séc. I


                         As melhores ideias são de todos; portanto,
                         dado que o que é de todos é também de cada
                         um, toda verdade me pertence; tudo que há
                         sido dito bem por alguém também é meu.

                                                    Sêneca, séc. II

                         O fortalecimento da atribuição divina à
                         autoria se estabelece como o padrão na Ida-
                         de Média a partir dos séculos VII e VIII;
                         há uma tendência progressiva em considerar
                         cada texto parte de um grande discurso, uma
                         comunidade de linguagem que diluía o par-
                         ticular em uma significação geral propícia
                         à antologia, a expressão estereotipada da
                         (re)combinação de elementos preexistentes.

                          Kevin Perromat, El plagio en las litera-
                                            turas hispánicas, 2010




                                                                 25



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              I.

              As artes produzidas na Antiguidade grega e romana
              não parecem ter prestado atenção especial à questão de
              propriedade ligada à cultura. Não há vestígios de referências
              a códigos jurídicos, proteções, sanções ou direitos sobre
              produção e circulação de obras culturais parecidos com
              os que temos hoje. Como escreve Kevin Perromat5 em
              seu extenso estudo sobre o plágio na literatura hispânica,
              há diversos fatores que nos fariam deduzir que ambas as
              civilizações, com escritores, dramaturgos e filósofos que
              mais de dois mil anos depois ainda são conhecidos e lidos no
              mundo inteiro, com uma profusão de artistas, comerciantes
              e sobretudo juristas (em especial os romanos), poderiam
              ter buscado regulamentar a produção e a disseminação de
              bens culturais. Mas não o fizeram – ou o fizeram de uma
              forma de que não se guardaram registros até hoje. Por quê?
                 A primeira razão é que, nas civilizações grega e roma-
              na, as narrativas faziam parte de uma tradição comum, o
              que permitia recriações de acordo com os seus diversos

              5
                  Perromat, El plagio en las literaturas hispânicas, p.24.


              26



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                         porta-vozes e os contextos em que eram contadas. Não era
                         possível rastrear suas origens exatas e muito menos impe-
                         dir sua livre circulação. A criação poética, por exemplo,
                         era de natureza fluida, e mesmo que o contador de uma
                         dada história pudesse ser reconhecido, sua contribuição
                         não era tida como fruto de sua individualidade, mas de
                         uma cultura coletiva na qual ele estava mergulhado. Aqui-
                         lo que poderia ter acrescentado ao poema não era regis-
                         trado para a posteridade; não havia essa preocupação6,
                         assim como também não havia controle sobre a produção
                         e a distribuição de uma obra.
                            Em uma sociedade predominantemente analfabeta,
                         a finalidade de uma obra cultural – tanto uma peça de
                         teatro quanto uma música ou um poema, mas também
                         textos políticos – era a circulação pública em praças, tea-
                         tros, ruas, púlpitos. Tanto a escrita quanto a leitura eram
                         para poucos; as ideias e a cultura circulavam na voz – e na
                         reapropriação – de cada um que falava. O filósofo grego
                         Sócrates, um dos pais da filosofia ocidental e a quem co-
                         nhecemos somente por meio do texto de outros, chega a
                         dizer em Fedro, diálogo compilado por Platão em torno
                         de 370 a.C., que a escrita era uma perda em relação ao
                         discurso oral, segundo ele mais apropriado para manter o
                         pensamento vivo. Sócrates falava da ameaça que a escrita
                         representava para a manutenção das funções da memória,
                         que ficaria subutilizada e perderia sua potência à medida
                         que os registros fossem transferidos para o papel7.
                            Não havia também uma sólida noção de autor, pelo
                         menos no âmbito jurídico, o que só foi ocorrer a partir do

                         6
                           Martins, Autoria em rede: os novos processos autorais através das re-
                         des eletrônicas, p.28.
                         7
                           Ibidem, p.78.


                                                                                            27



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              século XVIII. A autoria era principalmente coletiva, atri-
              buída a uma dada cultura ou aos deuses, fruto de uma ins-
              piração divina ou de uma construção comunitária em que
              importava mais o conteúdo e o que ele poderia ensinar do
              que seu porta-voz. Homero, a quem se atribui a escrita dos
              clássicos Ilíada e Odisseia em torno dos séculos VIII e VII
              a.C., é um exemplo desse período: não existe evidência
              a respeito da data de criação dessas duas obras nem que
              houve uma pessoa chamada Homero que a escreveu. O
              relato da Guerra de Troia e dos diversos percalços da jor-
              nada de Ulisses de volta a sua Ítaca natal, eixos narrativos
              centrais de Ilíada e Odisseia respectivamente, são histó-
              rias que condensam uma visão de mundo e ensinamentos
              que representam um modo comum de pensar dos gregos,
              enraizados na cultura da época. Homero é um arquétipo,
              construído posteriormente, e que cumpria funções como
              a de um horizonte linguístico ou “pai e avô” dos poetas,
              uma figura quase mística a quem coube contar uma histó-
              ria que, conhecida e construída por muitos, era tida como
              de autoria de deuses, musas, entidades da natureza8.
                 Com a difusão da escrita a partir do século VII a.C.,
              surgem, em paralelo a um tipo de criação aberta e cole-
              tiva, registros de uma expressão individualizada e de um
              desejo de reconhecimento de autoria, que passava pela
              busca de uma primeira tentativa de controle da difusão
              de uma obra9. Um dos primeiros que tentam controlar a
              difusão de sua produção nesse período é Teognis, poeta
              grego que viveu no século VI a.C. e que trazia, em suas
              publicações manuscritas, a colocação de um selo: “Estes
              são versos de Teognis de Megarar”. Sua intenção com essa

              8
                  Perromat, op. cit., p.24.
              9
                  Ibidem, p.30.


              28



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                         trademark (marca registrada) antiga não era a de obter
                         lucro com a venda de suas obras, mas que não as modi-
                         ficassem e achassem que não eram suas, o que tiraria o
                         reconhecimento pelo trabalho que realizava10.
                            Nessa época, os autores compreendiam que a melhor for-
                         ma de serem bancados por governantes e pela aristocracia
                         grega era serem considerados “especialistas” e terem obras
                         atribuídas a eles. Aqui entra uma segunda pista que explica
                         o motivo de os gregos e romanos não terem prestado aten-
                         ção especial à questão de propriedade ligada à cultura: a au-
                         sência de um mercado para bens culturais. Os autores não
                         se sustentavam com a renda direta de suas obras; viviam
                         prestando serviços de instrução para a aristocracia, con-
                         selhos para governantes, ensino de diversos temas – todas
                         ações ligadas à presença e à comunicação oral. Na tradição
                         discursiva greco-romana, as retribuições aos autores eram
                         de ordem simbólica, de reconhecimento social de uma ati-
                         vidade que não deixava de ser elitista e aristocrática11 – afi-
                         nal poucos sabiam ler –, mas também de certos tipos de re-
                         conhecimentos indiretos, como premiações em concursos
                         oficiais e vantagens materiais advindas dos prêmios.

                         II.

                         Na Grécia, no período conhecido como helenístico (IV
                         a.C.-II a.C.), não havia um controle sobre o destino de
                         um livro depois de lançado, seja em relação ao número de
                         exemplares ou à modificação de seu conteúdo. Além de ser

                         10
                            Ibidem, p.27, citando também um historiador do séc. III, Clemente
                         de Alexandria (que teve sua obra publicada posteriormente: Omnia
                         quae extant opera).
                         11
                            Ibidem, p.29.


                                                                                         29



aculturaelivre.indd 29                                                                          05/02/21 18:25
              uma cultura que valorizava a fruição e a criação coletiva e
              oral, outro fator justificava essa falta de controle: o formato
              do livro da época. Este tinha um formato conhecido como
              volumen, composto de uma longa faixa de papiro ou perga-
              minho, que era lido à medida que desenrolado por alguém,
              com as duas mãos, podendo ter vários metros de compri-
              mento e pesar alguns quilos. Formato pesado e caro, era de
              difícil reprodução, cuidado e armazenamento, o que torna-
              va o livro um bem relativamente escasso à época, como se
              revela em textos de Aristóteles e de Platão12.
                 O surgimento das primeiras bibliotecas no mundo gre-
              co-romano, a partir do século IV a.C., estabelece um come-
              ço para uma política de controle dos textos e manuscritos.
              Para controlar os textos e obter uma cópia, há necessidade
              de garantir o que é autêntico e o que não é, o que motiva as
              bibliotecas a pesquisar para atribuir corretamente a autoria
              das publicações13. Criada nesse período, a mítica Biblioteca
              de Alexandria, no Egito, foi uma das principais iniciativas
              que visavam organizar o conhecimento e a cultura produ-
              zida até então; faz isso a partir da seleção de um cânone de
              obras da cultura grega pelos sábios e bibliotecários identifi-
              cados à chamada Escola de Alexandria14. A partir de um sis-


              12
                 Putnam, Authors and their Public in Ancient Times, citado em
              Perromat, op., cit., p.32.
              13
                 Long, Openness, Secrecy, Authorship: Technical Arts and the Culture
              of Knowledge from Antiquity to the Renaissance, p.30.
              14
                 Escola de Alexandria é uma designação coletiva para certas tendên-
              cias em literatura, filosofia, medicina e ciências que se desenvolveram
              no centro cultural helenístico da cidade de mesmo nome, no Egito,
              durante os períodos grego e romano. Calímaco (310-240 a.C.) foi o
              principal bibliotecário, a quem se atribui a elaboração do catálogo da
              Biblioteca de Alexandria.


              30



aculturaelivre.indd 30                                                                  05/02/21 18:25
                         tema de edição crítica que comparava as distintas partes de
                         uma obra buscando sua coerência textual, estabeleceram as
                         versões que conhecemos de muitos textos da cultura grega,
                         que seriam a base também para a “rústica Roma”, que herda
                         o “estofo cultural” dos gregos antigos e durante os séculos
                         seguintes se apropria dessa cultura, mesclando-a com refe-
                         rências asiáticas e africanas.
                             Também em Roma se vê crescer o poder do nome do
                         autor como uma chancela de credibilidade aos bens cultu-
                         rais produzidos, o que ainda não se traduz em proteção ju-
                         rídica nem em controle do autor sobre a circulação de sua
                         obra. É exemplar desse momento a história do poeta Vir-
                         gílio, que, no século I a.C., foi contratado pelo imperador
                         Augusto para criar uma epopeia da fundação de Roma aos
                         moldes da Ilíada e da Odisseia. Tomando os poemas atri-
                         buídos por Homero como base, recria a jornada de Ulis-
                         ses em Enéas, guerreiro que, após participar da Guerra de
                         Troia, chega à Península Itálica e lá enfrenta uma série de
                         aventuras para se estabelecer. É conhecida a história de
                         que, ao final de sua vida, Virgílio ordenou a destruição da
                         Eneida por considerá-la uma obra de propaganda política
                         de Augusto e por não ter a perfeição poética que gostaria.
                         Entretanto, a Eneida não foi destruída; seu direito como
                         autor de controlar sua produção não foi respeitado, o que
                         é representativo do sentimento de uma época em que o
                         direito moral e estético da comunidade em desfrutar da
                         obra do artista era prioritário à vontade do autor15.
                             O pensamento comum da sociedade romana em rela-
                         ção à posse e à autoria dos bens culturais era manifestado
                         em três conceitos identificados por um estudo clássico do


                         15
                              Perromat, op. cit., p.32.


                                                                                 31



aculturaelivre.indd 31                                                                 05/02/21 18:25
              inglês Harold Ogen White16: “A imitação é essencial, a fa-
              bricação é perigosa, a matéria é propriedade coletiva”. Es-
              sas noções podem ser vistas em expressões como “Oratio
              publicata, res libera est” (“o publicado pertence a todos”),
              atribuída a Quinto Aurélio Símaco, escritor da Roma do
              século IV d.C.; ou como a frase “as melhores ideias são de
              todos; portanto, dado que o que é de todos é também de
              cada um, toda verdade me pertence; tudo que há sido dito
              bem por alguém também é meu”17, de Sêneca, filósofo e
              escritor do seculo I d.C.
                  No entanto, a busca pelo controle de autenticidade das
              obras passa, ao longo dos séculos seguintes, a provocar
              transformações que contrastavam com a cultura recom-
              binante da tradição oral, que identificava as ideias e as
              obras como posse coletiva. Aparece entre alguns filósofos
              e escritores romanos do período, como Cícero, Horácio
              e Sêneca, a discussão em torno da ideia de que apenas a
              imitação por si só não é suficiente, é necessário que seja
              uma imitação criativa18. O plágio, enquanto discussão e
              enquanto palavra, surge nesse período a partir de Mar-
              co Valério Marcial (40-104). Protegido pela aristocracia e
              pelos imperadores, era um poeta bastante popular no pe-
              ríodo, mas, como todos os artistas seus contemporâneos,
              não vivia da venda de sua obra. Tornaram-se célebres suas
              tiradas satíricas e autorreferentes – algumas das quais fa-
              lam em restringir o acesso aos seus escritos em troca de
              um pagamento, o que antecipa a ideia de obra de arte em

              16
                 White, Plagiarism and Imitation During the English Renaissance: A
              Study in Critical Distinctions, citado em Perromat, op. cit., p.44.
              17
                 Ibidem.
              18
                 Detalhadas, entre outros, nos já citados Putnam (1923), Long, op.
              cit.; e Perromat, op. cit.


              32



aculturaelivre.indd 32                                                               05/02/21 18:25
                         termos mercantis19. Um registro de sua postura está em
                         um de seus milhares de epigramas, uma espécie de co-
                         mentário – curto como um tweet do século XXI – irôni-
                         co, muitas vezes escatológico e obsceno, sobre alguém ou
                         um fato: “O povo anda dizendo que você, Fidentino, recita
                         meus livrinhos como se fossem seus. Se for falar que são
                         meus, te envio grátis. Se seus, compre, pra que meus não
                         sejam mais”20.
                             Segundo Perromat21, a Marcial se atribui a invenção do
                         termo plágio no sentido moderno, já que antes esse tipo de
                         ação, quando identificada, era nomeada como um “roubo”
                         ou “furto” de ideias. O escritor romano cria a expressão a
                         partir do verbo latino plagiare, que significa em latim “re-
                         vender de modo fraudulento o escravo ou filho de alguém
                         como próprio”, delito que no período era punido com o
                         açoitamento. Marcial usa o termo com o novo sentido em
                         outro de seus epigramas: “Confio a você, Quinciano, meus
                         livrinhos. Se é que posso chamar de meu o que um poeta
                         amigo seu recita. Se eles se queixam de sua dolorosa escra-
                         vidão, vá acudi-lo por inteiro. E quando aquele proclamar
                         seu dono, diga que eles são meus e que foram libertados.
                         Se você falar em voz alta três ou quatro vezes, fará com
                         que o plagiário se envergonhe”22.

                         19
                            Perromat, op. cit., p.42.
                         20
                            Marcial, Epigramas, em trad. Rodrigo Garcia Lopes.
                         21
                            Perromat, op. cit.
                         22
                            Tradução livre da versão em espanhol: “Te encomiendo, Quinciano,
                         mis libritos. Si es que puedo llamar míos los que recita un poeta amigo
                         tuyo. Si ellos se quejan de su dolorosa esclavitud, acude en su ayuda por
                         entero. Y cuando aquél se proclame su dueño, di que son míos y que han
                         sido liberados [manu missos]. Si lo dices bien alto tres o cuatro veces,
                         harás que se avergüence el plagiario”. Epigrama LIII, em Marcial, Épi-


                                                                                              33



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                  Ainda assim, a discussão crescente em torno do plágio
              no período era feita no âmbito da moral e da estética, não
              no sentido legal ou criminal. Muitos dos debates intelec-
              tuais travados na sociedade romana da época traziam um
              crescente juízo negativo sobre a imitação sem criação, a
              cópia pura e simples, mas não chegaram a ser centrais na
              crítica literária romana23. Não há registro de leis que te-
              nham sido feitas para regular ou punir essas práticas. Isso
              pode ter ocorrido, tanto na Grécia quanto em Roma, tam-
              bém pela dificuldade material da reprodução, um gargalo
              financeiro considerável para a circulação de obras tidas
              como plagiadas e que provavelmente não ajudou a esti-
              mular a criação de regras para isso. Outro fator é que os
              sistemas jurídicos da época não consideravam obras artís-
              ticas e seus suportes de maneiras separadas. Para os gre-
              gos, por exemplo, quem adquirisse uma obra – pelo custo
              financeiro, provavelmente uma biblioteca ou um membro
              da aristocracia – podia se servir e modificar a obra à von-
              tade, sem que o autor tivesse qualquer interferência. A re-
              lação coletiva de posse dos bens culturais e a inexistência
              de leis que regulassem e punissem as práticas tidas como
              de roubo de ideias e publicações perdurou até o século
              XVI, quando, pela primeira vez, aconteceu uma conces-
              são estatal (um monopólio) que garantia privilégios para
              imprimir um texto – para a Stationer’s Company, na In-
              glaterra – e foi decretado o Estatuto de Anne, a primeira
              lei de propriedade intelectual, de 1710, também inglesa.



              grammes, p. 70-1, traduzido do francês para o espanhol por Perromat,
              op. cit., p.47.
              23
                 Perromat, op. cit., p.43.


              34



aculturaelivre.indd 34                                                               05/02/21 18:25
                         III.

                         O período que compreende o fim do Império Romano e
                         a Alta Idade Média é o do advento do cristianismo e o
                         confronto e posterior assimilação da civilização greco-ro-
                         mana. Para a produção cultural, o resultado foi diverso.
                         Perromat e outros historiadores24 afirmam que quase a to-
                         talidade das versões que conservamos hoje dos grandes
                         escritores e pensadores de Grécia e Roma são adaptações
                         e variações feitas nesse período, quando não falsificações
                         que, depois, foram atribuídas a grandes figuras da Anti-
                         guidade em razão do prestígio que essa indicação, mais
                         tarde, passou a trazer.
                             Outro elemento importante aqui para a mudança dos
                         modos de produção e circulação de bens culturais nessa
                         época se dá pela transformação do suporte material das
                         obras. A queda de um império que se espalhava por quase
                         toda a Europa que conhecemos hoje implica também rup-
                         tura de rotas comerciais e escassez de alguns recursos, caso
                         do principal material utilizado na confecção dos livros no
                         mundo greco-romano, o papiro, retirado da planta Cyperus
                         papyrus, da família das ciperáceas. Material caro e de pou-
                         ca resistência, vinha do comércio com o norte da África
                         (principalmente Egito) e com o Oriente Médio, que dimi-
                         nuiu consideravelmente após a queda do Império Roma-
                         no. Assim, por volta dos séculos IV e V, os livros passaram
                         a ser produzidos principalmente em pergaminhos, nome
                         dado a uma pele de animal, geralmente de cabra, carneiro,
                         cordeiro ou ovelha, preparada para nela se escrever – ma-
                         terial que, mesmo perecível e caro, passou a ser o principal


                         24
                              Ibidem, p.50.


                                                                                  35



aculturaelivre.indd 35                                                                  05/02/21 18:25
              utilizado na fabricação de livros. Também nesse período,
              eles passam a não ser mais produzidos em rolos, mas em
              formato códice25, próximo ao do livro como o conhecemos
              no século XX. O historiador Alberto Manguel fala que, no
              século XII, a tecnologia para a elaboração de um volume
              da Bíblia (Novo e Velho Testamento) necessitava de peles
              de cerca de duzentos animais26.
                 A consolidação do cristianismo na Europa nos séculos
              seguintes traz algumas mudanças no que diz respeito tam-
              bém à identificação do autor. Em uma religião para a qual
              a Bíblia era o (único) livro sagrado e sua autoria27 era, em
              última instância, de Deus, a vontade dos escritores e sua
              suposta singularidade – que chegou a fomentar discussões
              iniciais entre gregos e romanos – passou a depender da
              verdade de um único “autor”, Deus. O fortalecimento da
              atribuição divina à autoria se estabelece como o padrão na
              Idade Média a partir dos séculos VII e VIII; há uma ten-
              dência progressiva em considerar cada texto parte de um
              grande discurso, “uma ‘comunidade de linguagem’ que
              diluía o particular em uma significação geral propícia à
              antologia, à expressão estereotipada da (re)combinação de

              25
                 Consiste de cadernos dobrados, costurados e encadernados, escri-
              tos em ambos os lados de uma folha numerada, formato até hoje pa-
              drão para a produção de livros.
              26
                 Manguel, Uma história da leitura, p.198.
              27
                 Conjunto de livros base do cristianismo e do judaísmo, a Bíblia é
              motivo de muitas disputas envolvendo autoria. Ao buscar a conso-
              lidação dos dogmas judaico-cristãos, muitos dos primeiros escrito-
              res bíblicos se basearam em outros textos, gregos e de outras regiões,
              compilando-os e adaptando-os na medida dos objetivos de evangeli-
              zação da população – no que seriam bem-sucedidos nos séculos se-
              guintes, conseguindo o espalhamento desses dogmas por boa parte
              do mundo. Ver: https://en.wikipedia.org/wiki/Bible.


              36



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                         elementos preexistentes”28, uma modalidade de escritura e
                         leitura com um caráter eminentemente coletivo.
                             Consolida-se um discurso em que diversas pessoas
                         adaptam, com liberdade extrema, os textos (e aqui pode-
                         mos dizer música e teatro também) para fins específicos,
                         na maioria das vezes com objetivos de convencer, a partir
                         de uma determinada ideia, e de estabelecer um exemplo
                         moral e ético a ser seguido. Paul Zumthor, em seu Essai
                         de poétique médievale29, diz que o texto nesse período fun-
                         ciona de maneira independente de suas circunstâncias; o
                         ouvinte (a grande maioria das obras aqui ainda oral ou
                         oralizada) esperava apenas sua literalidade, ou seja: o sig-
                         nificado da “mensagem”, e não condenava alterações na
                         forma que mantivessem esse significado – é mais provável
                         que, diante ainda de uma maioria analfabeta, mudanças
                         nem seriam percebidas. Assim, os autores medievais ti-
                         nham por método o uso generalizado de materiais de ou-
                         tros por meio de alusão, interpolação ou paráfrases e, na
                         maioria das vezes, não especificavam sua origem. Frag-
                         mentos consideráveis de textos, às vezes muito anteriores,
                         foram simplesmente insertados em novas obras, poemas
                         preexistentes foram integrados por inteiro em composi-
                         ções literárias30. Sem documentação e sem conhecimento
                         do cânone de autores da época, algumas dessas citações e
                         inserções jamais seriam reconhecidas.
                             A partir do século V, o cristianismo passou não apenas
                         a ser a fé mais difundida no Ocidente como também a re-
                         ger as obras culturais do período. Uma das consequências
                         desse controle foi o desaparecimento na Europa ocidental,

                         28
                            Perromat, op. cit., p.60.
                         29
                            Zumthor, Essai de poétique médiévale.
                         30
                            Ibidem.


                                                                                  37



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              entre os anos 500 e 700, de diversas obras clássicas gregas
              e romanas – em Bizâncio (Constantinopla, atual Istambul,
              na Turquia) e territórios de maior influência islâmica ao
              sul e leste do continente essas obras permaneceram. Ao
              substituir as obras julgadas prescindíveis (pagãs em sua
              maioria) por outras de caráter religioso, aqueles que pas-
              saram a deter tanto os meios de produção quanto os co-
              nhecimentos para publicar e controlar os bens culturais
              – a Igreja e os monges copistas medievais, no caso dos
              livros – contribuíram para reduzir o cânone dos autores
              da Antiguidade31. Nesse sentido é que se fala até hoje da
              Idade Média como um período de apagão cultural, do-
              minado por interesses cristãos, embora essa imagem seja
              questionada faz tempo por historiadores como o francês
              Patrick Boucheron, que lembra o período como a “adoles-
              cência da modernidade, sua idade ingênua ou revoltada” e
              diz que, ao olhar a dita “Idade das Trevas” mais de perto, é
              possível ouvir o “tilintar estridente de um ruído alegre e
              desordenado”32. Somente a partir dos séculos XIV e XV
              é que certa tradição clássica seria reintegrada à tradição
              europeia, através especialmente de regiões comerciais que


              31
                 Para uma mostra de obras perdidas nesse período, ver Diringer, The
              Book Before Printing: Ancient, Medieval and Oriental.
              32
                 Em Boucheron, Como se revoltar? Ao examinar em detalhes, como
              faz o historiador francês nesse pequeno livro sobre o ato de se revoltar
              na Idade Média, podemos encontrar alguns fatos que apontam para
              a sobrevivência de resquícios de uma certa tradição culta e de revolta
              aos dogmas religiosos nesse período. É o caso também de obras de
              Carlo Ginzburg como O queijo e os vermes e Os andarilhos do bem
              e do que se convencionou chamar de micro-história. Infelizmente,
              como pouca documentação dessa época sobreviveu, o resgate é um
              trabalho árduo e lento.


              38



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                         mantiveram influência asiática, islâmica e bizantina, caso
                         do sul da Península Ibérica e de regiões italianas como Si-
                         cília, Nápoles e Veneza.




                                                                                 39



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                                 CAPÍTULO 2
                         CULTURA IMPRESSA




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                         Tudo o que me foi escrito sobre aquele
                         homem maravilhoso visto em Frankfurt
                         é verdade. Não vi Bíblias completas,
                         mas apenas uma série de cadernos não
                         costurados ou vários livros da Bíblia.
                         A tipografia era muito elegante e le-
                         gível, nem um pouco difícil de seguir
                         – Vossa Graça seria capaz de lê-la sem
                         esforço, e inclusive sem óculos.

                           Enea Silvio Bartolomeo Piccolomini,
                               futuro papa Pio II, em carta ao
                                        cardeal Carvajal, 1455


                         Considerando que impressores, livrei-
                         ros e outras pessoas que nos últi-
                         mos tempos conquistaram a liberdade de
                         impressão, reimpressão e publicação,
                         fizeram que se imprimissem, reimprimis-
                         sem e publicassem livros e outros es-
                         critos sem o consentimento dos autores
                         ou proprietários desses livros e es-
                         critos, para o seu grande prejuízo, e
                         com demasiada frequência para a ruína
                         deles e de suas famílias: para evitar,
                         portanto, tais práticas para o futuro
                         e para incentivar os homens instruídos
                         a compor e escrever livros úteis; que
                         por favor de Vossa Majestade, possa
                         ser promulgado este Estatuto.

                            Estatuto de Anne, Inglaterra, 1710




                                                             41



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                         Não há motivo para dar agora um período
                         maior, de modo a nos obrigarmos a dá-
                         -lo novamente sucessivamente, confor-
                         me os anteriores forem expirando; se
                         esse projeto passar, ele irá em suma
                         criar um monopólio perpétuo, uma coisa
                         extremamente odiosa aos olhos da lei;
                         ele será uma grande obstrução para os
                         negócios, uma barreira para o apren-
                         dizado, que não retornará nenhum be-
                         nefício aos autores, mas sim uma taxa
                         pesada ao público, apenas para aumen-
                         tar os ganhos privados dos livreiros.

                            Parlamento inglês, negando o pedido
                         dos livreiros para aumentar a extensão
                           do prazo dos direitos autorais, 1735


                         O copyright pertence ao autor; o au-
                         tor, no entanto, não possui máquinas
                         de impressão; as máquinas pertencem
                         aos editores; assim, o autor necessita
                         do editor. Como regular essa necessi-
                         dade? Simples: o autor, interessado
                         em que a obra seja publicada, cede os
                         direitos ao editor por um determinado
                         período. A justificativa ideológica não
                         se baseia mais em censura, mas na ne-
                         cessidade do mercado.

                                 Wu Ming, Notas inéditas sobre
                                    copyright e copyleft, 2005




              42



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                         I.

                         Por volta de 1455, o futuro papa Pio II, Enea Silvio Bar-
                         tolomeo Piccolomini, andava pelas ruas da região de
                         Frankfurt, na Alemanha, quando avistou uma vitrine com
                         vários cadernos impressos de um texto que conhecia mui-
                         to bem. Em carta ao cardeal Carvajal, ele assim relatou
                         o episódio: “Tudo o que me foi escrito sobre aquele ho-
                         mem maravilhoso visto em Frankfurt [sic] é verdade. Não
                         vi Bíblias completas, mas apenas uma série de cadernos
                         não costurados ou vários livros da Bíblia. A tipografia era
                         muito elegante e legível, nem um pouco difícil de seguir
                         – Vossa Graça seria capaz de lê-la sem esforço, e inclusive
                         sem óculos”33. A chamada “Bíblia de Gutenberg”, também

                         33
                            “All that has been written to me about that marvelous man seen
                         at Frankfurt is true. I have not seen complete Bibles but only a num-
                         ber of quires or various book of the Bible. The script was very neat
                         and legible, not at all difficult to follow – your grace would be able to
                         read it without effort, and indeed without glasses.” Disponível em:


                                                                                              43



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              conhecida como “Bíblia de 42 linhas”, foi impressa pela
              primeira vez em 1455 e teve entre 158 e 180 cópias. Con-
              sistia do Velho Testamento Hebreu e do Novo Grego, tal
              qual a Bíblia cristã é conhecida hoje, escritos em latim,
              com 42 (em algumas, 40) linhas, impresso parte em per-
              gaminho, parte em papel comum tamanho double folio,
              com duas páginas em cada lado do papel (quatro páginas
              por folha).
                  Nascido em Mainz, sudeste da Alemanha, em 1398, o
              homem chamado Johannes Gensfleisch zur Laden zum
              Gutenberg foi joalheiro e hábil negociante antes de traba-
              lhar com impressão e desenvolver o processo que facilita-
              ria a expansão das ideias de maneira muito mais rápida do
              que existia até então. O sistema de tipos móveis com que
              Gutenberg imprimiu a Bíblia, e que se popularizou a par-
              tir desse período, não era – como nunca é – uma invenção
              a partir do nada. O processo de produção manual de li-
              vros passava, desde o século XII, a ter modificações con-
              sistentes; os papéis voltaram a circular pela Europa, e as
              prensas, grandes blocos de madeira que adquiriam tinta
              e gravavam em uma superfície, começaram a tornar a im-
              pressão um processo industrial mais rápido que as mãos
              dos monges copistas e mais baratos que os antigos livros
              de papiro da Antiguidade34. As contribuições de Guten-


              http://self.gutenberg.org/articles/Gutenberg_Bible. Tradução minha.
              34
                 Na China, há registros de usos de formas de impressão semelhantes
              às de Gutenberg desde o século XI; Bi Sheng, em 1040, havia usado
              os tipos móveis para imprimir em argila, material pouco resistente e
              facilmente quebrável; Wang Zhen, em 1298, trabalhou com um sistema
              móvel, ainda esculpido em madeira, um pouco mais resistente que a
              argila. A impressão em madeira, técnica conhecida como xilogravura,
              era amplamente utilizada na China desse período e consta que, dada a


              44



aculturaelivre.indd 44                                                               05/02/21 18:25
                         berg ao sistema já usado na época para impressão foram
                         principalmente a invenção de um processo de produção
                         em massa de tipo móvel, feito a partir de uma liga que in-
                         cluía chumbo, estanho e cobre e era passível de ser reutili-
                         zável; o uso de tinta à base de óleo, que se adaptava melhor
                         a um papel mais macio e absorvente testado por ele; e o
                         uso de um modelo de prensa que era similar à de parafuso
                         utilizada na agricultura do período, portanto um objeto
                         que era mais familiar ao cotidiano agrário da região.
                             O surgimento do processo de produção em massa de
                         publicações, que hoje chamamos imprensa, acelerou um
                         processo de popularização da cultura escrita35. Os avanços
                         propiciados pela impressão facilitaram a difusão de ideias
                         de todo tipo, não apenas as de cunho litúrgico e religioso
                         que predominavam na época. A circulação crescente de
                         publicações potencializou a criação de leitores e passou
                         a mudar os hábitos de fruição de bens culturais. Foi um
                         início, aos poucos, da troca da experiência coletiva oral,
                         baseada na performance de quem a apresentava e no con-
                         teúdo que se quer transmitir, pela experiência individual,
                         silenciosa e isolada, gravada em papel de forma mais dura-


                         peculiaridade dos caracteres chineses, continuava sendo a mais eficien-
                         te e barata forma de imprimir. Ver Briggs; Burke, Uma história social da
                         mídia: de Gutenberg a Diderot; e Tsien Tsuen-Hsuin; Joseph Needham.
                         Paper and Printing: Science and Civilisation in China, v. 5, p.158.
                         35
                            É interessante notar aqui, como faz Eisenstein, em The Printing Re-
                         volution in Early Modern Europe, e Martins, em Autoria em rede, que
                         a passagem do livro manuscrito para o livro impresso não se deu de
                         forma imediata; “ao contrário, foi um processo de negociação e mixa-
                         gem entre duas linguagens, o que reforça a teoria de que a criação de
                         um novo meio se dá pela remediação de um meio anterior” (Martins,
                         op. cit., p.68).


                                                                                             45



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              doura e fixa do que aquela ao ar livre, acostumada à liber-
              dade de acréscimos, apropriações e improvisos diversos
              de quem a apresentava. “A tendência a atitudes mais indi-
              vidualistas foi estimulada pela possibilidade de impressão,
              que ajudou ao mesmo tempo a fixar e difundir textos”36.
                 A ampliação da circulação de publicações impressas e
              o estímulo a um individualismo propiciado pela possibili-
              dade de leitura solitária se aglutinaram a um humanismo
              renascentista para também modificar a ideia de autoria de
              até então. Se, durante boa parte da Idade Média, a cultura
              era oral e a autoria era coletiva e difusa, expressão de um
              desejo divino ou arraigado em uma dada cultura popular,
              e os livros tinham sua circulação restrita à produção ar-
              tesanal das igrejas, agora havia elementos para a transfor-
              mação da concepção do que seria o autor de uma obra. Ao
              deslocar o homem para o centro (antropocentrismo) do
              mundo, o humanismo passava a valorizar a noção de ori-
              ginalidade e individualidade, o que era expresso no apreço
              ao estilo e no reconhecimento de uma abordagem inovado-
              ra de cada autor, em contraponto à forte dependência tex-
              tual da tradição típica das obras da Idade Média37. Tendo
              um autor individual identificado, as publicações também
              passavam a se tornar mais fechadas, com menor abertura
              a acréscimos ou comentários, como até então costumava
              ocorrer nas marginálias dos livros medievais.
                 Antes da popularização da impressão por tipos móveis,
              a produção de um livro era uma empreitada difícil, cara e
              artesanal, praticamente restrita ao âmbito da Igreja Católi-
              ca e seus monges copistas. Após Gutenberg, o livro podia
              ser impresso em escala industrial, por comerciantes e em-

              36
                   Briggs; Burke, op. cit., p.140.
              37
                   Ibidem, p.116.


              46



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                         presários que tivessem dinheiro para comprar as máquinas
                         necessárias e organizar seus modelos de produção, o que já
                         era uma mudança considerável no sistema de circulação de
                         conhecimento da época: possibilitava a difusão de ideias,
                         bens culturais e informações para além do controle da Igre-
                         ja. Não à toa, é nesse período que ocorre a Reforma Pro-
                         testante, movimento religioso que questionou os dogmas
                         do catolicismo da época, inaugurado a partir das famosas
                         95 Teses escritas por Martinho Lutero em Wittenberg, na
                         Alemanha, em outubro de 1517. As pequenas oficinas de
                         impressão, muitas vezes clandestinas, foram as artérias de
                         difusão das ideias reformistas por toda a Europa.
                             A galáxia (ou revolução) aberta por Gutenberg intensi-
                         ficou também a ideia de um mercado para bens culturais e
                         deu a estes características determinadas conforme as con-
                         dições de produção em massa. Imprimir um livro ainda
                         era um processo caro, que necessitava de um montante
                         considerável de dinheiro para existir. Mas, com a novida-
                         de da imprensa por tipos móveis, tornou-se também um
                         negócio lucrativo; um único livro, que demoraria meses
                         para ser produzido artesanalmente nos monastérios, pas-
                         sou a virar 500, 1.000 ou mais exemplares impressos em
                         poucos dias e distribuído nas principais cidades da época,
                         o que gerou uma potente rede que atraiu banqueiros para
                         financiar os impressores, vendedores para comercializar
                         as obras, caixeiros-viajantes para transportá-las e novos
                         leitores, muitas vezes alfabetizados a partir das publica-
                         ções que passaram a circular no período.
                             Como a Igreja e as monarquias europeias não queriam
                         perder o controle da propagação de ideias, os conflitos
                         foram inevitáveis. No primeiro caso, o medo do espalha-
                         mento dos princípios da Reforma Protestante ocasionou



                                                                                 47



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              perseguições a diversos impressores da época, o que anos
              depois gerou a criação, em 1559, do Index, lista de publi-
              cações consideradas heréticas e que eram proibidas pela
              Igreja Católica, com seus editores cassados38. A criação de
              um mercado de publicação, por sua vez, fez os governos
              monárquicos da época instituírem regras para controlar
              as relações entre quem escrevia um livro, quem vendia e
              quem o lia. Até então, qualquer pessoa que tivesse acesso
              a uma máquina de impressão ou a alguém que a tivesse
              podia imprimir cópias do que bem entendesse sem nin-
              guém reivindicar legalmente exclusividade de produção e
              circulação das obras a serem impressas. Aliás, era comum
              que uma obra, bem vendida em uma dada região, fos-
              se publicada como novidade em outra a partir de tradu-
              ções e adaptações diversas sem nenhum tipo de contro-
              le. Numa época em que, na Europa, Portugal, Espanha,
              Inglaterra e França começavam a se organizar enquanto
              Estados-nações e as atuais Alemanha, Itália, Bélgica, Áus-
              tria, Polônia, entre outras, eram divididas em centenas de
              cidades-Estados independentes, não havia legislações que
              regulassem a circulação das obras em todas essas regiões;
              quando muito, cada cidade ou região contava com suas
              próprias regras, que não valiam para outras. Não havia
              nenhuma distinção entre o que seria uma obra “oficial” e
              uma “pirata”.


              38
                Promulgada pelo papa Paulo IV, Gian Pietro Carafa, seria uma lista
              mantida até o século XX, só sendo suspensa em 1966. Sobre as ações
              de censura e perseguição aos editores e pastores radicais da Reforma
              Protestante por Carafa, o grandioso romance Q: o caçador de hereges,
              de Luther Blisset (1999), publicado no Brasil em 2002 pela Conrad, é
              uma excelente fonte.


              48



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                         II.

                         Coube à República de Veneza e à Inglaterra os primeiros
                         trabalhos mais consolidados de oferecer licenças exclusi-
                         vas a alguns editores para a publicação de determinados
                         livros. Na cidade italiana, conhecida pelo ativo comércio
                         marítimo com asiáticos, árabes, bizantinos, africanos e pela
                         circulação diversa de nobres, banqueiros, marinheiros,
                         marginais e vendedores dos mais variados locais, em 1486
                         foi estabelecido o primeiro privilégio para a publicação ex-
                         clusiva de um livro. A obra escolhida, Rerum venetarum
                         ab urbe condita opus, é um compêndio de história da Se-
                         reníssima, como era conhecida Veneza, escrita por Marcus
                         Antonius Coccius Sabellicus, historiador italiano, a quem
                         o conselho que geria a cidade concedeu uma permissão es-
                         pecial para escolher um único editor do livro no território
                         veneziano39. Alguns anos depois, os privilégios reais a de-
                         terminados impressores se consolidaram para mais obras
                         em Veneza (1498) e se propagaram também para outras
                         cidades italianas, como Florença e Roma, assim como na
                         França e outras cidades-Estados alemãs, tendo um mesmo
                         objetivo: garantir a certos impressores a exclusividade de
                         publicação de determinados livros, a fim de que somente
                         eles pudessem lucrar com sua comercialização40.
                             Na Inglaterra, 1557 é o ano das primeiras licenças
                         dadas a impressores, concedidas pela rainha Mary a um
                         grupo de Londres conhecido como Stationers Company,


                         39
                            Em Armstrong, Before Copyright: The French Book-Privilege System
                         1498-1526.
                         40
                            Em Martins, op. cit., p.38, e também Woodmansee, The Author, Art,
                         and the Market: Rereading the History of Aesthetics.


                                                                                         49



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              formado ainda em 140341 por artesãos envolvidos na cir-
              culação e venda de livros e outros materiais de impressão.
              Por serem um dos primeiros grupos organizados a traba-
              lhar no novo negócio, pressionaram a monarquia inglesa
              para ter exclusividade de produção e venda de publica-
              ções, e conseguiram um privilégio que, na prática, deu à
              Stationers Company o monopólio da cópia e circulação
              de livros. A partir de então, passaram a poder ser impres-
              sas legalmente na Inglaterra somente obras que possuís-
              sem autorização real e que estivessem listadas no registro
              oficial em nome de um editor ligado à companhia. Era
              um direito de copiar (right to copy) garantido a alguns
              impressores, que, com isso, tornavam-se os únicos com
              privilégios sobre determinadas obras. Não havia menção
              a direitos patrimoniais, morais ou estéticos dos autores
              de uma determinada obra.
                 Depois de um século e meio de monopólio, a Stationers
              Company foi cada vez mais ameaçada pelos livreiros de
              províncias afastadas de Londres – escoceses e irlandeses
              principalmente. A companhia então pediu ao Parlamento
              inglês uma nova lei para alargar o seu direito exclusivo
              sobre a cópia de livros. A resposta foi a criação do Estatu-
              to de Anne, aprovado em 1710 pelo Parlamento britâni-
              co e considerado a primeira lei de copyright do mundo e
              base para uma parte das legislações até hoje, mais de três
              séculos depois. Foi um duro golpe contra o privilégio da
              Stationers Company, porque a lei proclamou os autores
              (e não mais os editores) como os proprietários das suas
              obras. O texto da lei começava assim:

              41
                Como consta na página oficial da organização, até hoje em ativida-
              de, disponível em: https://www.stationers.org/company/history-and-
              -heritage.


              50



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                                Considerando que impressores, livreiros e outras pesso-
                                as que nos últimos tempos conquistaram a liberdade de
                                impressão, reimpressão e publicação, fizeram que se im-
                                primissem, reimprimissem e publicassem livros e outros
                                escritos sem o consentimento dos autores ou proprietá-
                                rios desses livros e escritos, para o seu grande prejuízo,
                                e com demasiada frequência para a ruína deles e de suas
                                famílias: para evitar, portanto, tais práticas para o futuro
                                e para incentivar os homens instruídos a compor e escre-
                                ver livros úteis; que por favor de Vossa Majestade, possa
                                ser promulgado este Estatuto.42
                         Antes exclusividade dos membros da Stationers Com-
                         pany, os direitos sobre a impressão e reimpressão de livros
                         passaram a ser do autor – ou de outra pessoa para quem
                         ele escolhesse licenciar – assim que fosse publicado. Uma
                         limitação importante era que a lei dava esse direito apenas
                         por um certo tempo: 14 anos, renovável apenas uma vez
                         se o autor estivesse vivo; e 21 anos para obras publicadas
                         até aquele momento. No final desse período, o copyright
                         expirava e a obra então era livre para ser publicada por
                         qualquer um. A punição para quem não cumprisse o esta-
                         tuto era a destruição das cópias e o pagamento de multas
                         ao proprietário dos direitos.

                         42
                            No original em inglês: “Whereas Printers, Booksellers, and other
                         Persons, have of late frequently taken the Liberty of Printing, Reprin-
                         ting, and Publishing, or causing to be Printed, Reprinted, and Published
                         Books, and other Writings, without the Consent of the Authors or Pro-
                         prietors of such Books and Writings, to their very great Detriment, and
                         too often to the Ruin of them and their Families: For Preventing therefore
                         such Practices for the future, and for the Encouragement of Learned Men
                         to Compose and Write useful Books; May it please Your Majesty, that it
                         may be Enacted this Statute”. Disponível em: https://en.wikipedia.org/
                         wiki/Statute_of_Anne. Tradução minha.


                                                                                               51



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                  Para alguns pesquisadores e historiadores de direi-
              to autoral, a intenção da lei era derrubar o monopólio
              da Stationers Company – e não dar os direitos da cópia
              e impressão ao autor. Havia uma pressão de diversos la-
              dos para cercear o monopólio da companhia, acusados de
              “vender a liberdade da Inglaterra para garantir seus ga-
              nhos”43. O escritor inglês John Milton, autor de Paraíso
              perdido (1667), dizia à época que os impressores da Sta-
              tioners Company eram “monopolizadores do negócio de
              venda de livros, homens que nunca tinham trabalhado
              em profissões honestas e desprezavam o aprendizado”44.
              O notório poder que os livreiros exerciam sobre a disse-
              minação do conhecimento através dos monopólios estaria
              prejudicando sua livre propagação.
                  Ao aprovar o Estatuto de Anne, o Parlamento britânico
              também buscava aumentar a competição entre os livreiros
              e, com isso, em tese, fomentar a maior circulação de publi-
              cações. Nessa perspectiva, limitar o período do copyright
              foi necessário para garantir que as publicações iriam tor-
              nar-se abertas para qualquer distribuidor publicá-las após
              um certo tempo. “A definição de um tempo para as obras
              existentes de apenas 21 anos era uma forma de lutar con-
              tra o poder dos livreiros, uma forma indireta de garantir a
              competição entre os distribuidores e, portanto, a constru-
              ção e ampliação da cultura”45.


              43
                 Como conta o advogado e professor Lawrence Lessig em Cultura
              livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cul-
              tura e controlar a criatividade, p.90.
              44
                 Wittenberg, The Protection and Marketing of Literary Property, cita-
              do em Lessig, op. cit., p.80.
              45
                 Lessig, op. cit., p.80.


              52



aculturaelivre.indd 52                                                                   05/02/21 18:25
                         III.

                         Promulgado na Inglaterra, o fato é que o Estatuto de Anne
                         não foi imediatamente obedecido. Nasceu como uma lei
                         que, talvez pela novidade da concepção que introduziu,
                         teve suas interpretações disputadas nos tribunais ain-
                         da por muitas décadas, o que dá uma amostra, relevante
                         ainda hoje, de quais interesses estão em jogo quando se
                         fala nos confrontos entre produtores, intermediários e pú-
                         blico. A Stationers Company e outros livreiros surgidos
                         depois ignoraram a legislação e continuaram a insistir no
                         direito perpétuo de controlar suas publicações como bem
                         entendessem por décadas.
                            Em 1735, já passados os primeiros 21 anos de expira-
                         ção de obras segundo o Estatuto (1710 + 21), os livreiros
                         buscaram persuadir o Parlamento a estender os períodos,
                         para legalizar a exploração comercial das obras por mais
                         tempo. O texto em que o Parlamento comunicou sua deci-
                         são – negativa – traz um certo zeitgeist (espírito do tempo)
                         de crítica aos monopólios, sobretudo os da Coroa inglesa,
                         bastante presente no país nos séculos XVII e XVIII. Vale
                         lembrar que a chamada Guerra Civil Inglesa (1642-1651),
                         raro período em que a Inglaterra não teve um monarca
                         como seu principal governante, foi em parte ocasionada
                         pelas práticas da Coroa em sustentar monopólios:
                                Não há motivo para dar agora um período maior, de
                                modo a nos obrigarmos a dá-lo novamente sucessi-
                                vamente, conforme os anteriores forem expirando; se
                                esse projeto passar, ele irá em suma criar um monopó-
                                lio perpétuo, uma coisa extremamente odiosa aos olhos
                                da lei; ele será uma grande obstrução para os negócios,
                                uma barreira para o aprendizado, que não retornará ne-
                                nhum benefício aos autores, mas sim uma taxa pesada


                                                                                    53



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                         ao público, apenas para aumentar os ganhos privados
                         dos livreiros.46
              Sem conseguir a extensão do período inicial de copyright,
              os editores ainda seguiram em disputas nos tribunais
              ingleses por algumas décadas. Na defesa nos processos
              movidos contra uns e outros, passaram também a evocar
              os direitos que os autores teriam sobre as obras como es-
              tratégia de argumentação para garantir a exploração co-
              mercial de suas publicações por mais tempo. Usavam de
              artimanhas jurídicas para isso, como mostra um dos mais
              famosos casos desse período, Millar vs. Taylor, em 1769.
              Millar era um livreiro atuante em Londres associado à
              Stationers Company que, em 1729, comprou os direitos
              de cópia para o poema do escritor James Thomson As es-
              tações, pagando à época £105. Após o término do período
              de copyright, 14 anos segundo o Estatuto de Anne, Robert
              Taylor, outro editor inglês, começou a vender uma edição
              dos poemas nos mercados londrinos que competia com
              a de Millar – que não gostou e, com apoio da companhia
              da qual fazia parte, processou Taylor. A argumentação ju-
              rídica usada no processo foi a de que Millar, tendo pago o
              autor, detinha o direito perpétuo sobre a obra.
                 Um conhecido juiz inglês, Lorde Mansfield, deu ga-
              nho de causa a Millar. No seu entender, qualquer proteção
              dada pelo Estatuto de Anne aos livreiros não anulava os
              direitos da common law inglesa, um sistema jurídico em
              que decisões judiciais e leis precedentes – chamadas juris-
              prudências – tinham maior peso que atos legislativos ou
              executivos, caso do estatuto. Nesse sistema, uma decisão a
              ser tomada num caso depende de outras medidas adota-

              46
                   Citado em Lessig, op. cit., p.81.


              54



aculturaelivre.indd 54                                                         05/02/21 18:25
                         das para casos anteriores, ficando a cargo do juiz a decisão
                         final. Caso o juiz não veja uma jurisprudência adequada
                         para a situação, ele então tem o poder de criar uma e esta-
                         belecer um precedente, que passa a ser chamado de com-
                         mon law e vincula todas as decisões futuras.
                             No caso Millar vs. Taylor, o direito perpétuo dos edi-
                         tores de copiar, imprimir e reimprimir uma obra foi visto
                         como uma common law pelo juiz Mansfield. Alegava que
                         essa lei garantiria uma proteção do autor contra futuros
                         editores “piratas”, o que, na interpretação usada no proces-
                         so, poderia impedir que a segunda edição de As estações
                         feita por Taylor fosse publicada sem a permissão do editor
                         da primeira, Millar. A decisão do juiz Mansfield tornava
                         inútil o Estatuto de Anne e dava aos livreiros um direito
                         perpétuo de controlar a publicação de todos os livros de
                         que detivessem os copyrights.
                             Cinco anos depois, porém, a decisão foi revogada em
                         outro caso famoso da época, Donaldson vs. Beckett47.
                         Millar morreu pouco depois de sua vitória e vendeu seu
                         espólio para um sindicato de distribuidores de livros, que
                         incluía um indivíduo chamado Thomas Beckett. Do ou-
                         tro lado, Alexander Donaldson era um livreiro escocês
                         que publicava edições baratas de obras cujo período do
                         copyright tivesse expirado, o que o fazia ser considerado
                         um editor “pirata” pelos ingleses de Londres. Após a mor-
                         te de Millar, o escocês lançou uma edição não autorizada
                         dos trabalhos do poeta Thomson; Beckett, baseando-se na
                         decisão anterior favorável a Millar, obteve um mandado
                         judicial contra ele. Donaldson então apelou para a Câma-
                         ra dos Lordes, uma espécie de Suprema Corte da época


                         47
                              Detalhado em Lessig, op. cit., p.83.


                                                                                  55



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              que tomava decisões que não raro mobilizavam “torcidas”
              em ambos os lados. Por uma maioria de dois para um, a
              Câmara dos Lordes decidiu por Donaldson contra o argu-
              mento dos copyrights perpétuos – que, cinco anos antes,
              o juiz Mansfield tinha acatado em prol de Millar. Os lor-
              des agora aceitaram a alegação dos advogados do livreiro
              escocês: quaisquer direitos que tenham existido antes, ba-
              seados na common law, haviam terminado com o Esta-
              tuto de Anne, que então passava a ser a única regulação
              jurídica para o direito de cópia de publicações impressas.
              Após o período definido pelo estatuto (14 ou 21 anos, de-
              pendendo do caso) ter expirado, os trabalhos que estavam
              originalmente protegidos – os de autores como William
              Shakespeare e John Milton, por exemplo – perdiam tal
              proteção e podiam ser usados, adaptados e comercializa-
              dos livremente, pois entravam em domínio público – uma
              noção que, embora existente desde os gregos e romanos48,
              passou nesse momento a ser validada pela primeira vez na
              história do sistema jurídico anglo-saxão.

              48
                Há diferentes versões da origem da ideia de domínio público no Oci-
              dente. Uma das mais aceitas remete aos direitos de propriedade em
              Roma, onde havia definições de res nullius (“coisas que não podem
              ser apropriadas”), res communes (“coisas que poderiam ser comumente
              apreciadas pela humanidade, como o ar, a luz solar e o oceano”), res
              publicae (“coisas que foram compartilhadas por todos os cidadãos”) e
              res universitatis (“coisas que eram de propriedade dos municípios de
              Roma”). O termo tem origem nesses conceitos e foi disputado com
              outros semelhantes, como publici juris ou propriété publique, no século
              XVIII, até se espalhar e ser adotado legalmente a partir da Convenção
              de Berna (ver próximo capítulo). Sobre a origem do domínio públi-
              co, ver Huang, On Public Domain in Copyright Law, Frontiers of Law
              in China, v.4, p.178-95, e Torremans, Copyright Law: a Handbook of
              Contemporary Research.


              56



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                         IV.

                         A noção de copyright que surgiu no tempo do Estatuto
                         de Anne era específica: proibia a outros reeditar um livro
                         impresso. Era um direito ligado a um bem que, por sua
                         vez, se relacionava diretamente a uma tecnologia que o
                         produzia – na época, máquinas de impressão de tipos mó-
                         veis. Na Inglaterra do século XVIII, o copyright ainda se
                         limitava a determinar quem, e por quanto tempo, poderia
                         copiar e distribuir um bem cultural no formato impresso.
                         Não mencionava direitos aos autores, como a remunera-
                         ção pela obra ou a possibilidade de adaptação desta, nem
                         citava outras artes ou suportes. Embora os livreiros ingle-
                         ses evocassem a proteção do autor em suas defesas jurídi-
                         cas, tratava-se mais de uma artimanha para proteger inte-
                         resses de certos grupos que começavam a se industrializar
                         do que um sistema jurídico de proteção a quem criava49.
                            Para o coletivo italiano Wu Ming, a lei de copyright no
                         Estatuto de Anne surgiu da necessidade de censura pre-
                         ventiva e restrição do acesso aos meios de produção cul-
                         tural – da contenção, portanto, da circulação de ideias. A
                         intenção dos impressores ao buscar a construção do Esta-
                         tuto de Anne pelo Parlamento inglês seria a de reconhe-
                         cer a legitimidade dos seus interesses e criar uma legisla-
                         ção que trabalhasse a seu favor. O argumento aqui é: “o
                         copyright pertence ao autor; o autor, no entanto, não pos-
                         sui máquinas de impressão; as máquinas pertencem aos
                         editores; assim, o autor necessita do editor. Como regular
                         essa necessidade? Simples: o autor, interessado em que a
                         obra seja publicada, cede os direitos ao editor por um de-


                         49
                              Wu Ming, Notas inéditas sobre copyright e copyleft, op. cit.


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              terminado período. A justificativa ideológica não se ba-
              seia mais em censura, mas na necessidade do mercado”50.
                  A criação de um sistema que regulasse não apenas os di-
              reitos exclusivos de copiar, imprimir e vender uma dada obra,
              mas também a propriedade das ideias, viria praticamente no
              mesmo período, mas do outro lado do canal da Mancha.




              50
                   Nimus, Copyright, copyleft e os creative anti-commons, p.42.


              58



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                         59



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                             CAPÍTULO 3
                              CULTURA
                         PROPRIETÁRIA




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                         Sente-se que não pode haver qualquer
                         relação entre a propriedade de uma obra
                         e a de um campo, que pode ser cultiva-
                         do por apenas um homem, ou de um móvel
                         que serve apenas a um homem; por conse-
                         guinte, a propriedade exclusiva é fun-
                         dada sobre a natureza da coisa. Assim,
                         a propriedade literária não é deriva-
                         da da ordem natural, e defendida pela
                         força social, mas é uma propriedade
                         fundada pela sociedade mesma. Não é um
                         verdadeiro direito, é um privilégio.

                              Marquês de Condorcet, Fragmentos
                           sobre a liberdade de imprensa, 1776

                         Se a natureza produziu uma coisa menos
                         suscetível de propriedade exclusiva que
                         todas as outras, essa coisa é ação do po-
                         der de pensar que chamamos de ideia, que
                         um indivíduo pode possuir com exclusivi-
                         dade apenas se a mantiver para si mesmo.
                         Mas, no momento em que a divulga, ela
                         é forçosamente possuída por todo mundo
                         e aquele que a recebe não consegue se
                         desembaraçar dela. Seu caráter peculiar
                         também é que ninguém a possui de menos,
                         porque todos os outros a possuem inte-
                         gralmente. Aquele que recebe uma ideia
                         de mim recebe instrução para si sem que
                         haja diminuição da minha, da mesma forma
                         que quem acende um lampião no meu, recebe
                         luz sem que a minha seja apagada.

                                   Thomas Jefferson, em carta a
                                          Isaac McPherson, 1813


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                         I.

                         A noção de que alguém teria a posse sobre uma ideia, tor-
                         nada comum na sociedade ocidental nos séculos seguin-
                         tes, tanto à época quanto hoje, ainda tem algo de estranho:
                         como você pode ser dono de algo que eu continuo tendo?
                         Isso é roubo por quê? Entendemos mais facilmente a ideia
                         de roubo quando, por exemplo, pego uma pimenta da co-
                         zinha de sua casa. Estou pegando algo, um vidro contendo
                         pimenta, e, após esse ato, você não vai mais ter essa pi-
                         menta na sua cozinha. Mas o que estou roubando se, após
                         provar a sua pimenta em um prato que você fez, eu tomo a
                         ideia de usar essa pimenta em um prato e vou à feira com-
                         prar um vidro de pimenta igual ao que você possui? O que
                         estaria roubando aqui51?
                            Sabemos que ideias, histórias, canções, poemas, peças
                         de teatro não têm a mesma natureza de objetos materiais
                         como terras, casas, veículos, moinhos, arados, joias. Po-
                         demos, por exemplo, escutar a reprodução de uma músi-


                         51
                              Essa comparação foi remixada de Lessig, op. cit., p.95.


                                                                                        63



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              ca por algum aparelho em um dado lugar ao mesmo tem-
              po que o criador da música a toca em outro – e isso não
              priva nem atrapalha a audição de ambos. “Aquele que re-
              cebe uma ideia de mim recebe instrução para si sem que
              haja diminuição da minha, da mesma forma que quem
              acende um lampião no meu, recebe luz sem que a mi-
              nha seja apagada”, disse Thomas Jefferson, considerado
              um dos pais fundadores dos Estados Unidos, presidente
              do país entre 1801 e 1809, em uma carta de 181352. Se
              as ideias são livres, não concorrentes, virais, associadas e
              combinadas umas às outras sejam quais forem seus terri-
              tórios ou origens, modificando-se de acordo com o uso e
              a criatividade de cada um tal qual o fogo, por que trans-
              formá-las em propriedade intelectual53?

              52
                  Na versão original, em inglês: “He who recieves an idea from me,
              recieves instruction himself, without lessening mine; as he who lights his
              taper at mine, recieves light without darkening me”. Carta de Thomas
              Jefferson a Isaac McPherson, 1813. Disponível em: https://founders.
              archives.gov/documents/Jefferson/03-06-02-0322. “Essa passagem é
              muito citada como argumento contrário à propriedade intelectual, mas
              a intenção de Jefferson é apenas mostrar que a propriedade intelectual
              não é natural – o que não impede [e ele é um defensor disso] que ela
              seja instituída pela sociedade” (Ortellado, Porque somos contra a pro-
              priedade intelectual, p.29).
              53
                 As disputas nos tribunais ingleses em torno do copyright no século
              XVII, citadas no capítulo anterior, usavam a expressão propriedade li-
              terária. A expressão em inglês intellectual property passa a ser usada al-
              gum tempo depois; segundo o Oxford English Dictionary; seu primeiro
              registro é o de um artigo de 1769 num periódico conhecido na época,
              Monthly Review, ao passo que o uso com o significado que conhecemos
              hoje data de 1808, como título de uma coleção de ensaios: New-England
              Association in favour of Inventors and Discoverers, and Particularly for
              the Protection of Intellectual Property. Fonte: Oxford English Dictionary.


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                             O mesmo Jefferson respondeu à época: “para que os
                         criadores de ideias não fiquem desestimulados de criar e
                         expressar suas ideias, é necessário um estímulo material
                         a quem ‘cria’ ou ‘expressa as ideias’. Por serem assimiladas
                         por todos que a recebem, as ideias devem ser especialmente
                         protegidas, para que toda vez que alguém as usa, o ‘criador’
                         tenha sua recompensa”54. Tendo Jefferson como um dos ar-
                         tífices, a Constituição dos Estados Unidos, promulgada em
                         1789, 79 anos depois do Estatuto de Anne e no mesmo ano
                         das primeiras leis de direito autoral na França, já traz em
                         uma de suas cláusulas: “O congresso deve ter o poder de
                         promover o progresso das ciências e das artes úteis assegu-
                         rando aos autores e inventores, por um período limitado, o
                         direito exclusivo aos seus escritos e descobertas”55.
                             As primeiras legislações que buscam regular a pro-
                         priedade intelectual estabelecem legalmente aquele que
                         ainda é o principal embate hoje: conciliar a remuneração
                         dos criadores com o direito de acesso às criações artís-
                         ticas. Ao estabelecer o produto de uma dada criação in-
                         telectual como uma mercadoria com valor financeiro de
                         troca, o pagamento material por uma certa ideia vai, em
                         muitos casos do século XIX em diante, entrar em con-
                         flito com a manutenção de um amplo domínio público
                         de ideias comum à humanidade. A questão estabelecida
                         nessa época ecoa ainda hoje: até que ponto a introdução
                         do direito à propriedade intelectual, em vez de promover,
                         não restringe o progresso do conhecimento, da cultura e
                         da tecnologia?


                         54
                           Thomas Jefferson, citado por Ortellado, op. cit., p.29.
                         55
                           Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição Ameri-
                         cana, art. I, § 8, cl. 8.


                                                                                         65



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              II.

              Há diferenças substanciais entre as características da pro-
              priedade intelectual e da propriedade material. Muitas
              delas foram estabelecidas no período permeado de revo-
              luções, circulação de ideias e criações tecnológicas que vai
              entre meados do século XVIII e o final do XIX, momento
              em que a discussão em torno da propriedade passava por
              um período de transformações na Europa. A decadência
              do sistema feudal, a ascensão da burguesia comercial, a
              proliferação de ideias a partir de publicações impressas,
              o crescimento do individualismo, as navegações que ori-
              ginaram a invasão da América, entre outras questões re-
              lacionadas, foram importantes para se discutir o status da
              propriedade que até então, literalmente, reinava nos países
              europeus. A maior parte das terras e de bens materiais até
              o século XVIII pertencia às muitas monarquias que co-
              mandavam o continente europeu, à Igreja Católica, aos
              nobres de cada região e, em menor escala, às comunidades
              que geriam de forma coletiva suas terras e outros recursos
              naturais, como bosques e lagos. As diversas guerras na In-
              glaterra do século XVII e a Revolução Francesa no final do
              século XVIII tiveram como um de seus motes principais
              a quebra da relação senhor-vassalo que havia na gestão
              das propriedades materiais até então e, em consequência,
              o estabelecimento de novas leis que freassem o controle
              real das terras e regulassem a propriedade.
                 Uma das formas de legitimar intelectualmente a pro-
              priedade privada se deu com as ideias liberais, que defen-
              diam o individualismo e a limitação do poder do Estado
              absolutista da época. Um dos mais importantes divulga-
              dores dessa ideias, o inglês John Locke (1632-1704) fa-



              66



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                         lava que a propriedade, assim como o direito à vida e à
                         liberdade, era um direito natural, ou seja, inerente ao ho-
                         mem56, estabelecido por Deus quando da criação do mun-
                         do. Locke dizia que, como fruto legítimo de seu trabalho,
                         cada homem teria direito a uma propriedade; “qualquer
                         coisa que ele [o homem] não retire do estado com que a
                         natureza a promoveu e deixou, mistura-a ele com seu tra-
                         balho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua
                         propriedade”57. Como limite a essa propriedade, sinalizou
                         para a necessidade de que as coisas nesse “estado com que
                         a natureza a promoveu” restassem de modo que fossem
                         “suficientes aos outros, em quantidade e qualidade”. Aqui
                         já está o embrião dos embates modernos a serem feitos
                         entre público e privado no direito de propriedade e em
                         torno do conceito de comum58.
                            Ao defender a propriedade como um direito natural,
                         principalmente em Dois tratados sobre o governo (1689),
                         o filósofo inglês tornava a noção de propriedade essen-
                         cial para o desenvolvimento da liberdade individual, uma

                         56
                            Locke falava desse direito como exclusivo de uma pessoa do gênero
                         masculino, ignorando as mulheres, tal como seus antepassados da Anti-
                         guidade e da Idade Média e como continuaria a ocorrer até, pelo menos,
                         a conquista dos primeiros direitos civis pelas mulheres, no século XIX.
                         57
                            Locke, Dois tratados sobre o governo, p.409.
                         58
                            Locke usa aqui a palavra “comum” (commons) de modo similar ao
                         res communes romano, no que é um dos primeiros registros próximos à
                         ideia do comum que conhecemos hoje, como “coisas que poderiam ser
                         comumente apreciadas e cuidadas pela humanidade”. Será o mesmo co-
                         mum que, menos de dois séculos depois, Karl Marx vai discutir em Os
                         despossuídos, uma coletânea de textos de 1842 que trata do direito sobre
                         o uso da terra a partir do furto da madeira, uma questão importante
                         na Alemanha da época. E que será relacionado aos bens intelectuais e
                         digitais, como veremos no Capítulo 5, “Cultura livre”, deste livro.


                                                                                             67



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              ideia que seria chave para que a burguesia em ascensão se
              libertasse das amarras sociais impostas pelas monarquias
              absolutistas, que dificultavam a mobilidade social e o livre
              comércio. A noção de propriedade privada espalhada por
              Locke ganhou influência e se propagou como aquela que
              substituiria, no pensamento ocidental da época, a concep-
              ção feudal de propriedade, real, hereditária e imutável. Seria
              usada também como base ideológica para a construção do
              entendimento de propriedade privada material como fruto
              do trabalho e um direito do homem que se espalharia nas
              décadas e séculos seguintes, sendo constante até hoje.
                  Durante o século XVII e XVIII, a discussão sobre pro-
              priedade fermentava também na França, a partir das ideias
              liberais e em debates envolvendo filósofos iluministas do
              período, como Rousseau, Diderot e Voltaire. Assim como
              a Inglaterra, Espanha e outros países governados por mo-
              narquias na Europa da época, a França tinha seu sistema
              de privilégios, dado pelos reis para determinados grupos
              profissionais – entre eles o de impressores, estabelecidos
              desde meados do século XVI. Em 1777, a monarquia fran-
              cesa concedeu os chamados “privilégios do autor” (privilè-
              ges d’auteur), que, diferente dos “privilégios dos editores”
              (privilèges en librairie), já existentes, não tratava apenas do
              período e da forma de comercialização das obras (como o
              copyright inglês estabelecido pelo Estatuto de Anne), mas
              de reconhecimento perpétuo de propriedade das ideias. É
              considerado um primeiro – embora ainda incipiente – di-
              reito concedido aos autores, fruto da aplicação da noção de
              propriedade privada como direito natural também às ideias.
                  Entre 1763 e 1764, sob encomenda da comunidade dos
              editores parisienses, à época preocupada com a possível
              supressão dos privilégios editoriais que lhes garantiam



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                         a exclusividade sobre as obras, o francês Denis Diderot
                         (1713-1784) escreve a chamada Carta sobre o comércio
                         do livro. O texto busca aproximar a propriedade literária
                         (como ainda era chamada nesse período também na Fran-
                         ça) à de bens materiais e defender a propriedade perpétua
                         dos autores e, por extensão, dos editores, sobre as criações
                         “do espírito humano”. Diz:
                                   Uma obra não pertence a seu autor tanto quanto sua casa
                                   ou suas terras? Não pode ele alienar para sempre sua pro-
                                   priedade? Seria permitido, por qualquer razão ou pretex-
                                   to que seja, espoliar aquele que livremente o substitui em
                                   seus direitos? Esse substituto não merece ter para esse
                                   direito toda proteção que o governo concede aos pro-
                                   prietários contra os outros tipos de usurpadores?59
                         Diderot, que havia editado junto com D’Alembert a pri-
                         meira enciclopédia entre 1751 e 1772, também defendia a
                         extensão do direito de autor aos seus “substitutos”, os edi-
                         tores, que, em sua formulação, compram legitimamente
                         as obras de seus criadores, tendo assim os direitos sobre
                         elas. Era um discurso que tomava emprestado de Locke
                         a noção de direito à propriedade como natural e buscava
                         aplicá-la também aos bens intelectuais, o que conferia ao
                         criador uma propriedade absoluta e inviolável sobre sua
                         obra, por tempo indeterminado. Também era um pensa-
                         mento que estava de acordo com a burguesia comercial
                         e industrial da época, que buscava trocar o controle real
                         exercido através da concessão de privilégios por outro, ba-
                         seado no direito natural e exercido pelo mercado.
                            Embora encontrassem acolhida na sociedade francesa
                         da época, as ideias de Diderot sobre os direitos de autor

                         59
                              Diderot, Carta sobre o comércio do livro, p.52.


                                                                                         69



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              tinham oposição mesmo dentro do liberalismo predo-
              minante no meio intelectual. Marie Jean Antoine Nicolas
              de Caritat, conhecido como marquês de Condorcet
              (1743-1794), discordava da ideia de o autor ser o legíti-
              mo proprietário de suas obras por tempo indeterminado.
              Em um livro chamado Fragmentos sobre a liberdade de im-
              prensa (1776), Condorcet ressalta a importância do inte-
              resse público, critica a ideia do monopólio comercial dos
              editores e afasta a ideia de equiparar propriedade literária
              às demais formas de propriedade material.
                         Sente-se que não pode haver qualquer relação entre a
                         propriedade de uma obra e a de um campo, que pode ser
                         cultivado por apenas um homem, ou de um móvel que
                         serve apenas a um homem; por conseguinte, a proprieda-
                         de exclusiva é fundada sobre a natureza da coisa. Assim,
                         a propriedade literária não é derivada da ordem natu-
                         ral, e defendida pela força social, mas é uma propriedade
                         fundada pela sociedade mesma. Não é um verdadeiro
                         direito (véritable droit), é um privilégio (privilège).60
              Em nome de um ideal social também presente no Ilumi-
              nismo, o da universalização do conhecimento, Condorcet e
              outros no período defendiam a livre circulação dos textos e
              o fim da apropriação privada de uma ideia – todo privilégio
              seria uma restrição ao direito de acesso de outros cidadãos,
              sendo, portanto, nocivo à liberdade. Também em Fragmen-
              tos sobre a liberdade de imprensa, Condorcet pergunta se os
              privilégios são necessários, úteis ou nocivos ao progresso
              “das Luzes” – como se costumou chamar o conhecimento

               Condorcet, Fragments sur la liberté de la presse, em Œuvres de Con-
              60

              dorcet, tomo 11, p.253-314, citado em Machado Pontes; Sousa Alves,
              O direito de autor como um direito de propriedade: um estudo histórico
              da origem do copyright e do droit d’auteur.


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                         no período. Ele mesmo responde que não; a propriedade
                         literária é “desnecessária, inútil e até injusta”61. A partir daí,
                         sustenta que uma legislação que concede aos autores o di-
                         reito de propriedade sobre suas obras não influencia positi-
                         vamente a descoberta de verdades úteis, “mas atinge de ma-
                         neira nefasta a maneira como essas verdades se difundem,
                         sendo uma das principais causas da diferença na sociedade
                         entre os homens esclarecidos ou cultos e a massa inculta,
                         para quem a maior parte das verdades úteis permanece
                         desconhecida”62. Condorcet achava que um mundo em que
                         as ideias pudessem circular livremente seria aquele em que
                         deveria haver liberdade de criação, reprodução e difusão do
                         conhecimento e da arte, o que tornaria indevida qualquer
                         apropriação individual dos bens culturais – um princípio
                         que vai ecoar nas ideias da cultura livre do século XX.
                             O embate de ideias entre Diderot e Condorcet, entre
                         outros, fomentaria a construção de leis durante um evento
                         fundamental para a queda dos privilégios reais e da própria
                         monarquia na Europa, a Revolução Francesa (1789-1799).
                         Em seus primeiros anos, os revolucionários estabeleceram
                         a abolição dos privilégios comerciais (como diversos ou-
                         tros) dados pelo governo do rei Luís XVI – entre eles, os
                         “privilégios dos editores” – e criaram leis que formariam
                         as bases do sistema que, a partir de então, seria conhecido
                         como droit d’auteur (direito de autor). A lei “Sobre o traba-
                         lho do congresso sobre propriedade literária e artística”63,
                         de 1791, concede monopólio de exploração de artistas do

                         61
                            Ibidem.
                         62
                            Ibidem.
                         63
                             Disponível na íntegra em: https://fr.wikisource.org/wiki/Compte_
                         rendu_des_travaux_du_congr%C3%A8s_de_la_propri%C3%A9t%-
                         C3%A9_litt%C3%A9raire_et_artistique/Loi_du_19_juillet_1791.


                                                                                         71



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              teatro sobre a representação de suas obras por toda sua
              vida e até cinco anos após sua morte. Dois anos depois,
              outra lei expande o benefício para artistas de outras áreas
              e para até dez anos após a morte dos autores. Inspiradas
              pelos discursos tanto de Diderot quanto de Condorcet,
              influenciadas também por Locke, Rosseau e outros, as
              leis buscaram conciliar os diversos interesses conflitantes
              envolvidos. De um lado, consagraram a ideia de Diderot
              sobre a santidade da criatividade individual e a inviolabi-
              lidade do direito do autor; de outro, teve também espaço
              a noção de Condorcet de que, após certo tempo (no pri-
              meiro momento cinco, depois dez anos após a morte do
              autor), a obra deveria pertencer ao domínio público, para
              o progresso “das Luzes” e do conhecimento universal.
                  Desse período em diante se consolidaram o copyright
              inglês e o direito de autor francês como os principais sis-
              temas de leis, os quais regulam até hoje a criação de bens
              culturais (e intelectuais) no Ocidente. Uma das diferenças
              entre os dois sistemas era a questão do suporte: o copyright
              valia inicialmente para uma obra apenas quando ela se ma-
              terializava em um suporte físico, como um livro impresso.
              Já no droit d’auteur, esse pré-requisito do suporte não exis-
              tia: as leis passariam a proteger a autoria e a integridade da
              obra (os direitos morais) mesmo quando ela ainda fosse
              uma ideia e não estivesse materializada em algum formato.
              Outras diferenças entre os dois sistemas ainda conviveriam
              e seriam complexificadas ao longo de disputas teóricas e
              filosóficas durante o século XIX, período em que diver-
              sos países passaram a adotar pela primeira vez legislações
              regulando a propriedade intelectual, entre eles o Brasil64.

              64
                Segundo Paranaguá e Branco em Direitos autorais, as primeiras refe-
              rências aos direitos de autor no Brasil datam de 1830, com um Código


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                         Na teoria jurídica, convencionou-se relacionar o copyright
                         como uma opção utilitarista, uma licença dada aos proprie-
                         tários de uma obra para a sua exploração comercial por um
                         tempo determinado, com o objetivo de recuperar os custos
                         empregados na produção e obter novos investimentos du-
                         rante o período, ao passo que o droit d’auteur, pelo menos
                         em seu início, seria uma opção marcada pela influência do
                         direito natural, que, se vingasse, tal como Diderot e outros
                         defendiam, transformaria o direito de autor em permanen-
                         te e hereditário, o que poderia ter levado à comercialização
                         e privatização de todos os bens culturais e à ausência de
                         um domínio público. A regulamentação criada na Fran-
                         ça à época da Revolução Francesa restringiu esse direito a
                         um determinado período, o que, de certa forma, misturou
                         as duas influências, utilitarista e do direito natural, tanto
                         na legislação francesa quanto na de países que adotaram o
                         copyright, como a Inglaterra e os Estados Unidos65.
                             Após essa primeira consolidação jurídica da proprie-
                         dade intelectual, alguns tratados das décadas seguintes

                         Criminal que previa como crime a violação de direitos autorais. A pri-
                         meira lei, entretanto, seria a n. 496/1898, também chamada de Lei Me-
                         deiros e Albuquerque, em homenagem a seu autor, que por sua vez foi
                         revogada pelo Código Civil de 1916, que classificou o direito de autor
                         como bem móvel, fixou o prazo de prescrição de uma ação por ofensa
                         aos direitos autorais em cinco anos. Somente em 1973 foi que o Brasil viu
                         publicado um estatuto único e abrangente regulando o direito de autor.
                         65
                            E aproximou as noções de copyright e direito de autor, algo que
                         até hoje permanece nas regulamentações de muitos países. Sobre essa
                         discussão, ver em especial um artigo de Paulo Rená, Droit d’autor vs.
                         copyright: diferenças conceituais entre direito de autor e direito de cópia,
                         Hiperfície, 28 mar. 2012. Disponível em: https://hiperficie.wordpress.
                         com/2012/03/28/droit-dautor-vs-copyright-diferencas-conceituais-
                         -entre-direito-de-autor-e-direito-de-copia.


                                                                                                 73



aculturaelivre.indd 73                                                                                  05/02/21 18:25
              seriam responsáveis pela determinação de padrões in-
              ternacionais que visavam acordar alguns pontos comuns
              entre os países que sofriam maior influência do sistema
              do copyright (Inglaterra, Estados Unidos e boa parte das
              ex-colônias anglo-saxãs) e os com maior incidência dos
              direitos de autor (França, Alemanha, Espanha e a maior
              parte da América Latina, inclusive o Brasil). A Convenção
              de Berna, firmada durante a década de 1880, foi o princi-
              pal desses tratados, provocada pela Associação Literária
              e Artística Internacional, grupo criado em 1878 a partir
              da influência do escritor francês Victor Hugo. A proposta
              era definir padrões jurídicos que valessem para diversos
              países e, assim, evitar que uma dada obra protegida por
              copyright na Inglaterra, por exemplo, pudesse ser copiada
              e vendida por qualquer pessoa na França, procedimen-
              to que era comum no período e não agradava a diversos
              escritores, caso do próprio Victor Hugo (autor de, en-
              tre outros, Os miseráveis, de 1862) e também de Charles
              Dickens, que, para sua ira66, teve diversas obras que escre-
              veu, publicadas originalmente na Inglaterra, republicadas
              em tiragens altas sem sua autorização nos Estados Unidos.
                 A Convenção de Berna foi assinada em 1886 por países
              como França, Bélgica, Espanha, Suíça, Alemanha, Haiti,
              Tunísia e Itália, e teve como resultado a definição de di-
              reitos exclusivos – que a partir de então necessitavam de
              autorização legal – para a tradução de obras, a adaptação
              e rearranjos, a leitura e performance em lugares públicos,
              teatros e espaços de concerto, a reprodução de cópias im-
              pressas, entre outros usos. Alguns países que adotavam

              66
                Como, entre outros, contou o escritor Ruy Castro, em “Dickens e os
              piratas”, Folha de S.Paulo, 8 fev. 2012, disponível em: https://www1.
              folha.uol.com.br/fsp/opiniao/24603-dickens-e-os-piratas.shtml.


              74



aculturaelivre.indd 74                                                                05/02/21 18:25
                         sistema influenciado pelo copyright se opuseram a algu-
                         mas definições, caso da Inglaterra, que assinaria a conven-
                         ção no ano seguinte, mas não seguiria grande parte das
                         disposições até um século depois, em 198867; e dos Esta-
                         dos Unidos, que se recusaram a assinar pela justificativa
                         de que o acordo estabelecido em Berna mudaria de forma
                         significativa sua legislação de direito autoral – e só efeti-
                         varam todas as regras do acordo internacional em 198968.
                         Apesar das oposições, a Convenção de Berna se consoli-
                         dou como o tratado de propriedade intelectual mais aceito
                         no mundo; deu origem a entidades internacionais69 de ad-
                         ministração desses direitos e passou também a orientar as
                         mudanças que muitas tecnologias desenvolvidas nas déca-
                         das seguintes e no século XX trariam para a produção e a
                         circulação de bens culturais.

                         III.

                         A criação de uma noção de propriedade intelectual no sécu-
                         lo XIX está também ligada às novas tecnologias de reprodu-
                         ção e expressão desenvolvidas nesse período. Assim como,

                         67
                            A partir do Copyright, Designs and Patents Act 1988, que reformu-
                         laria a lei de copyright do país. Legislação completa disponível em:
                         https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1988/48/contents.
                         68
                            Conforme lista de países firmantes da World Intellectual Property Or-
                         ganization (Wipo). Fonte: https://www.wipo.int/treaties/en/ShowRe-
                         sults.jsp?lang=en&treaty_id=15.
                         69
                            Primeiramente, a United International Bureaux for the Protection
                         of Intellectual Property (Birpi), criada em 1893 para organizar a Con-
                         venção de Berna e a de Paris, que deu origem à noção internacional
                         de propriedade industrial. A partir de 1970, muda para o nome que
                         ainda hoje mantém: World Intellectual Property Organization (Wipo).


                                                                                             75



aculturaelivre.indd 75                                                                              05/02/21 18:25
              no século XVI, os primeiros privilégios aos impressores e o
              copyright surgiram após a invenção e propagação da má-
              quina de impressão dos tipos móveis na Europa, também as
              novas formas de regulamentar a criação e a reprodução de
              bens culturais se dão com a introdução de novas tecnolo-
              gias. Ao contrário das máquinas de impressão, porém, que
              fizeram circular ideias em diferentes formatos mas somente
              em um tipo de suporte, as tecnologias do século XIX am-
              pliam os suportes de transmissão de ideias para o áudio e
              as imagens, o que aumenta também a velocidade de circu-
              lação de informação e começa a dar fim ao impresso como
              principal suporte de fruição e consumo de bens culturais.
                  Os modos como as invenções tecnológicas do século
              XIX se relacionam e influenciam umas às outras são di-
              versos e complexos. Para facilitar e analisar certos impac-
              tos, podemos dividir essas tecnologias em dois grupos: as
              tecnologias de comunicação, que, ao encurtar distâncias e
              pôr em conexão de modo mais veloz pessoas em diferen-
              tes lugares, aumentaram a troca de informações novas,
              caso do telégrafo, do telefone e do rádio – todas, por sua
              vez, muito relacionadas à expansão dos meios de trans-
              porte, como o trem, o barco a vapor e o automóvel –; e
              as tecnologias de gravação e reprodução, aqui consideradas
              tanto as de som, como o gramofone e o fonógrafo, como
              as de imagem, que combinaram tradições antigas feitas de
              truques físicos e misturas químicas de substâncias com
              novas técnicas e invenções vindas da expansão da ciência
              – e também da indústria – no período, caso principalmen-
              te da fotografia e do cinema.
                  No grupo de tecnologias de comunicação, o telégrafo
              inaugurou, na primeira metade do século XIX, uma nova
              era de difusão de informação ao transmitir mensagens



              76



aculturaelivre.indd 76                                                      05/02/21 18:25
                         através de impulsos elétricos para regiões separadas por
                         milhares de quilômetros. Sua criação estava associada ao
                         desenvolvimento das ferrovias, que exigiam métodos ins-
                         tantâneos de sinalização por segurança, “embora houvesse
                         alguns fios telegráficos que seguiam os trilhos, não das fer-
                         rovias, mas dos canais”70. Aos ingleses William Fothergill
                         Cooke e Charles Wheatstone é atribuída a gênese de um
                         primeiro sistema de uso comercial do telégrafo, em 1837,
                         com o objetivo de acompanhar a construção da ferrovia
                         entre Londres e Birmingham, na Inglaterra71. Nas décadas
                         seguintes seria popularizado como um serviço fornecido
                         pelo Estado na maior parte do Ocidente, o que aumentou
                         a níveis então desconhecidos a velocidade de transmissão
                         de informação, pública e privada, local e regional, nacio-
                         nal e imperial.
                            O ano que ficou conhecido como o da primeira trans-
                         missão do telégrafo é lembrado por nós até hoje por conta
                         de ser também o da publicação da patente da invenção,
                         pelos já citados Cooke e Wheatstone. Aqui vale recordar:
                         além do direito autoral e do copyright, os séculos XVIII
                         e XIX também viram surgir, se consolidar em minúcias
                         legais e se propagar como uma das bases do modo de pro-
                         dução capitalista outra noção jurídica de apropriação das
                         ideias: a patente, que a partir de então seria definida como
                         um registro de uma concessão, pública e limitada, para a
                         exploração privada e comercial de uma ideia. À diferença
                         dos bens culturais, as patentes são aplicadas a bens consi-
                         derados utilitários – mais tarde, a noção incluiria o soft-
                         ware e até uma fórmula matemática, como um algoritmo
                         –, que, nesse momento, ganharam reprodução em massa

                         70
                              Briggs; Burke, op. cit., p.140.
                         71
                              Ibidem.


                                                                                   77



aculturaelivre.indd 77                                                                   05/02/21 18:25
              a partir dos parques industriais em expansão. Durante
              outro dos tratados internacionais reguladores da proprie-
              dade intelectual desse período, a Convenção de Paris de
              1883, a patente dá origem a uma ramificação nos estudos
              e regulações jurídicas sobre a propriedade intelectual, que
              passa então a ser chamada propriedade industrial, braço
              jurídico que vai regular mundialmente invenções como o
              telégrafo, além de registros de desenho industrial e marcas
              (nomes comerciais), design de produtos e embalagens, en-
              tre outros diversos artefatos de uma lista que só aumenta-
              ria com as novas tecnologias desenvolvidas no século XX.
                 O telégrafo propiciou pelo menos mais dois inventos
              que ajudaram a acelerar a difusão de ideias mundo afora
              no século XIX. O primeiro foi o telefone, apresentado por
              Alexander Graham Bell no Escritório de Patentes dos Es-
              tados Unidos em 1876 como “o método de, e o instrumen-
              to para, transmitir sons vocais ou outros telegraficamente,
              causando ondulações eléctricas, similares às vibrações do
              ar que acompanham o som vocal”72. Servia-se dos canais
              de transmissão de mensagem do telégrafo para transfor-
              mar energia acústica – a voz – em energia elétrica, o que
              passaria a permitir a troca de informações através da fala
              entre dois (ou mais) pontos conectados por uma rede.
              O segundo foi o rádio, em 1895, ano em que o italiano
              Guglielmo Marconi, então com 21 anos, fez sua primei-
              ra transmissão em um sistema de propagação de sinais
              em ondas sonoras a partir de uma antena para lugares a
              pouco mais de três quilômetros de distância da origem.
              Era uma espécie de “telégrafo wireless”, com informações

              72
                Fonte: http://www2.iath.virginia.edu/albell/bpat.1.html. Para mais
              informações, ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexander_Graham_
              Bell.


              78



aculturaelivre.indd 78                                                               05/02/21 18:25
                         sonoras codificadas em sinal eletromagnético que se pro-
                         paga por meio das ondas, medidas em hertz, no espaço
                         físico. Um ano depois, já morando na Inglaterra, Marconi
                         registrou sua patente como “melhorias na transmissão de
                         impulsos e sinais elétricos e nos respectivos aparelhos”73,
                         a primeira emitida para um sistema de telégrafo sem fio à
                         base de ondas hertzianas.
                             Há diversos inventos próximos e concorrentes surgidos
                         nesse período que podem ser identificados aqui como tec-
                         nologias de gravação e reprodução. São, todos eles, pontos
                         culminantes de inúmeras tentativas ao longo da história de
                         gravar, reproduzir e armazenar sons e imagens que, quando
                         passam a circular na sociedade, alteram a dependência de
                         uma mediação simbólica via alfabeto, predominante até
                         então, para a compreensão da realidade. São métodos que
                         passam a armazenar e transmitir, na forma de ondas de luz
                         e som, efeitos visuais e acústicos do real, tornando ouvidos
                         e olhos autônomos74 – o que causa uma série de transfor-
                         mações sobre a forma de produzir, circular, consumir e re-
                         gular os bens culturais a partir de então.
                             O primeiro desses inventos é o fonógrafo, que teve sua
                         apresentação pública datada de 6 de dezembro de 1877 nos
                         Estados Unidos por Thomas Edison, senhor do então pri-
                         meiro laboratório de pesquisa em história da tecnologia,
                         em Menlo Park, Nova Jersey75. O aparelho transformava,

                         73
                            “Improvements in Transmitting Electrical Impulses and Signals and in
                         Apparatus there-for”. Fonte: Hong, Wireless: From Marconi’s Black-box
                         to the Audion. Mais informações a respeito podem ser encontradas no
                         verbete da Wikipédia sobre a história do rádio: https://en.wikipedia.
                         org/wiki/History_of_radio#cite_note-34.
                         74
                            Kittler, Gramofone filme typewriter, p.24.
                         75
                            Ibidem.


                                                                                            79



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              a partir do giro de uma manivela, sons emitidos em um
              bocal em traços num cilindro pequeno com sulcos que
              depois podiam ser reproduzidos e amplificados a partir
              de um cone acoplado no aparato. Já o gramofone, criado
              e patenteado pelo alemão Emil Berliner em 1888, fazia o
              mesmo, mas usando um disco plano (de cera, goma-laca,
              cobre, depois vinil) em vez do cilindro. A tecnologia por
              trás dos dois produtos era um pouco diferente, assim
              como as intenções dos inventores; mais interessado na
              qualidade de gravação de música clássica, Berliner optou
              pelo uso de uma matriz para duplicar as gravações sono-
              ras, já que, para ele, a capacidade de repetição importava
              mais que para Edison e também para Graham Bell – que
              inventou outro aparelho parecido na época, o grafofone –,
              que previam o uso de seus inventos para registros familia-
              res ou em escritórios76. Nas primeiras décadas do século
              XX, o disco plano de Berliner ganhou a disputa com os
              cilindros de Edison e se consolidou como o formato mais
              usado para esse tipo de aparelho de gravação e reprodução
              sonora, sobretudo porque era mais fácil de ser produzido
              industrialmente que os cilindros e incluir capas, selos e
              outros acessórios.
                  Um pouco antes, ainda na primeira metade do sécu-
              lo XIX, o daguerreótipo, apresentado publicamente pelo
              francês Louis Daguerre em 1839, foi o primeiro processo
              de produção de imagens a circular amplamente pelo Oci-
              dente. Consistia de uma placa de cobre, ou outro metal
              mais barato, que com um banho de prata formava uma
              superfície espelhada que, ao ser colocada em uma caixa
              escura e exposta a uma determinada situação por algum


              76
                   Briggs; Burke, op. cit., p.181-2.


              80



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                         período (que poderia ser até de dez minutos nesse pri-
                         meiro momento), formava um “retrato” dessa situação, a
                         ser exibido publicamente depois de revelado em um pro-
                         cesso químico. Não era um procedimento fácil, mas se
                         espalhou pelo Ocidente na década de 1840 e 1850 espe-
                         cialmente por ser mais prático e barato do que os retratos
                         pintados, muito comuns à época nas famílias burguesas e
                         industriais. Junto do celótipo (processo que usava nitrato
                         de prata e produzia “negativos” sobre papel, desenvolvido
                         pelo inglês William Heny Fox Talbot um ano depois), o
                         daguerreótipo seria o mais comum dos diversos proce-
                         dimentos fotográficos existentes no período até a conso-
                         lidação do método da fotografia instantânea com filmes
                         de rolo, no final do século XIX. Patenteado por George
                         Eastman, um banqueiro transformado em empresário
                         nos Estados Unidos, esse método seria a base para a cria-
                         ção e comercialização das câmeras de filme de rolo, prin-
                         cipal produto de uma empresa que Eastman fundaria em
                         1882, a Kodak, tornada quase sinônimo de fotografia no
                         século XX.
                            A introdução da “imagem em movimento” com o ci-
                         nema talvez tenha sido a maior alteração tecnológica da-
                         quele momento. Nasceu de várias inovações que vão des-
                         de a consolidação do domínio fotográfico até a síntese do
                         movimento; durante todo o século houve experimentos
                         que, a partir de princípios já mais antigos, como a câme-
                         ra escura77, buscavam produzir e reproduzir imagens em

                         77
                            Com referências primárias que remetem aos gregos, a câmera es-
                         cura é um tipo de aparelho óptico baseado no princípio de mesmo
                         nome que consiste numa caixa (que pode ter alguns centímetros ou
                         atingir as dimensões de uma sala) com um orifício em uma de suas
                         faces. A luz, refletida por algum objeto externo, entra por esse orifício,


                                                                                               81



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              movimento, caso de alguns experimentos óticos como o
              Zootrópio (em 1828-1832 por William George Horner) e
              o Praxinoscópio78 (1877 por Émile Reynaud). O já citado
              Thomas Edison trabalhou no tema e em 1891 sairia, do
              laboratório de tecnologia que comandava, a patente do
              cinetógrafo, uma máquina que registrava imagens em mo-
              vimento e as exibia em um óculo dentro de um caixote de
              madeira. Dois anos depois, viria do engenheiro-chefe dos
              Edison Laboratories, William Kennedy Laurie Dickson,
              a patente do cinetoscópio, um instrumento de projeção
              interna de filmes com um visor individual pelo qual se
              podia assistir, mediante a inserção de uma moeda, a uma
              pequena tira de filme em looping. Lugares com cinesto-
              cópios se tornariam populares nas décadas seguintes nos
              Estados Unidos e seriam chamados de nickelodeons; exi-
              biam imagens em movimento de números cômicos com
              animais amestrados, exercícios circenses e bailarinas em
              dança e alcançaram sucesso comercial considerável.
                  Dois anos depois do registro da patente do cinetoscó-
              pio, ocorreu aquela que ficou para a história do cinema
              como a primeira exibição paga de um filme de curta du-
              ração, no Salão Grand Café, em Paris, a 28 de dezembro
              de 1895. Foi uma apresentação pública de um aparato in-
              ventado – e patenteado no mesmo ano na França – pelos
              irmãos Lumière (Auguste e Louis) chamado cinematógra-
              fo, que, baseado no cinetógrafo dos laboratórios Edison,
              funcionava como uma máquina 3 em 1: gravava, revelava

              atravessa a caixa e atinge a superfície interna oposta, onde se forma
              uma imagem invertida daquele objeto. Fonte: https://pt.wikipedia.
              org/wiki/C%C3%A2mera_escura.
              78
                 Entra nessa lista de jogos ópticos também o estroboscópio. Ver mais
              em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_do_cinema.


              82



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                         e exibia os filmes. Com grande cobertura da imprensa da
                         época, a considerada primeira sessão de cinema exibiu
                         dez curtas dos dois irmãos, todos com menos de um mi-
                         nuto, mudos (filmes sonoros só surgiriam após 1927) e
                         que hoje seriam considerados como documentais. Entre
                         os mostrados estava La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon, o
                         primeiro da sessão e também o primeiro filme da história
                         do cinema, que trazia cenas de pessoas saindo da fábrica
                         dos Lumière em Lyon.

                         IV.

                         Ao olhar para esse período e as diferentes histórias sobre
                         onde, como e quem teria originado essas invenções tecno-
                         lógicas, algumas considerações sobre patentes e proprie-
                         dade intelectual são importantes. A primeira delas é que o
                         telefone, o rádio, o gramofone, a fotografia e o cinema fo-
                         ram invenções criadas “sob os ombros de gigantes”, como
                         diz a expressão atribuída ao francês Bernardo de Chartres
                         no século XII e popularizada por Isaac Newton em 1675.
                         Dizer isso representa que foram invenções possibilitadas
                         largamente a partir de outras criações – aparatos técnicos,
                         ideias e mecanismos que não vieram até nós porque se
                         perderam pela escassez de recursos desses inventores para
                         fazer um registro que perdurasse. Ou então foram acopla-
                         das a outras ideias de quem, com mais possibilidades téc-
                         nicas e financeiras, colocaria esses inventos em circulação
                         numa escala industrial.
                            A segunda consideração é que, especialmente nesse
                         momento, há muitas divergências sobre quem de fato te-
                         ria inventado as tecnologias de comunicação, gravação e
                         reprodução identificadas aqui. O telefone, por exemplo, já


                                                                                 83



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              tinha um antepassado muito próximo por volta de 1860,
              dezesseis anos antes do registro de patente de Graham
              Bell; era uma espécie de “telégrafo falante” desenvolvido
              pelo italiano radicado nos Estados Unidos Antonio Meuc-
              ci, que chegou a trabalhar com Bell e registrar sua inven-
              ção em 1871, ao passo que o alemão Johan Philipp Reis,
              em 1861, e o estadunidense Elisha Grey, no mesmo 1876
              da patente de Bell, também trabalharam com protótipos
              parecidos. Dois anos antes da primeira transmissão via
              ondas hertzianas do italiano Marconi, em 1893, um padre
              brasileiro chamado Roberto Landell de Moura fazia, em
              Porto Alegre, experiências semelhantes de transmissão de
              voz por ondas, o que só seria confirmado e documentado
              oficialmente em 1900, já depois da patente de Marconi.
              Dos vários antepassados do fonógrafo e do gramofone, há
              um muito próximo em especial, chamado paleofone, que
              foi registrado pelo francês Charles Cros em seu país no
              mesmo ano do registro feito por Edison nos Estados Uni-
              dos. A disputa pela invenção do cinema entre os Lumière,
              filhos de um pequeno empresário francês de Lyon, e Edi-
              son gerou e ainda hoje gera divergências, já que ambos
              produziam, no mesmo período, diferentes filmes.
                  Estas e muitas histórias semelhantes da época nos mos-
              tram que especialmente Graham Bell, Thomas Edison e
              Guglielmo Marconi foram empresários e patenteadores
              ligeiros, que souberam antever possibilidades de negócios
              lucrativos a partir dos inventos que registraram. Com suas
              patentes, trataram de garantir juridicamente a exclusivi-
              dade de produção e uso de produtos que não necessaria-
              mente inventaram, mas que, a partir das estruturas (ou
              dos contatos) já bem estabelecidas de produção, poten-
              cializaram sua circulação a partir da produção em escala



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                         industrial e a distribuição massiva como mercadoria. Vi-
                         savam retorno de seus investimentos em estrutura de pes-
                         quisa e desenvolvimento, é certo, mas também a garantia
                         de manutenção de seus lucros por muito tempo – o que, a
                         partir do registro de patentes, de fato ocorreu.
                             Por exemplo, Graham Bell. Escocês de família que tra-
                         balhava no ramo outrora promissor da locução pública,
                         Alexander migrou para o Canadá no início de sua vida
                         adulta e fez carreira nos Estados Unidos como inventor
                         e empresário; foi um dos fundadores da American Tele-
                         phone and Telegraph Company (AT&T), uma das maiores
                         empresas de telefonia (depois de internet e também de TV
                         a cabo) dos Estados Unidos no século XX. Thomas Edi-
                         son, que trabalhou com Graham Bell, foi um empresário
                         da tecnologia, financiado por nomes como Henry Ford e
                         Harvey Firestone, criador de um laboratório de produção
                         de inventos que viraria a General Eletric, um dos grandes
                         conglomerados industriais do planeta ainda hoje. A par-
                         tir do registro da patente do rádio na Inglaterra em 1896,
                         Marconi criaria a Wireless Telegraph & Signal Company
                         no país, depois transformada em Marconi Co., empresa
                         que seria uma das mais importantes das telecomunicações
                         britânicas nas primeiras décadas do século XX.
                             Diferente de Graham Bell, Edison, Marconi e também
                         dos Lumière, que já nessa época tinham uma estrutura
                         para patentear e passar a produzir seus inventos em maior
                         escala, Meucci, Landell de Moura, Cros e outros nomes
                         não tão lembrados hoje eram inventores que, sem muitos
                         recursos para produzir e disputar o já então forte merca-
                         do de patentes, não tiveram suas ideias transformadas em
                         produtos vendáveis. Meucci, por exemplo, foi um migran-
                         te; nasceu na Itália, morou quinze anos com sua esposa



                                                                                85



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              e família em Havana, Cuba, onde há registros de que te-
              nha inventado o telegrafo parlante já em 1849 a partir de
              uma máquina de eletrochoques79. Em 1850, com algum
              dinheiro guardado, migrou para os Estados Unidos com o
              objetivo de viver de suas invenções – à época, a jovem na-
              ção se consolidava como um grande lugar de peregrinação
              para inventores e empresários que queriam fazer carreira
              com seus inventos. Meucci montou uma fábrica de velas,
              empregou outros compatriotas exilados, se envolveu com
              a política de seu país – Giuseppe Garibaldi, líder da unifi-
              cação da Itália, trabalhou em sua fábrica e alugou sua casa
              durante quatro anos –, faliu, montou outra companhia,
              agora baseada em seu telegrafo parlante, chamada Telet-
              trofono Company, que chegou a registrar seu invento em
              1871, cinco anos antes do telefone de Bell. Mas, sem tan-
              tos recursos e poder político como Bell, perdeu para este
              as disputas jurídicas envolvendo patentes e não conseguiu
              mais desenvolver seu invento80.
                  Na periferia do mundo das patentes da época (e ainda
              hoje), o padre católico brasileiro Landell de Moura fazia
              testes, muitas vezes solitário, em suas paróquias em Porto
              Alegre, São Paulo e Campinas, com o telégrafo e o que
              viria a ser o rádio no mesmo período de Marconi na Itá-
              lia. Foi somente em 1900, em São Paulo, que Landell de

              79
                 Mais detalhes sobre Meucci e as fontes das informações trazidas
              aqui em: https://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_Meucci.
              80
                 Em um pequeno reconhecimento tardio, em 2002, a U. S. House
              of Representatives (equivalente à Câmara dos Deputados brasileira)
              homenageou Meucci em uma resolução (https://www.congress.gov/
              bill/107th-congress/house-resolution/269) por ter tido papel no de-
              senvolvimento do telefone, ainda que não especifique qual e haja di-
              versas disputas sobre quem de fato teria inventado primeiro o telefone.


              86



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                         Moura conseguiu fazer um registro aceito pelos trâmites
                         da época, tendo testemunhas e sendo documentado pelo
                         Jornal do Commercio81. No ano seguinte, viria a obter uma
                         primeira patente brasileira para o que chamava de “apa-
                         relho destinado à transmissão fonética à distância, com
                         fio ou sem fio, através do espaço, da terra e do elemento
                         aquoso”. Com ela, viajaria nos anos seguintes para Europa
                         e Estados Unidos, onde, em 1904, também deixaria paten-
                         tes de “transmissor de ondas”, “telégrafo sem fio” e “tele-
                         fone sem fio”, com alguma repercussão. Entretanto, volta
                         ao Brasil em 1905, onde continua seus experimentos, mas,
                         sem apoio da Igreja, dos empresários ou dos governan-
                         tes locais, não desenvolve mais suas pesquisas autodida-
                         tas; Marconi, Bell e outros, na Europa e nos Estados Uni-
                         dos, seguiram82.
                             Em 30 de abril de 1877, oito meses antes de Thomas
                         Edison registrar a patente do fonógrafo nos Estados Uni-
                         dos, o escritor boêmio e inventor francês Charles Cros
                         depositou um envelope fechado na Academia de Ciências
                         francesa com um artigo sobre um “Procedimento de gra-
                         vação e reprodução percebidos pelo ouvido”. Era o mesmo
                         jeito de funcionamento do aparato de Edison, que conhe-
                         cia os boatos da invenção de Cros83. Mas ao francês faltava
                         o que, do outro lado do Atlântico, o laboratório em Men-
                         lo Park tinha de sobra: condições técnicas e financeiras
                         para a realização prática da ideia. Daí também o fato de
                         o fonógrafo, um mês depois da apresentação pública e do

                         81
                            Jornal do Commercio, 10 jun. 1899, p.3. Fonte: http://landelldemou-
                         ra.com.br.
                         82
                            Essas informações sobre Landell de Moura são baseadas em: https://
                         pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Landell_de_Moura.
                         83
                            Kittler, op. cit., p.47.


                                                                                           87



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              registro de Edison, ter começado a ser produzido massi-
              vamente, ao passo que o paleofone, invenção de Cros, foi
              esquecido. Sem condições de reivindicar juridicamente
              algum crédito pelas ideias, o francês não chegou a ver as
              transformações que a rica biblioteca de áudios que ele an-
              teviu fariam no mundo; morreu em 1888, aos 45 anos.
                 Entre todos esses homens brancos e do eixo Américas
              e Europa – e aqui também vai uma distinção de gênero,
              cor e origem daqueles que ficaram para a história e os que
              foram apagados ou não citados nesses registros –, Louis
              Daguerre talvez tenha sido um caso raro para a questão da
              propriedade intelectual. Sócio de Joseph Niépce, a quem
              se atribui a primeira “fotografia da vida”, chamada de he-
              liografia84 e apresentada pelo menos uma década antes,
              Daguerre mostrou seu invento à Academia Francesa de
              Ciências em 1839. O Estado francês adquiriu a patente do
              daguerreótipo e, logo depois, a tornou domínio público,
              “aberta para o mundo todo”85. Esse gesto, incomum en-
              tre as tecnologias de comunicação, gravação e reprodu-
              ção aqui citadas, facilitou que houvesse uma verdadeira
              daguerréomanie na França, com um número grande de
              daguerreotipistas também por outros países; “havia dez
              mil deles na América em 1853, entre eles Samuel Morse,

              84
                 Joseph recobriu uma placa de estanho com betume branco da Ju-
              deia que tinha a propriedade de endurecer quando atingido pela luz.
              Nas partes não afetadas, o betume era retirado com uma solução de
              essência de alfazema. Em 1826, expondo uma dessas placas durante
              aproximadamente oito horas na sua câmera escura fabricada, con-
              seguiu uma imagem do quintal de sua casa. “Heliografia” significa
              gravura com a luz solar. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Nic%-
              C3%A9phore_Ni%C3%A9pce.
              85
                 Briggs; Burke, op. cit., p.166.


              88



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                         e na Grã-Bretanha havia cerca de dois mil fotógrafos re-
                         gistrados no censo de 1861”86. Outros procedimentos de
                         produção fotográfica mais baratos e fáceis de serem repro-
                         duzidos, como o celótipo de Henry Fox Talbot, e depois o
                         filme de rolo de Eastman e da Kodak (ambos registrados
                         como patentes privadas), tornaram o daguerreótipo um
                         procedimento ultrapassado e que não chegou a ser desen-
                         volvido em escala industrial depois de 1870.

                         V.

                         Diante da consolidação da propriedade intelectual no sécu-
                         lo XIX, cabe refazer a pergunta do início deste capítulo de
                         outra forma: a introdução dos elementos jurídicos regula-
                         dores das propriedades das ideias restringiram ou promo-
                         veram o progresso do conhecimento, da cultura e da tecno-
                         logia? Uma resposta possível seria dizer que promoveram,
                         basta ver a quantidade de inventos popularizados nesse pe-
                         ríodo e as enormes transformações que eles trouxeram à
                         sociedade. Também é aceitável falar que as mudanças trazi-
                         das pelas leis de direitos autorais dessa época, por exemplo,
                         propiciaram que muitos artistas passassem a poder viver de
                         seus trabalhos e não ficassem mais à mercê de monopólios
                         e interesses da Coroa, o que lhes assegurou uma série de di-
                         reitos e trouxe garantias que os nivelaram, em alguns casos,
                         a outros trabalhadores profissionais da época, além de dar
                         mais – pelo menos em tese – possibilidades de liberdade à
                         criação, sem o controle religioso ou estatal.
                             Outra resposta possível é dizer que os mecanismos ju-
                         rídicos reguladores da propriedade intelectual restringi-

                         86
                              Ibidem, p.167.


                                                                                   89



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              ram o progresso e o acesso ao conhecimento. Antes uma
              base de dados quase infinita e de acesso livre, o domínio
              público de ideias e informações passou a ter suas ideias
              fechadas em pequenos feudos, maiores ou menores de
              acordo com as possibilidades econômicas e os arranjos
              político-institucionais de quem as detém. Num primeiro
              momento, o cercamento de algumas ideias do domínio
              público é por pouco tempo; as leis de copyright iniciais
              estabeleciam 14 anos após a publicação como o período
              de exploração comercial exclusivo da obra, com vias de
              retribuir ao autor (ou aos intermediários que bancaram
              sua produção) o investimento obtido. Mas, a cada novo
              aparato tecnológico – e o mundo lucrativo aberto por eles
              –, esse período se torna maior: 40, 50, 70, 120 anos após
              a publicação ou 70 anos após a morte do autor, como foi
              consolidado nas leis de direito autoral no Brasil e em mui-
              tos países do mundo no século XX87.
                 Usada como justificativa ideológica por reis, nobreza e
              Igreja para a regulação da publicação de ideias, a censura
              cede lugar, a partir dos séculos XVIII e XIX, ao mercado
              e à livre concorrência. Não é mais por trazer temas proi-
              bidos aos olhos dos censores que a circulação de ideias
              precisa ser controlada; é para que uma pessoa possa vi-
              ver de (e lucrar com) suas invenções, de modo exclusivo e
              não concorrente com outro indivíduo (ou empresa). Para
              isso, as leis; para fazer cumpri-las, o Estado. Num contexto
              de aumento da velocidade de circulação de informações,
              e com a possibilidade enorme de reprodução de ideias a
              partir das tecnologias citadas, foi assim que a sociedade

              87
                Uma lista do período em que uma obra entra em domínio públi-
              co pode ser consultada na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/
              Dom%C3%ADnio_p%C3%BAblico.


              90



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                         capitalista ocidental se organizou a partir de então, e até
                         hoje, no que se refere à produção e circulação de ideias.
                             Mas o modo de lidar com a propriedade de ideias a
                         partir da noção de propriedade intelectual e suas rami-
                         ficações (direitos autorais e propriedade industrial) não
                         seria o único desde então. Corrente de ideias também
                         surgida na segunda metade do século XIX, o anarquis-
                         mo negaria desde seu princípio os direitos autorais; a
                         frase “a propriedade é um roubo!”, tirada de um texto de
                         Pierre-Joseph Proudhon de 1840 – um ano depois de a
                         patente do daguerreótipo ser tornada domínio público na
                         França –, seria aplicada de início à propriedade material,
                         mas nem por isso deixaria de abranger também a proprie-
                         dade intelectual, como boa parte das obras (sobretudo
                         impressas) anarquistas desde então deixariam claro em
                         suas páginas iniciais com recados como “sem direitos re-
                         servados”, “todos os direitos dispersos”, entre outras men-
                         sagens explícitas a negar a existência de direitos de autor.
                         Faziam isso de modo claro e coerente com seus princí-
                         pios: as ideias, como as terras, devem ser livres, circular
                         livremente, sem restrições tanto de monopólios reais ou
                         religiosos quanto de regulações legais produzidas pelo Es-
                         tado para controlar a concorrência do mercado. A forma
                         de equacionar esses princípios filosóficos à prática da so-
                         brevivência cotidiana em um planeta cada vez mais apro-
                         priado pelo capitalismo e sua propriedade privada trazem
                         nuances e discussões diversas até hoje. É de se notar que,
                         considerada por muitos ingênua, a perspectiva da ausên-
                         cia de propriedade que o anarquismo defendeu, tendo a
                         autonomia da pessoa como eixo central de suas preocu-
                         pações, vai encontrar eco em hackers e influenciar a cons-
                         trução da internet – e do software livre – décadas depois.



                                                                                  91



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              Será uma ideia sorrateiramente presente e influente na
              sociedade até hoje, como se mostra no próximo capítulo.
                  Também fruto do século XIX, o socialismo trataria os di-
              reitos autorais de maneira distinta. Tanto na União Soviética
              (URSS) quanto em Cuba vigoravam as leis de direito auto-
              ral acordadas em Berna quando, em 1917 e 1959, respec-
              tivamente, estouram as revoluções soviéticas e cubana. Em
              1928, a lei de direito autoral no país europeu, de influência
              romano-francesa, é alterada e o período de validade dos di-
              reitos (patrimoniais) reduzido a um intervalo mais próximo
              às leis iniciais do século XVIII: 25 anos após a publicação de
              uma obra ou 15 anos após a morte do autor. Assim perma-
              nece até 1973, quando a URSS assina os tratados interna-
              cionais de propriedade intelectual e passa a adotar o prazo
              padrão de 70 anos após a morte do autor como o oficial para
              validade dos direitos patrimoniais; os morais, que dizem
              respeito ao reconhecimento de autoria, são perpétuos e ina-
              lienáveis. Esse prazo é também aplicado hoje para a Rússia
              e para ex-repúblicas soviéticas como Ucrânia, Geórgia, Es-
              tônia, Lituânia, Moldávia, entre outras88. Em Cuba, ocorre
              movimento parecido: a lei é alterada em 1977 e diminui o
              prazo de extensão dos direitos autorais para 25 anos após a
              morte do autor, o que permanece até 1994, quando Cuba en-
              tão assina tratados internacionais e passa a adotar o período
              de 50 anos após a morte do autor, o que permanece em 2020.
              Na China e na Coreia do Norte, outros países que adotaram
              o regime socialista no século XX, há uma longa tradição so-
              cial coletivista que faz com que as noções de cópia, autoria
              e propriedade intelectual sejam entendidas da maneiras di-
              ferentes, que serão tratadas no capítulo 6: “Cultura coletiva”.


              88
                   Como mostra a lista da nota anterior.


              92



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                            É de se imaginar, por fim, que, num contexto de ampla
                         circulação de aparatos tecnológicos de reprodução e
                         comunicação, termos como “plágio”, “cópia” e “criação”
                         ganhariam outros significados. Se o romantismo cristaliza
                         no século XIX a percepção, até hoje predominante, do
                         autor como um gênio criativo solitário, um legítimo pro-
                         prietário de bens culturais, o início do século XX vai cha-
                         coalhar essa noção quase sagrada de criação. Artistas e
                         criadores em geral vão torcer e revirar a noção de plágio e
                         usá-lo como método de produção artística e estratégia de
                         confronto com a propriedade intelectual – e, por conse-
                         quência, ao próprio capitalismo. A cópia da cópia da cópia
                         geraria outras formas de expressão, que por sua vez seriam
                         recombinadas e formariam a base de muitos bens culturais
                         amplamente conhecidos no século XX e até hoje.




                                                                                 93



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                                   CAPÍTULO 4
                         CULTURA RECOMBINANTE




              94



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                         As ideias se aperfeiçoam. O significado das
                         palavras participa do aperfeiçoamen-
                         to. O plágio é necessário. O progresso
                         implica isso. Ele aproveita uma frase
                         de um autor, faz uso de sua expressão,
                         apaga uma falsa ideia e a substitui
                         pela ideia certa.
                          Conde de Lautréamont (Isidore Lucien
                                       Ducasse), Poesias, 1870


                         Direito de ser traduzido, reproduzido
                              e deformado em todas as línguas.

                                               Oswald de Andrade,
                                       Serafim Ponte Grande, 1933


                         Na realidade, é necessário eliminar todos
                         os resquícios da noção de propriedade pes-
                         soal nesta área. O aparecimento das já ul-
                         trapassadas novas necessidades por obras
                         “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos,
                         hábitos perigosos. Não se trata de gostar
                         ou não delas. Temos que superá-las. Po-
                         de-se usar qualquer elemento, não importa
                         de onde eles são tirados, para fazer no-
                         vas combinações. As descobertas de poesia
                         moderna relativas à estrutura analógi-
                         ca das imagens demonstram que quando são
                         reunidos dois objetos, não importa quão
                         distantes possam estar de seus contextos
                         originais, sempre é formada uma relação.
                         Restringir-se a um arranjo pessoal de pa-
                         lavras é mera convenção. A interferência



                                                                 95



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                         mútua de dois mundos de sensações, ou a
                         reunião de duas expressões independentes,
                         substitui os elementos originais e produz
                         uma organização sintética de maior eficá-
                         cia. Pode-se usar qualquer coisa.

                         Guy Debord; Gil Wolman, Um guia para os
                                  usuários do detournamènt, 1956


                                            O meio é a mensagem.

                                              Marshall McLuhan,
                                         Understand Media, 1964


                         Nas redes intermídia de hoje, um fluxo
                         de dados formalizados algoritmicamen-
                         te pode saltar para todos eles. De
                         mídia a mídia, toda modulação possí-
                         vel se tornou factível: em órgãos de
                         luz, sinais acústicos controlam sinais
                         ópticos; na música de computador, si-
                         nais em linguagem de máquina controlam
                         sinais acústicos; em vocoders, mesmo
                         dados acústicos controlam outros dados
                         acústicos. Até os disc jockeys de Nova
                         Iorque criarem, a partir de gravuras
                         esotéricas de um Moholy-Nagy, o coti-
                         diano da scratch music.

                                          Friedrich A. Kittler,
                                   Gramofone, filme, typewriter,
                                                            1986




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                         I.

                         O período que vai do início dos 1900 até a década de 1970
                         foi de consolidação e popularização das diversas tecnolo-
                         gias de comunicação e reprodução patenteadas por nomes
                         como Graham Bell, Edison, Marconi, Eastman e Lumière
                         na segunda metade do século XIX. O fim do “Império da
                         Impressão”, como vimos, dá lugar a uma forma de percep-
                         ção que deixa de ser somente baseada na mediação simbó-
                         lica do alfabeto, das palavras e das publicações impressas e
                         passa a ser fortemente sentida, por olhos e ouvidos, a partir
                         da mediação dos aparatos técnicos de reprodução, como o
                         gramofone (depois vitrola, toca-discos e toca-fitas), o fil-
                         me (e o cinema), a televisão, o vídeo (e o videocassete). E
                         que culminam com o aparato que une todos estes em um
                         só, o computador, popularizado a partir do final dos anos
                         1970 com a explosão da nanotecnologia digital e dos PCs
                         (personal computer) produzidos na região que ditaria o
                         comportamento mundial diante das novas tecnologias nas
                         próximas décadas, o Vale do Silício, na Califórnia, Costa
                         Oeste dos Estados Unidos.


                                                                                   97



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                 Indústrias gigantescas são criadas com base na repro-
              dução de imagens e sons no século XX. O cinema, o rádio,
              a televisão, nessa sequência, se tornam meios de comuni-
              cação e reprodução de massa com alcance global, influen-
              tes mesmo na periferia do mundo. O armazenamento de
              informação torna-se o padrão de um mundo ditado pela
              concorrência do mercado; as ideias – literárias, musicais,
              científicas – são embaladas, comercializadas e se tornam
              propriedade, elemento pelo qual o capitalismo se organiza
              e move a roda do dito progresso, que vai cada vez mais
              depender das tecnologias e dos mecanismos jurídicos
              criados para regular as trocas e a publicação de ideias: as
              patentes e o direito autoral (ou o copyright).
                 Já nas primeiras décadas dos anos 1900, as bases das
              legislações de propriedade intelectual que ainda hoje va-
              lem estavam definidas em acordos internacionais como o
              de Berna ou o de Paris. Elas tornaram normal a ideia de
              criação individual sob o mito do “gênio” romântico, uma
              imagem representada por aquele sujeito que, trancafiado
              em seu quarto, em geral sozinho, tem uma ideia brilhante
              a partir somente de suas próprias referências e, com essa
              ideia bem embalada e vendida como mercadoria por um
              intermediário, vai conquistar fama e dinheiro. O que não
              se enquadrasse nesse modelo seria marginalizado e re-
              primido com multas e penas ao final de longos e caros
              processos levados por aqueles que tinham condições de
              contratar e manter advogados.
                 A consolidação das leis de direito autoral e da noção de
              que os bens culturais são propriedades privadas também
              ocasiona, de outro lado, um movimento de resistência. Na
              virada para o século XX e ao longo das décadas decor-
              rentes, movimentos de contestação ao direito autoral vão



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                         proliferar na arte e na cultura com o questionamento de
                         que ideias, sons, palavras, imagens e filmes possam ser de
                         posse de alguém e usados somente com autorização dos
                         ditos proprietários mediante algum pagamento financei-
                         ro. As indagações propostas nas ações desses artistas e
                         movimentos trazem, como consequência direta ou indi-
                         reta, a proposta de contestar a ideia de um bem cultural
                         como mercadoria e a construção de uma cultura livre e
                         comum que deveria ser de todos, sem a necessidade de
                         haver autorização para ser fruída, circulada ou reusada.
                            Ao se apropriar de certas ideias, embalá-las e vendê-las
                         como obras fechadas, o regime da propriedade intelectual
                         procurou, de um lado, criar um sistema que pudesse re-
                         munerar os criadores (ou seus representantes) por suas
                         obras – o que de fato fez ao equiparar artistas a outros
                         tantos profissionais com direito de manter uma vida dig-
                         na a partir de suas criações. De outro lado, a propriedade
                         intelectual também restringiu a promiscuidade das ideias
                         e encurralou-as dentro de um espaço onde pudesse extrair
                         benefícios exclusivos de sua posse e controle89. Na maioria
                         dos casos, o objetivo de se apossar de ideias e delas sacar
                         recursos foi atingido.
                            Mas existiu – e ainda existe – contestação para que o
                         acesso e a circulação continuassem sendo maiores que a
                         restrição. Nas ruas do sul global, a propriedade intelec-
                         tual se acostumou a ser suplantada pela livre difusão de
                         ideias, não raro comercializadas à margem do sistema
                         legal para fomentar novas criações que se espalham por
                         todos os cantos, mesmo que iniciativas nas legislações e
                         na propaganda, por Estados e empresas, surjam na busca


                         89
                              Nimus, op. cit., p.27.


                                                                                 99



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              do controle e da criminalização dessas práticas. De for-
              ma consciente como contestação ao status quo artístico ou
              espontânea porque cotidiana e usual, a reapropriação de
              informações e de bens culturais já existentes para o de-
              senvolvimento de novas criações proliferou com força no
              século XX a ponto de originar novos movimentos, ritmos,
              ritos e obras nos mais diversos lugares. São incontáveis os
              exemplos na arte e na contracultura, todos apresentando
              alguma forma de subversão e deslocando os objetos de um
              sistema de referência para outro, com alteração (ou não)
              de significado. As tecnologias de comunicação, gravação e
              reprodução em massa teriam papel importante nessa pro-
              liferação, na maioria dos casos sendo fundantes de novas
              práticas de criação, consumo e circulação de bens cultu-
              rais. O capitalismo teria papel ainda maior, sendo tanto o
              modo de produção no seio dos quais as tecnologias são
              geradas e popularizadas quanto o “inimigo” a ser adotado,
              de maneira explícita ou nem tanto, pelas iniciativas cultu-
              rais de enfrentamento baseadas no remix e na reapropria-
              ção de significados.

              II.

              A contestação às leis reguladoras da propriedade intelec-
              tual se deu na primeira hora, logo depois de sua consolida-
              ção nos Estados do Ocidente. Por motivos muitos diferen-
              tes e às vezes opostos: anarquistas a negar qualquer tipo
              de propriedade privada, mesmo a intelectual; socialistas
              em vias de potencializar a propriedade coletiva, inclusive
              nas artes, sob gerência do Estado; liberais a enfatizar o li-
              vre mercado, que considerava que o interesse público de
              ter acesso a bens culturais de forma mais barata possível


              100



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                     poderia prevalecer sobre os direitos dos autores; e artistas,
                     de todos os espectros ideológicos, a questionar o status da
                     criação romântica e proprietária e a lutar pela liberdade de
                     uso de qualquer tipo de obra sem necessidade de pedido
                     de autorização para quem quer que seja.
                        Ainda durante a segunda metade do século XIX, simul-
                     taneamente aos múltiplos inventos que aos poucos dariam
                     fim ao livro como o principal modelo de percepção de
                     ideias e da realidade, um dos primeiros artistas a aberta-
                     mente questionar o direito autoral e a noção de gênio cria-
                     dor individual foi o conde de Lautréamont, nascido Isido-
                     re Lucien Ducasse em Montevidéu, no Uruguai, em 1846,
                     e desde cedo morador de Paris, na França, onde morreu
                     em 1870, aos 24 anos. Lautréamont fez de sua curta obra
                     (e vida) um permanente questionamento ao que na épo-
                     ca era institucionalizado na literatura, tanto nas temáticas
                     como no processo de escrita – o uso de erros ortográfi-
                     cos, impropriedades estilísticas, o plágio e repetições de
                     fórmulas, que fazem suas obras serem, até hoje, cultuadas
                     e avessas a classificações90. Os cantos de Maldoror (1869),
                     seu livro mais famoso e influente, relata, em seis cantos de
                     uma poesia às vezes narrativa e em outras lírica e absurda,
                     sucessivas violências, depravações, crueldades em torno
                     da covardia e estupidez humana.
                        Seu segundo livro e último trabalho, Poesias, “menos es-
                     petacular e mais estranho ainda”91, publicado no ano de sua
                     morte, reuniu em texto aforismos, máximas, poesias, cita-
                     ções de poetas gregos e de seus contemporâneos na França,
                     como Charles Baudelaire, Blaise Pascal e Alexandre Dumas.

                     90
                        Em “O astro negro”, prefácio de Cláudio Willer a Lautréamont, Os
                     cantos de Maldoror.
                     91
                        Ibidem.


                                                                                   101



aculturaelivre.indd 101                                                                    05/02/21 18:25
              Num dos trechos da publicação, dividida em duas partes
              (fascículos), apelava ao retorno de uma poesia impessoal,
              escrita por todos, que remetesse às formas coletivas de
              produção no período medieval, mas com tintas da indus-
              trialização moderna do período: “As ideias se aperfeiçoam.
              O significado das palavras participa do aperfeiçoamento. O
              plágio é necessário. O progresso implica isso. Ele aproveita
              uma frase de um autor, faz uso de sua expressão, apaga uma
              falsa ideia e a substitui pela ideia certa”92. Lautréamont, em
              especial nesse trecho de Poesias93, provoca o mito da criati-
              vidade individual – que desde o princípio caminhou lado a
              lado com a justificação das relações de propriedade intelec-
              tual em nome de um mundo moderno onde, supostamente,
              não seriam aceitas ideias sem dono. Seu gesto sinaliza para
              a reapropriação da cultura enquanto esfera de produção co-
              letiva, tal qual na Antiguidade e parte da Idade Média, mas
              “sem deixar de reconhecer as vedações, identificadas por
              ele como artificiais, colocadas à autoria pelo regime já en-
              tão estabelecido de propriedade intelectual”94. Seu “A poe-
              sia deve ser feita por todos, não por um”, presente em Poe-
              sias, antecipa, junto com outro poeta do mesmo período,
              Stéphane Mallarmé, a atenção moderna da supremacia do
              texto sobre o autor-leitor, “um deslocamento da intersubje-
              tividade para a intertextualidade, que faz pensar a obra não
              apenas como um diálogo entre pessoas, mas entre textos”95.

              92
                 Ibidem.
              93
                 Guy Debord inclusive a cita na abertura de A sociedade do espetácu-
              lo, sua obra mais conhecida, de 1967.
              94
                  Nimus, op. cit., p.27.
              95
                 Em Lautréamont, op. cit., p.33, Willer, que se baseia em Os filhos
              do barro, do poeta e diplomata mexicano Octávio Paz. O foco sobre
              o texto e não tanto no autor vai ser popular nos estudos chamados de


              102



aculturaelivre.indd 102                                                                05/02/21 18:25
                        Lautréamont também usou de plágio para compor sua
                     obra. Em Cantos, há diversos trechos que fazem referên-
                     cia a outros96. Em Poesias é possível detectar trechos de
                     Pensamentos, do matemático Blaise Pascal, e de Máximas,
                     de François de La Rochefoucauld, além dos trabalhos de
                     escritores e filósofos como Jean de La Bruyère, Luc de
                     Clapiers, Dante Alighieri, Immanuel Kant e La Fontai-
                     ne97, entre outros autores que encontraríamos se fôssemos
                     examinar em ainda mais detalhes. Além disso, e de modo
                     ainda mais raro ao comparar com outros contestadores
                     do copyright e da autoria no século XX, também o modo
                     de circulação da obra de Lautréamont demonstrou certo
                     questionamento ao mercado tradicional de publicações:
                     as duas brochuras de Poesias circulavam sem preço pelas
                     ruas de Paris, no modelo “pague quanto quiser” que seria,
                     quase um século depois, espalhado pela cultura punk de
                     influência anarquista e outros movimentos na contracul-
                     tura que não reconhecem o sistema de propriedade inte-
                     lectual como legítimo para suas criações.
                        Os livros de Lautréamont só estão citados aqui hoje por-
                     que se tornaram referência de subversão para muitas das


                     écriture na França a partir dos anos 1950, 1960 e 1970, com filósofos
                     como Roland Barthes e Jacques Derrida. Barthes, não por acaso, é
                     autor de A morte do autor, de 1968, um texto em que aponta para
                     o desaparecimento da figura do autor a partir do século XIX sendo
                     o verdadeiro agente da escrita era a linguagem, não um indivíduo.
                     Martins, op. cit., p.21.
                     96
                        Um particularmente visível, segundo Willer, é a morte da criança
                     diante dos pais no canto I, trecho plagiado do poema “O rei dos ol-
                     mos”, de Goethe, com Maldoror no lugar do Gênio da Floresta.
                     97
                        Willer, Prefácio, em Lautréamont, op. cit.; e https://en.wikipedia.
                     org/wiki/Comte_de_Lautr%C3%A9amont.


                                                                                     103



aculturaelivre.indd 103                                                                       05/02/21 18:25
              vanguardas europeias no início do século XX, que assim
              os preservaram e popularizaram. Os surrealistas franceses
              Louis Aragon e André Breton o colocaram nos seus pan-
              teões de autores malditos, ao lado de Baudelaire e Arthur
              Rimbaud, e republicaram Poesias, em 1919, depois de des-
              cobrirem um dos poucos exemplares da obra na Bibliote-
              ca Nacional Francesa. A Lautrèamont, Aragon e Breton
              também dedicaram um número da revista surrealista que
              editaram, Le Disque Vert, em 1925, intitulada “Le Cas Lau-
              tréamont” (“O caso Lautréamont”). Ambas iniciativas tor-
              nariam a obra do poeta conhecida para novos públicos.
              Antes da revista, um dos pioneiros do modernismo nos Es-
              tados Unidos, Man Ray, em 1920, fez uma obra identificada
              ao Dada chamada L’Énigme d’Isidore Ducasse (O enigma
              de Isidore Ducasse). É uma fotografia em que se vê alguma
              coisa escondida em um pedaço de feltro marrom amarra-
              do por uma corda de sisal, inspirada em um trecho de Os
              cantos de Maldoror: “Beautiful as the chance meeting, on a
              dissecting table, of a sewing machine and an umbrella”98.
                 A obra de Man Ray era o que o artista francês (e seu
              amigo) Marcel Duchamp chamou em 1913 de ready-made,
              prática que consistia em pegar objetos em relação aos quais
              se era indiferente e recontextualizá-los de maneira a des-
              locar seus significados. Na década de 1910, os dois produ-
              ziram uma série dessas obras, que, de certo modo, foram
              pioneiras no mundo da arte ocidental em usar e deixar ex-
              plícita a recombinação de informações e outros elementos
              para criação de uma nova obra. Como conta Duchamp:

              98
                Disponível em: https://www.wikiart.org/en/man-ray/the-enigma-
              -of-isidore-ducasse-1920. “Belo como o encontro fortuito, sobre uma
              mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”,
              em tradução de Cláudio Willer.


              104



aculturaelivre.indd 104                                                             05/02/21 18:25
                            Em 1913 tive a feliz ideia de fixar uma roda de bicicleta a
                            uma banqueta de cozinha e vê-la girar. Uns poucos me-
                            ses depois comprei uma reprodução barata de uma pai-
                            sagem de uma noite de inverno, a qual chamei de “Far-
                            mácia” depois de adicionar dois pequenos pontos, um
                            vermelho e um amarelo, no horizonte. Em Nova York em
                            1915 comprei numa loja de ferramentas uma pá de neve
                            na qual eu escrevi “À frente do braço quebrado”. Foi por
                            essa época que a palavra “ready-made” me veio à men-
                            te para designar esta forma de manifestação. Um ponto
                            que desejo muito esclarecer é que a escolha destes “ready-
                            -mades” nunca foi ditada pelo deleite estético. Essa esco-
                            lha era baseada numa reação de indiferença visual com ao
                            mesmo tempo uma total ausência de bom ou mau gosto...
                            De fato uma completa anestesia. […] Um outro aspecto
                            do “ready-made” é sua impossibilidade de ser único. A
                            réplica de um “ready-made” carrega a mesma mensagem;
                            de fato quase que nenhum dos “ready-mades” existentes
                            hoje é um original no sentido convencional.99
                     Em 1917, ao tirar um urinol do banheiro, assiná-lo e colo-
                     cá-lo sobre um pedestal em uma galeria de arte, sua até hoje
                     mais conhecida obra100, Duchamp também afastou o signi-
                     ficado da interpretação funcional aparentemente concluída
                     do objeto. Embora esse significado não tivesse desaparecido
                     por completo, foi justaposto a outra possibilidade – o signifi-
                     cado como objeto de arte. O urinol em uma galeria instigava
                     um momento de incerteza e reavaliação e questionava mais

                     99
                         Publicado originalmente no site Iconoclast: www.13am.net/
                     iconoclast, tradução do inglês por Ricardo Rosas (Arquivo Rizoma)
                     no e-book Recombinação, p.17.
                     100
                         Realizado por Duchamp em 1917 quando do envio do objeto ao Sa-
                     lão de Associação de Artistas Independentes de Nova York sob o pseu-
                     dônimo R. Mutt.


                                                                                    105



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              uma vez o essencialismo romântico, que coloca a obra de
              arte como produto de uma natureza divina e que privilegia
              o trabalho criativo individual. O urinol e a roda de bicicle-
              ta eram produtos industriais feitos por máquinas, coletados
              em lugares diversos e ressignificados por Duchamp; quando
              colocados em espaços de arte como galerias, não poderiam
              ser patenteados como outras obras da época (quadros, es-
              culturas, fotografias), pois o objeto em si não tinha valor,
              podia ser descartado e outro entraria em seu lugar numa
              nova exposição sem prejuízo de significado. O que valia
              era a ideia proposta pela experiência de se ver um objeto
              de uso cotidiano como um urinol – ou um pedaço de feltro
              escondendo outros objetos, ou uma roda de bicicleta – em
              uma galeria de arte. Nascia aí a arte conceitual, desde sua
              origem livre, avessa a direitos autorais e crítica à propriedade
              das ideias, mas também suscetível, nas décadas seguintes, a
              transformar-se em mercadoria e frequentar museus e gale-
              rias registradas com copyrights de milhares de dólares.
                  Duchamp e Man Ray estavam associados a uma das
              vanguardas europeias desse período, o Dada, que, espa-
              lhado por Suíça, Estados Unidos, França e Holanda, mas
              também Geórgia, Japão e Rússia101, desenvolveu muito de
              seus trabalhos a partir do questionamento da ideia do ar-
              tista e da não separação entre arte e vida. O Dada, que
              é uma palavra de muitas origens, mas que em todas elas
              significa “nada”, deve muito a outra noção de Duchamp,
              a antiarte, pensada por ele a partir dos ready-mades em
              1913 e adotada por muitos movimentos contraculturais
              do século XX102 como um método de provocar os pilares

              101
                  Há muitos detalhes do Dada disponíveis em: https://en.wikipedia.
              org/wiki/Dada.
              102
                  Dos movimentos Cobra e Internacional Letrista, próximos ao sur-


              106



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                     do que seria uma arte tradicional – entre eles, temas como
                     a autoria, a beleza e a propriedade intelectual. Diversas
                     obras do Dada interrogavam a ideia do gênio criativo so-
                     litário e expressavam uma revolta contra os princípios ca-
                     pitalistas embrenhados nos valores artísticos. O romeno
                     Tristan Tzara, um dos principais nomes do Dada, mani-
                     festou um tanto dessa revolta ao utilizar com frequência
                     a aleatoriedade, o non sense e o acaso para produzir obras
                     que chocaram o status quo do mundo artístico à época,
                     como em “Para fazer um poema dadaísta”, de 1920:
                            Pegue a tesoura.
                            Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja
                            dar a seu poema.
                            Recorte o artigo.
                            Recorte em seguida com atenção algumas palavras que
                            formam esse artigo e meta-as num saco.
                            Agite suavemente.
                            Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
                            Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tira-
                            das do saco.
                            O poema se parecerá com você.
                            E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibi-
                            lidade graciosa, ainda que incompreendido do público.103


                     realismo e ao Dada da primeira metade do século XX, ao Provos (Ho-
                     landa), ao punk e ao neoísmo, na segunda metade, passando pelos
                     situacionistas e pela mail art também citadas aqui. Esses movimentos
                     antiartísticos são detalhados numa bela e pouco conhecida obra cha-
                     mada Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do sé-
                     culo XX, de Stewart Home, publicado no Brasil pela Conrad em 2005.
                     103
                         “No original em francês: “Prenez un jornal. Prenez des ciseaux.
                     Choisissez dans ce jornal un article ayant la longueur que vou comp-
                     tez donner à votre poème.Découpez l’article. Découpez ensuite avec soin
                     chacun des mots qui forment cet article et mettez-le dans um sac. Agitez


                                                                                       107



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              Apresentada também em muitos manifestos produzidos
              no período, as ideias do Dada104 buscavam a demolição
              de um sistema artístico em que a propriedade intelectual,
              entronada na noção de autoria, já tinha um papel impor-
              tante. Não por acaso, também aqui a tecnologia começa a
              ter maior relevância na arte; as collages, a poesia sonora e
              o cinema são artes, potencializadas nesse período, em que
              os aparatos técnicos têm papel principal, tanto como mé-
              todo de produção (caso das collages) quanto de gravação e
              apresentação ao público (poesia sonora e o cinema).
                  As collages haviam entrado com força no mundo da
              arte com o espanhol Pablo Picasso e o francês Georges
              Braque, a partir de 1912, baseadas na evolução das téc-
              nicas de impressão, que possibilitaram a circulação em
              massa de jornais e revistas de onde os pintores recortavam
              trechos e mesclavam a desenhos e tintas em seus quadros.
              A poesia sonora ganhou repercussão com o fundador do
              futurismo italiano, Filippo Tommaso Marinetti, que entre
              1912 e 1914 publica Zang Tumb Tumb, um poema sonoro
              e visual em que as novas técnicas modernistas de tipogra-
              fia e diagramação do italiano se mesclam a uma rica e an-


              doucement. Sortez ensuite chaque coupure l’une après l’autre dans l’or-
              dre où eles ont quitté le sac. Copiez consciencieusement. Le poème vous
              ressemblera. Et vous voilà un écrivain infiniment original et d’une sen-
              sibilité charmante, encore qu’incromprise du vulgaire”. Tradução em
              Teles, Vanguarda européia e modernismo brasileiro.
              104
                  Vale citar também como ideias influentes no Dada aquelas expos-
              tas nas telas do alemão Kurt Schwitters, repletas de imagens aleatórias
              de recortes de jornal, bilhetes de trem e fotografias, e nas poesias so-
              noras (sem palavras) de Hugo Ball, fundador, ao lado de sua esposa
              Emmy Hennings, em 1916, do ponto de encontro dos dadaístas, o
              Cabaret Voltaire, em Zurique, na Suíça.


              108



aculturaelivre.indd 108                                                                  05/02/21 18:25
                     tiga tradição da poesia oral para brincar com os sons das
                     palavras – ainda que, no caso de Marinetti e do futurismo
                     italiano, as experimentações estejam a cargo de uma retó-
                     rica da velocidade industrial que resultaria em misoginia e
                     no fascismo de Mussolini105. Os dadaístas Hugo Ball e Kurt
                     Schwitters também fariam poemas sonoros; o primeiro foi
                     performado por Ball na abertura do Cabaret Voltaire, em
                     1916 – “gadji beri bimba glandridi lauli lonni cadori”106,
                     que, sem nenhum gramofone disponível à época, foi regis-
                     trado muitos anos depois como uma música pop dançante
                     em uma mescla de ritmos africanos em “I Zimbra”107, do
                     disco Fear of Music, dos Talking Heads, em 1979. Já o ale-
                     mão Schwitters teve mais sorte; nos anos 1920 percorreu
                     com Tzara, Hans Arp e Raoul Hausmann diversos salões
                     literários na Europa a declamar (e provocar) as audiências
                     com “Ursonate” (também chamada de “Sonata primal”),
                     um poema sonoro baseado em uma frase “Fümms bö wö
                     tää zää Uu”, repetida e acrescida de outros trechos ao lon-

                     105
                         O primeiro “Manifesto futurista”, escrito por Marinetti e publica-
                     do no jornal francês Le Figaro em 1909, “exaltava a velocidade como
                     novo valor estético destinado a enriquecer a magnificência do mun-
                     do”, como escreve Franco “Bifo” Berardi em Depois do futuro, livro
                     que detalha os conceitos de “futuro” ao longo do século XX e hoje.
                     Com a velocidade, vem a apologia do automóvel, das virtudes guer-
                     reiras e da desvalorização de tudo o que é feminino, exposto neste
                     trecho do manifesto de Marinetti pinçado por Bifo: “Queremos cele-
                     brar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra,
                     lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita” (Berardi,
                     Depois do futuro, p.24).
                     106
                          Mais informações sobre o poema em: https://www.nealum-
                     phred.C.om/hugo-ball-sound-poetry-gadji-beri-bimba.
                     107
                         Pode ser assistido em: https://www.youtube.com/watch?v=3tyVn-
                     2ZDJ-Y.


                                                                                     109



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              go do tempo em que Schwitters o apresentou – uma dessas
              apresentações foi gravada em uma rádio de Frankfurt, na
              Alemanha, em 1932, e ainda hoje está disponível108.
                 O rádio, aliás, passa a fazer parte do cotidiano mundial
              a partir da década de 1920, o que potencializa a experi-
              mentação sonora. O registro dos gramofones, de alcance
              local e efêmero, passa ter uma possibilidade de audiência
              e interação com milhares de pessoas. A influência do rá-
              dio nas décadas de 1930 e 1940 fez que a mera leitura de
              um texto literário para a transmissão pública pelo sistema
              de radiotransmissão se transformasse em outra forma de
              criação. Ficou notório o pânico de muitos que ouviam A
              guerra dos mundos, em 30 de outubro de 1938 na rádio
              CBS, dos Estados Unidos, uma transmissão dirigida por
              Orson Welles, produzida pela The Mercury Theatre on
              the Air, baseada em um texto de H. G. Wells. Dos quinze
              minutos em diante, após ouvir relatos de aparições de ex-
              traterrestres em diversas fazendas dos Estados Unidos, a
              transmissão parece falhar, dando a muitos a impressão de
              que a CBS em Nova York estava sendo realmente invadi-
              da pelos extraterrestres de que os relatos ouvidos ao vivo
              falavam109. Mesmo que ainda hoje haja divergências sobre
              o real impacto da transmissão, foi um episódio marcante
              na história das mídias para ilustrar que uma adaptação
              de um texto impresso para uma mídia sonora de alcance
              público nunca mais seria apenas mera transmissão, mas
              outra coisa – “o meio é a mensagem”, como sintetizaria


              108
                  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6X7E2i0KM-
              qM.
              109
                  Disponível na íntegra em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:War_
              of_the_Worlds_1938_Radio_broadcast_full.flac.


              110



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                     Marshall McLuhan duas décadas e meia depois110, ao dis-
                     secar a influência da forma das mídias em seu conteúdo.
                        Ainda na década de 1930, a popularização das técnicas
                     de comunicação e reprodução como o rádio, o gramofone,
                     a fotografia e o cinema provocariam um dos textos mais
                     conhecidos do historiador alemão Walter Benjamin, A
                     obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Es-
                     crito em 1936 e publicado em 1955, argumenta que a re-
                     produção técnica à época tinha atingido um nível “tal que
                     começara a tornar objeto seu não só a totalidade das obras
                     de arte provenientes de épocas anteriores como também
                     a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos
                     artísticos”111. Benjamin escreve que essas técnicas de re-
                     produção liberariam o objeto reproduzido do domínio da
                     tradição e, ao multiplicar o reproduzido, colocariam no
                     lugar da ocorrência única a ocorrência em massa112. As-
                     sim, a “aura” singular das obras de arte seria perdida e as
                     cópias, (re)produzidas em massa, passariam a ter valor
                     por si – o que, como veremos algumas décadas depois,
                     seria o habitual nas novas formas de expressão artística e
                     cultural a partir do surgimento de tecnologias eletrônicas,
                     depois digitais e, finalmente, digitais em rede.

                     II½.

                     A contestação ao copyright por parte das vanguardas eu-
                     ropeias também teve eco no Brasil da primeira metade do

                     110
                         Em Understanding Media, publicado no Brasil como Os meios de
                     comunicação como extensão do homem.
                     111
                         Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
                     p.24.
                     112
                         Ibidem.


                                                                                     111



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              século XX. Para além das práticas colaborativas e livres
              dos povos originários sul-americanos, tema do Capítulo
              6 deste livro, o modernismo brasileiro trouxe alguns ele-
              mentos dos movimentos europeus e os readaptou às cores
              locais, já acostumadas com a recombinação de elementos
              para a criação de novos bens culturais.
                 Nesse aspecto, o paulista Oswald de Andrade teve pa-
              pel de destaque como divulgador e adaptador das ideias
              de questionamento à autoria e ao direito autoral. Para
              Oswald, a garantia de sobrevivência da cultura brasileira
              estaria na capacidade de entrar em contato com outras
              culturas e absorvê-las em um processo de deglutição,
              como expresso em trechos do “Manifesto antropófago”,
              publicado na primeira edição da Revista de Antropofa-
              gia, em 1928: “Só me interessa o que não é meu. Lei do
              Homem. Lei do Antropófago”. A antropofagia proposta
              pelo escritor seria a inversão do mito do bom selvagem
              atribuído ao iluminista Rousseau: em vez de puro e ino-
              cente, um indígena esperto e malandro, que canibaliza o
              estrangeiro e digere o colonizador ocidental e sua cultura.
                 Outra pista contestadora ao direito autoral e também
              a essas noções de autoria deixada por Oswald é Serafim
              Ponte Grande, livro publicado em 1933. No lugar onde se
              costuma indicar as “Obras do autor”, no início da publica-
              ção, ele põe a rubrica “Obras renegadas”, e o próprio livro
              que está para se ler é incluído entre os títulos “repudia-
              dos”. A frase que abre a folha de rosto da edição parafra-
              seia a indicação de copyright costumeira: “Direito de ser
              traduzido, reproduzido e deformado em todas as línguas”.
              A forma do livro, como comenta Haroldo de Campos
              em prefácio à segunda edição (1971), é feita a partir da
              colagem, a justaposição de materiais diversos, o que em



              112



aculturaelivre.indd 112                                                     05/02/21 18:25
                     técnica cinematográfica parece equivaler de certo modo
                     à montagem.
                               A colagem – e mesmo a montagem – sempre que tra-
                               balhem sobre um conjunto já constituído de utensílios
                               e materiais, inventariando-os e remanipulando-lhes as
                               funções primitivas, podem se enquadrar naquele tipo de
                               atividade que Lévi-Strauss define como bricolage (elabo-
                               ração de conjuntos estruturados, não diretamente por
                               meio de outros conjuntos estruturados, mas pela utiliza-
                               ção de resíduos e fragmentos), a qual, se é característica
                               da “pensée sauvage”, não deixa de ter muito em comum
                               com a lógica de tipo concreto, combinatória, do pensa-
                               mento poético.113
                     A influência da colagem do Dada e do automatismo do
                     surrealismo em Oswald é considerável, mas há também
                     diversos artistas ao longo da história que usaram de ar-
                     tifícios semelhantes de colagem e de questionamento do
                     próprio livro como objeto narrativo e mercadológico. No
                     prefácio de Serafim Ponte Grande já citado, Haroldo de
                     Campos cita um deles, o idiossincrático A vida e as opi-
                     niões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne,
                     escrito entre 1759 e 1767 na Inglaterra, um “marco pionei-
                     ro da revolução do objeto livro que se projeta de maneira
                     avassaladora e irreversível em nosso século, agora tendo
                     por aliadas as novas técnicas de reprodução de transmis-
                     são da informação”114. A prática de Oswald de criar a par-
                     tir da colagem e da recompilação de diversos trechos de
                     outros artistas ou de veículos de massa, misturando gê-
                     neros e formas diversas para a formação de uma obra es-
                     pecífica, seria, como prenuncia Haroldo de Campos, vista

                     113
                           Campos, Serafim: um grande não-livro, p.2.
                     114
                           Ibidem, p.4.


                                                                                    113



aculturaelivre.indd 113                                                                     05/02/21 18:25
              em profusão no século XX no Brasil, das artes visuais e
              performances de Hélio Oiticica, Paulo Bruzcky e Adriana
              Varejão à literatura de Valêncio Xavier e, mais recente-
              mente, Angélica Freitas, Verônica Stigger, Cristiane Costa
              e Leonardo Villa-Forte115.
                 A influência mais explícita do Dada de rejeitar a origi-
              nalidade e, principalmente, de que toda produção artística
              consiste na reciclagem e na remontagem é marcada, porém,
              tanto em Oswald quanto em outros artistas citados aqui,
              mais na estética do que na forma de a obra ser licenciada.
              Abrir mão do direito autoral – ou mesmo licenciar de for-
              mas menos restritivas – é, no contexto da arte do século
              XX, uma bandeira estética que na prática parece se firmar
              como radical demais mesmo para artistas experimentais.

              III.

              A ocorrência em massa de obras de arte se espalharia
              ao longo do século XX e passaria também a incorporar
              aspectos das tecnologias de comunicação, gravação e re-
              produção à medida que estas se tornassem populares.
              Também novos significados e práticas artísticas surgem a
              partir da recombinação de um dado (um texto literário
              gravado em áudio, por exemplo) transportado para outro
              registro e recombinado de acordo com as diferentes técni-
              cas possíveis na outra mídia – as inserções sonoras, cortes
              e pausas de edição que transformam A guerra dos mundos
              em outra coisa quando transmitida ao vivo, por exemplo.

              115
                 Villa-Forte também publicou Escrever sem escrever: literatura e
              apropriação no século XXI, um trabalho que pensa a literatura num
              contexto de reapropriação propiciado pelas tecnologias digitais e a
              internet.


              114



aculturaelivre.indd 114                                                             05/02/21 18:25
                     Da experimentação pura com um invento técnico tam-
                     bém surgem outras recriações; o gramofone de Edison
                     nas mãos do artista visual húngaro e professor na Bauhaus
                     alemã László Moholy-Nagy poderia virar um instrumento
                     produtivo, “de forma que o fenômeno acústico surja por
                     si só graças à gravação das marcas necessárias sobre um
                     disco sem existências acústicas prévias”116. A sugestão de
                     Moholy-Nagy (e de outros) nesse período para produzir
                     música com o gramofone vai ser efetivada com a música
                     concreta a partir de 1948, com o francês Pierre Schaef-
                     fer em experimentações sonoras com microfones, vozes
                     de atores e outros sons possíveis de serem obtidos em um
                     estúdio de rádio da época. É nessa década também que o
                     gravador de fita magnética passa a ser comercializado e,
                     com a portabilidade que gradativamente passou a permi-
                     tir, viabilizar novas experimentações sonoras – como as
                     do egípcio Halim El-Dabh, que, com um gravador de fita
                     magnética de um estúdio de uma rádio do Cairo, no Egi-
                     to, produz em 1944 “The Expression of Zaar”, considerada
                     uma das primeiras músicas eletrônicas feitas a partir de
                     manipulações em estúdio de sons registrados (pelo grava-
                     dor) de uma cerimônia religiosa na época117.
                         Sendo desde o princípio corte, do movimento contí-
                     nuo ou de uma história passada à frente da lente118, o cine-

                     116
                         Moholy-Nagy, citado por Kittler, op. cit., p.79.
                     117
                         El-Dabh foi às ruas capturar sons externos de uma antiga cerimô-
                     nia zaar, um tipo de exorcismo realizado em público. Intrigado com as
                     possibilidades de manipular o som gravado para fins musicais, ele acre-
                     ditava que poderia abrir o conteúdo de áudio bruto da cerimônia zaar
                     para uma investigação mais aprofundada sobre o “som interno” contido
                     nela. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Halim_El-Dabh.
                     118
                         Kittler, op. cit., p.177.


                                                                                      115



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              ma seria uma arte ainda mais afeita a recombinações. Os
              dados registrados em duas diferentes formas (imagem e
              som, em movimento) ganhariam a possibilidade de diver-
              sos efeitos especiais em complexos estúdios de edição (e
              também produção) com os melhores gravadores, micro-
              fones e outros equipamentos sonoros que a mais rica das
              artes já permitia nos anos 1940 e 1950, principalmente na
              Costa Oeste dos Estados Unidos, em Hollywood. Seria a
              arte em que a recombinação poderia atingir maior efeti-
              vidade e beleza, segundo os franceses Guy Debord e Gil
              Wolman, em Um guia para os usuários do detournamè-
              nt119, de 1956: “os poderes do filme são tão extensos, e a
              ausência de coordenação desses poderes é tão evidente,
              que virtualmente qualquer filme que esteja acima da mi-
              serável mediocridade provê tema para infinitas polêmicas
              entre espectadores ou críticos profissionais”120. Herdeiros
              de Lautrèamont, do Dada e da Bauhaus, Debord e Wol-
              man são ligados aos situacionistas, grupo estabelecido na
              França a partir de 1957 por diversos poetas, arquitetos,
              cineastas, artistas plásticos que se definiam como “van-
              guarda artística e política” focada na crítica à sociedade de
              consumo e à cultura mercantilizada121.


              119
                  Publicado pela primeira vez no oitavo número da revista surrealis-
              ta belga Les Lèvres Nues, em 1956.
              120
                  Esse trecho foi detunado da introdução para O guia dos usuários
              do detournamènt publicada pelo BaixaCultura na rede e em formato
              zine, 2015.
              121
                  “A ideia de ‘situacionismo’ se relaciona à crença de que os indiví-
              duos devem construir as situações de sua vida no cotidiano, cada um
              explorando seu potencial de modo a romper com a alienação reinante
              e obter prazer próprio.” Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
              termo3654/situacionismo.


              116



aculturaelivre.indd 116                                                                  05/02/21 18:25
                         Um guia para os usuários do detournamènt é um dos
                     primeiros textos a ter como enfoque o desenvolvimen-
                     to de um método criativo baseado no plágio. Debord e
                     Wolman falam, por exemplo, da prática na literatura, mais
                     bem usada no processo da escrita do que no resultado fi-
                     nal: “Não há muito futuro no deturnamento de romances
                     inteiros, mas durante a fase transitiva poderia haver um
                     certo número de empreendimentos deste tipo”. Na poe-
                     sia, citam a metagrafia – uma técnica de colagem gráfi-
                     ca desenvolvida pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo
                     movimento do Letrismo122, que os inspirou. Como “leis
                     fundamentais do detournamènt”, estão: 1) a perda de im-
                     portância de cada elemento detunado, que pode ir tão lon-
                     ge a ponto de perder completamente seu sentido original;
                     e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto
                     de significados que confere a cada elemento um novo al-
                     cance e efeito. Um trecho:
                           Não se trata aqui de voltar ao passado, o que é reacio-
                           nário; até mesmo os “modernos” objetivos culturais são
                           em última análise reacionários na medida em que de-
                           pendem de formulações ideológicas de uma sociedade
                           passada que prolongou sua agonia de morte até o pre-
                           sente. A única tática historicamente justificada é a inova-
                           ção extremista. […] Na realidade, é necessário eliminar
                           todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta
                           área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessi-
                           dades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos,
                           hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas.
                           Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento,
                           não importa de onde eles são tirados, para fazer novas


                     122
                        Movimento cultural situado na França e criado nos anos 1940 a
                     partir de Isidore Isou, com influências do Dada e do surrealismo.


                                                                                 117



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                          combinações. As descobertas de poesia moderna relati-
                          vas à estrutura analógica das imagens demonstram que
                          quando são reunidos dois objetos, não importa quão dis-
                          tantes possam estar de seus contextos originais, sempre é
                          formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal
                          de palavras é mera convenção. A interferência mútua de
                          dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expres-
                          sões independentes, substitui os elementos originais e
                          produz uma organização sintética de maior eficácia. Po-
                          de-se usar qualquer coisa.123
              Como prática, o detournamènt não era um antagonismo à
              tradição, mas acentuação da reinvenção de um novo mun-
              do a partir do passado, em um momento em que, pós-
              -guerra, a Europa (e a França) viviam uma explosão ar-
              tística e de retomada das vanguardas do início do século,
              que de certa forma ensinava a todos a “aprender a viver de
              uma forma diferente mediante a criação de novas práticas
              e formas de comportamento”124. A ideia do desvio propos-
              ta no texto de Debord e Wolman parecia funcionar mais
              para revelar do que ocultar suas origens. Seria uma for-
              ma, entre muitas outras, de entrar diretamente no longo
              diálogo do conhecimento, de expor referências e mostrar
              a todos o que se quer absorver destas. Da união do que
              se aproveita de um lado com o que se aproveita de outro
              é que, aprendemos desde cedo, nasce algo diferente. Na
              mesma década de 1950 também nasceu acidentalmente
              outra técnica influente baseada no plágio, o cut-up. O pin-
              tor e poeta Brion Gysin, que havia sido membro do grupo
              de André Breton no surrealismo francês, colocou cama-
              das de jornais como uma esteira para proteger uma mesa

              123
                    Debord; Wolman, op., cit.
              124
                    Nimus, op. cit., p.79.


              118



aculturaelivre.indd 118                                                               05/02/21 18:25
                     enquanto cortava papéis com uma lâmina de barbear. Ao
                     recortar os jornais, Gysin notou que as camadas fatiadas
                     ofereciam justaposições interessantes de texto e imagem;
                     começou então a dividir artigos de jornal em seções, reor-
                     ganizados de modo aleatório tal qual Tzara propunha em
                     “Para fazer um poema dadaísta”. Muitos poetas talvez já ti-
                     vessem feito gestos semelhantes para a criação, mas Gysin
                     conhecia o escritor William Burroughs e o apresentou à
                     técnica em 1958, no Beat Hotel, em Paris. Nascia uma par-
                     ceria que renderia diversas obras em texto e áudio, entre
                     elas o livro The Third Mind, coleção de cut-ups assinados
                     pelos dois. Um dos mais singulares escritores do século
                     XX, Burroughs também usaria a técnica em uma trilo-
                     gia de livros que inclui The Soft Machine, The Ticket That
                     Exploded e Nova Express, publicados entre 1961 e 1964,
                     todos narrativas em que textos existentes cortados e mon-
                     tados em pedaços eram colocados de maneira aleatória,
                     combinados com pinturas de Gysin e sons experimentais
                     recortados por Ian Sommervile – em gravadores de fita
                     magnética, já mais populares que no Egito de Halim El-
                     -Dabh em 1944.
                        Burroughs também descreveria o cut-up de forma di-
                     dática:
                           O método é simples. Aqui está uma maneira de fazê-lo.
                           Pegue uma página. Como esta página. Agora corte do
                           meio para baixo. Você tem quatro seções: 1, 2, 3, 4, ...
                           um dois três quatro. Agora rearranje as seções colocan-
                           do seção quatro com seção um e seção dois com seção
                           três. E você tem uma nova página. Às vezes diz a mesma
                           coisa. Às vezes alguma coisa bem diferente – cutape-
                           ar discursos políticos é um exercício interessante – de
                           qualquer modo você vai descobrir que isso diz alguma
                           coisa e alguma coisa bem definida. Pegue qualquer po-


                                                                              119



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                          eta ou escritor que você admira, digamos, ou poemas
                          que você tenha lido muitas vezes. As palavras perderam
                          significado e vida por anos de repetição. Agora pegue
                          o poema e datilografe passagens selecionadas. Encha
                          uma página com excertos. Agora corte a página. Você
                          tem um novo poema. Tantos poemas quanto você quei-
                          ra. Tristan Tzara disse: “A poesia é para todos”. E André
                          Breton chamou-o de tira e o expulsou do movimento.
                          Diga de novo: “A poesia é para todos”. A poesia é um
                          lugar e é livre para todos cutapear Rimbaud, e você se
                          colocar no lugar de Rimbaud.
                          O método do cut-up traz a escritores a colagem, a qual
                          tem sido usada por pintores por setenta anos. E usada
                          pelas câmeras foto e cinematográficas. De fato todos os
                          cortes de rua do cinema ou de câmeras fotográficas são,
                          pelos imprevisíveis fatores de passantes e justaposição,
                          cut-ups. E fotógrafos vão dizer a você que frequentemente
                          seus melhores instantâneos são acidentes... escritores vão
                          dizer o mesmo. Os melhores escritos parecem ser aqueles
                          feitos quase por acidente por escritores até que o método
                          do cut-up foi tornado explícito – toda escrita é de fato cut-
                          -ups; eu retornarei a este ponto – não houvesse nenhum
                          jeito de produzir o acidente da espontaneidade. Você não
                          pode decidir a espontaneidade. Mas você pode introduzir
                          o fator imprevisível e espontâneo com uma tesoura.125
              A década de 1950 ainda vê, num âmbito menos under-
              ground, a pop art avançar na recombinação da collage
              modernista e dadaísta com cada vez mais apropriação
              dos objetos da cultura de massa, agora também a incluir
              a televisão, desde 1930 possível na Europa e nos Esta-
              dos Unidos, mas de fato popularizada e tornada símbo-
              lo nos lares ocidentais na década de 1950. Andy Warhol

              125
                    Burroughs, O método cut-up, p.85.


              120



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                     e Roy Lichtenstein, dois dos nomes (não por acaso dos
                     Estados Unidos) mais conhecidos desse movimento, se
                     tornariam pop ao usar elementos das histórias em qua-
                     drinhos, da propaganda publicitária e dos programas
                     de entretenimento televisivo para parodiar e comentar a
                     apatia que o consumo (também de produtos midiáticos)
                     pode produzir nas pessoas. Como em Duchamp, a obra
                     artística na pop art é produzida a partir de trechos de
                     outras obras comercializadas em escala industrial, o que
                     ainda hoje levanta diversas questões sobre propriedade
                     intelectual e autoria. Warhol, em especial, tem suas obras
                     mais conhecidas feitas a partir de imagens e objetos
                     não produzidas por ele, mas sim reapropriados, caso de
                     Marilyn Monroe (1967), 250 serigrafias coloridas feitas em
                     sua Factory a partir de uma foto de divulgação da atriz
                     símbolo da Era de Ouro de Hollywood. E, também, das
                     caixas de Brillo Box, um detergente popular nos Estados
                     Unidos, trazidas por Warhol para o mundo das artes em
                     1964 e registrado em copyright desde então.
                        Na maioria dos processos legais que Warhol respondeu à
                     época, os tribunais reconheceram o seu gesto de apropriação
                     como artístico. Para fundamentar sua resolução, evocaram
                     sua trajetória, o contexto do momento e testemunhos de
                     especialistas no assunto, como críticos, historiadores e
                     professores, atores do campo artístico que poderiam dar
                     uma “definição” do que a sociedade considera um artista.
                     As apropriações de Warhol passariam no “teste estético”
                     também porque demonstraram uma “originalidade” em
                     sua ação; como antes o fizera Duchamp, em Brillo Box
                     Warhol modificava de forma significativa e irreversível o
                     campo (e as regras) da arte. O paradoxo da história é que




                                                                           121



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              Warhol (e seus herdeiros depois) se mostraram inflexíveis
              sobre modificações e usos das obras do artista126.
                  Warhol não seria o primeiro, nem o último, a agir de
              forma contraditória ao usar tudo na hora de criar, mas
              não permitir que outros usassem nada do que produziu.
              Há um termo na psicologia para essa prática, chamado de
              “aversão à perda” (loss aversion, em inglês), que diz: “não
              gostamos de perder o que temos”. Fala de uma tendência
              de pôr um valor mais alto nas perdas do que nos ganhos;
              os benefícios que obtemos ao copiar o trabalho dos ou-
              tros não nos cria uma grande impressão, mas, quando
              nossas ideias são copiadas, percebemos como uma perda
              e ficamos como cães de guarda sedentos por vingança127.
              Os Estúdios Disney seriam, talvez, o caso mais conheci-
              do dessa prática: usou extensivamente o domínio públi-
              co para resgatar algumas de suas principais histórias –
              Branca de Neve e os sete anões, Pinóquio, Alice no País das
              Maravilhas, Cinderela, A Bela Adormecida, Alladin – e
              transformá-las em desenhos animados de sucesso comer-
              cial128. Mas, quando chegou a hora de os direitos de autor
              dos primeiros filmes da Disney começarem a expirar, fi-
              zeram forte pressão para que o termo de direitos de autor
              fosse prorrogado nos Estados Unidos. A última extensão,
              Copyright Term Extension Act, de 1998, ficou conhecida
              também como “Mickey Mouse Protection Act” e transfe-

              126
                  Como mostrado em Perromat, op. cit., p.448.
              127
                  Como mostrado em uma cena da parte 4 do documentário Every-
              thing Is a Remix, de Kirby Ferguson (2015). Disponível em: https://
              vimeo.com/baixacultura.
              128
                  Mais informações sobre os casos de histórias coletadas do domínio
              público que viraram animações de sucesso na Disney em: http://bai-
              xacultura.org/a-armadilha-disney.


              122



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                     riu a entrada em domínio público de uma obra para 70
                     anos após a morte do autor, 120 anos após a criação ou
                     95 anos após a publicação da obra. Esse último prazo é o
                     caso de Mickey Mouse, publicado em 1928, que estará em
                     domínio público em 2024 – a não ser que a Disney faça
                     novamente lobby para postergar essa data.

                     IV.

                     Em contestação declarada ao sistema da propriedade inte-
                     lectual ou por passarem a ser parte rotineira do processo
                     de criação, os casos de reapropriação de ideias passariam a
                     ser tão frequentes quanto quiséssemos perceber a partir dos
                     anos 1960. É nessa década que objetos tecnológicos basea-
                     dos na gravação e reprodução passam a ser comercializados
                     na maior parte do planeta e deixam de ser apenas aparatos
                     de especialistas para se tornarem cada vez mais portáteis e
                     menores, passando a estar em muitas casas de classe média
                     do mundo ocidental. Os gravadores e reprodutores de áudio
                     em fita magnética, por exemplo, passam a ser facilmente en-
                     contrados nos mercados dos grandes centros urbanos com
                     a produção e comercialização das fitas cassetes – tanto “vir-
                     gens”, que podem ser usadas para gravar, quanto de música
                     pré-gravada – a partir de 1964. Patente da Philips de 1963129,
                     o formato “compacto” da fita cassete vinha concorrer (e mais
                     adiante substituir) o Stereo 8 (cartucho, ou 8-track), criado
                     nos Estados Unidos em 1958 e ligeiramente maior que o cas-
                     sete, e popularizar o hábito de escutar e gravar música em
                     fitas no lugar das gravações de voz e ditados, como era de
                     costume com os primeiros gravadores. Seria o combustível

                     129
                           Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Cassette_tape.


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              dos gravadores portáteis que se propagam como produtos
              comerciais no final dessa década – um dos primeiros é o
              modelo Typ EL 3302, da Philips, de 1968 – com a possibili-
              dade de armazenar áudios de até trinta minutos em cada um
              de seus lados.
                 Já mais raro e caro, o sampler aparece a partir de 1969
              como um aparelho que grava e permite manipulação de
              diferentes amostras musicais, e depois como um modo de
              recortar e sobrepor músicas – o sampling. Surge a partir
              dos sintetizadores, aparelhos que, baseados no forma-
              to do piano, reúnem e tocam diferentes sons, como os
              primeiros desenvolvidos pelo engenheiro Robert Moog
              em 1964, ainda analógicos e que popularizam nomes
              como osciladores, envelopes, geradores de ruído, filtros
              e sequenciadores com controle de tensão como palavras
              (e efeitos) a serem usadas para modificação sonora. Con-
              temporâneo de Moog é o Mellotron, de 1963, vendido
              inicialmente como um teclado com acompanhamentos
              pré-gravados (em fitas magnéticas) para animar os lares
              ingleses, depois usado em diversas bandas de rock como
              The Moody Blues, Genesis, King Crinsom e The Beatles
              – é o som que abre o clássico “Strawberry Fields Forever”,
              composta por John Lennon e Paul McCartney em 1967.
              Ainda haveria o Electronic Music Studios (EMS), produ-
              zido na Inglaterra em 1969, os Minimoogs e outros antes
              do Fairlight CMI, criado pelos australianos Kim Rydie e
              Peter Vogel em 1979, principal responsável pela popula-
              rização do sampler, usado tanto na propagação da música
              eletrônica quanto no rap – um estilo musical inteiramen-
              te nascido e tendo por base a reapropriação130. O sampler

                Sobre a origem dos samplers no rap, ver o documentário Copyright
              130

              Criminals, produzido e dirigido por Benjamin Franzen e lançado em


              124



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                     tornou compor, na música pop, também a arte de combi-
                     nar sons e trechos de músicas131.
                         Também desse período, o videocassete aparece comer-
                     cialmente entre 1959 e 1963 com diversos modelos ven-
                     didos por marcas como Toshiba, Philips e Sony. Baseados
                     em mecanismo de registro e armazenamento de infor-
                     mações semelhante ao das fitas magnéticas de áudio, os
                     primeiros ainda eram aparelhos pesados, barulhentos e
                     caros, usados mais em empresas, escolas, hospitais. Mas,
                     na década de 1970, diminuiriam de tamanho e estariam
                     disponíveis no mercado para, por exemplo, serem usados
                     para a gravação caseira de programas de televisão. A par-
                     tir de 1969, com a comercialização das câmeras caseiras
                     com baterias acopladas (modelo chamado Portapak), os
                     videocassetes também passariam a exibir vídeos caseiros
                     dessas câmeras – as primeiras que usam fitas magnéticas
                     que podem ser reproduzidas nesses aparelhos são do iní-
                     cio da década de 1970.
                         As décadas de 1950, 1960 e 1970 são, de fato, as de pro-
                     pagação do uso de tecnologias de reprodução e gravação de
                     áudio e vídeo. Mas não podemos esquecer que a cópia im-
                     pressa não só permaneceu como foi também propulsiona-
                     da pelos inventos técnicos desse período. Um nome virou
                     sinônimo de uma prática: Xerox, nascida em 1948 como
                     marca registrada de copiadoras baseadas no método da ele-
                     trofotografia, prática que, em 1947, recebeu um novo nome
                     de mais fácil definição: xerografia (do grego xeros, seco, e
                     grafia, escrita). A Xerox lançou no mercado sua primeira

                     2009, disponível em: https://www.pbs.org/independentlens/copyrigh-
                     t-criminals.
                     131
                         Bastos, A cultura da reciclagem, em Rosas; Salgado, Recombinação,
                     p.10.


                                                                                     125



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              máquina de impressão em 1960, a Xerox 914, e a partir dali,
              mesmo com outras marcas e modelos de copiadoras que se
              seguiram, se tornou sinônimo de cópia e referência de uma
              prática artística – a copy art. No Brasil, ela foi rebatizada
              como xerografia e muito praticada, em proximidade com a
              arte postal (ou mail art), por artistas como o já citado Paulo
              Bruscky, Hudnilson Jr. (Rio de Janeiro) e Hugo Pontes (Mi-
              nas Gerais). Este último escreveu:
                          Talvez o mais importante aspecto da xerografia seja o de
                          ela oferecer ao artista que não tenha habilidade para o
                          desenho condições de elaborar a montagem de seus pro-
                          jetos, fundindo planos; linhas e sombras, sem qualquer
                          instrumento auxiliar que a técnica do desenho exige.
                          Através deste processo eletrônico, podemos transpor
                          para os vários graus de densidade do branco e preto
                          imagens cromáticas, reticuladas e mesmo em relevo (no
                          caso, objetos transformados em figuras), o que muito se
                          aproxima das colagens, possibilitando um retorno às ex-
                          periências dos tachistas.132
              A fita e o videocassete, o gravador de áudio e as câme-
              ras de vídeo portáteis e as fotocopiadoras trouxeram um
              aspecto até então novo para a questão da propriedade
              intelectual e da propagação da cultura livre: a reprodu-
              ção de canções, vídeos e textos para fins caseiros e não
              comerciais. Para além das cópias ditas piratas, que, como
              vimos, sempre acompanharam as reproduções legalmen-
              te permitidas, a chegada das tecnologias de gravação e re-
              produção às casas das pessoas tornou popular a cópia pri-
              vada, que não pagava direitos autorais a quem quer seja.
              Mais do que popular, hábito: gravar uma fita cassete com
              músicas escolhidas de uma ou mais rádios, por exemplo,

              132
                    Pontes, O que é arte xerox?, em Rosas; Salgado, op. cit., p.18.


              126



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                     se tornou um dos melhores presentes quando se queria
                     conquistar alguém nos anos 1980.
                        O potencial recombinante das tecnologias de gravação
                     e reprodução desenvolvidas na segunda metade do sécu-
                     lo XX criaram um problema também para a indústria que,
                     desde a propagação dos direitos autorais em meados do sé-
                     culo XIX, se erigiu baseada na propriedade intelectual. Foi
                     assim quando, em 1964, a Phillips lançou o cassete de áudio
                     e a indústria fonográfica primeiro tentou impedir o lança-
                     mento do produto e depois fez lobby no Congresso dos Es-
                     tados Unidos para que fosse criado um imposto sobre os
                     cassetes virgens para compensar as perdas da indústria re-
                     sultantes das cópias que os usuários fariam de seus LPs para
                     cassetes. O mesmo aconteceu em 1976, quando a Sony lan-
                     çou o videocassete formato Betamax e a Universal Studios e
                     os Estúdios Disney abriram um processo contra a empresa
                     acusando-a de que os produtos resultantes desses aparelhos
                     incitariam à violação dos direitos autorais133.
                        Neste último caso, uma batalha judicial que durou oito
                     anos trouxe o reconhecimento de que a pessoa que gravava
                     o último capítulo da novela no videocassete Betamax (ou
                     outros tipos que se seguiram) não praticava pirataria134. Em
                     muitas outras situações semelhantes ocorreu o mesmo: ne-
                     nhuma lei conseguiria coibir de forma eficiente o uso pri-
                     vado e comunitário das obras sem o pagamento dos direitos
                     autorais correspondentes. Não seria possível controlar a re-
                     produção caseira sem fins comerciais quando as tecnolo-
                     gias de reprodução e gravação não só permitem como têm a
                     cópia para qualquer fim, inclusive o pessoal, como método
                     básico de funcionamento.

                     133
                           Ibidem.
                     134
                           Ibidem.


                                                                            127



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                 Como máquina a unir gravação e registro de texto, áu-
              dio e imagem, o computador pessoal passaria a ser vendi-
              do e popularizado por empresas criadas no Vale do Silício
              a partir de 1975. Duas décadas depois, iria se juntar à in-
              ternet para tornarem-se, ambos, responsáveis por fazer o
              processo de criação ser ainda mais baseado na cópia, o que
              ampliaria o debate sobre propriedade intelectual, pirataria
              e cultura livre para níveis até então não conhecidos.




              128



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                          129



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                             CAPÍTULO 5
                          CULTURA LIVRE




              130



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                          Vendedores de software querem dividir
                          os usuários e conquistá-los, fazen-
                          do com que cada usuário concorde em
                          não compartilhar com os outros. Eu me
                          recuso a quebrar a solidariedade com
                          os outros usuários deste modo. Eu não
                          posso, com a consciência limpa, assi-
                          nar um termo de compromisso de não di-
                          vulgação de informações ou um contrato
                          de licença de software. Por anos eu
                          trabalhei no Laboratório de Inteligên-
                          cia Artificial do MIT para resistir a
                          estas tendências e a outras violações
                          de hospitalidades, mas eventualmente
                          elas foram longe demais: eu não po-
                          dia permanecer em uma instituição onde
                          tais coisas eram feitas a mim contra a
                          minha vontade. Portanto, de modo que
                          eu possa continuar a usar computado-
                          res sem desonra, eu decidi juntar uma
                          quantidade de software livre suficiente
                          para que eu possa continuar sem nenhum
                          software que não seja livre.

                          Richard Stallman, Manifesto GNU, 1985



                          Por um lado, estes artesãos hi-tech
                          não apenas tendem a ser bem pagos, mas
                          também possuem considerável autonomia
                          sobre seu ritmo de trabalho e local
                          de emprego. Como resultado, a frontei-
                          ra cultural entre o hippie e o “homem
                          organização” tornou-se bastante vaga.
                          Porém, por outro lado, estes traba-


                                                             131



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                          lhadores estão presos pelos termos de
                          seus contratos e não têm garantia de
                          emprego continuado. Sem o tempo livre
                          dos hippies, o trabalho em si tornou-se
                          o principal caminho de autossatisfação
                          para boa parte da “classe virtual”.

                                Richard Barbrook; Andy Cameron,
                                 A ideologia californiana, 1995


                          Governos do Mundo Industrial, vocês,
                          gigantes aborrecidos de carne e aço,
                          eu venho do espaço cibernético, o novo
                          lar da Mente. Em nome do futuro, eu
                          peço a vocês do passado que nos deixem
                          em paz. Vocês não são bem-vindos entre
                          nós. Vocês não têm a independência que
                          nos une. Estamos formando nosso pró-
                          prio Contrato Social. Essa maneira de
                          governar surgirá de acordo com as con-
                          dições do nosso mundo, não do seu. Nos-
                          so mundo é diferente. Seus conceitos
                          legais sobre propriedade, expressão,
                          identidade, movimento e contexto não
                          se aplicam a nós. Eles são baseados na
                          matéria. Não há nenhuma matéria aqui.

                             John Perry Barlow, A Declaração de
                             Independência do ciberespaço, 1996


                          Tudo fica mais fácil quando você não
                          precisa de intermediários.

                           Creative Commons, Seja criativo, 2000


              132



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                          Quando você está baixando arquivos MP3,
                          você também está baixando o comunismo.

                          Record Industry Association of Ameri-
                          ca, Campanha antipirataria, anos 2000


                          A open source e o copyleft se estendem
                          atualmente muito além da programação de
                          software: as “licenças abertas” estão
                          em toda parte, e tendencialmente podem
                          se converter no paradigma do novo modo
                          de produção que liberte finalmente a co-
                          operação social (já existente e visi-
                          velmente posta em prática) do controle
                          parasitário, da expropriação e da “ren-
                          da” em benefício de grandes potentados
                          industriais e corporativos.

                            Wu Ming, Copyright e maremoto, 2002


                          A ideia é que o copyright significa “all
                          rights reserved” e o Creative Commons
                          significa “some rights reserved”. E você
                          diz quais são eles. Existem várias fór-
                          mulas, vários tipos de licenças aber-
                          tas. Trata-se de tentar criar um modo
                          de coabitação no plano da informação
                          que seja tolerável, e que evite o que
                          está acontecendo, que é o controle da
                          informação pelas grandes companhias.
                          Agora isso tudo ainda é, de certa for-
                          ma, um paliativo. O Creative Commons
                          pode ser visto, como o é efetivamente



                                                              133



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                          pelos mais, digamos, radicais, como um
                          estratagema capitalista. O verdadeiro
                          anarquista não quer saber de Creati-
                          ve Commons nem de copyleft, é total-
                          mente radical. A princípio estou com
                          eles, acho a propriedade privada uma
                          monstruosidade, seja ela intelectual
                          ou não, mas sei também que não adian-
                          ta dar murro em ponta de faca, tapar
                          o sol com a peneira. Acho que você tem
                          que transigir, tem que fazer algum tipo
                          de negociação.

                             Eduardo Viveiros de Castro, Econo-
                           mia da cultura digital, em Savazoni;
                                 Cohn, Cultura digital.br, 2009




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                     I.

                     “A impressora está emperrada novamente!”

                        Richard M. Stallman, programador de software no labo-
                     ratório de Inteligência Artificial do Massachusetts Institute
                     of Technology (MIT), na Costa Leste dos Estados Unidos,
                     conta que descobriu o problema uma hora depois de en-
                     viar de seu computador um arquivo de cinquenta páginas
                     para impressão e perceber que a máquina havia posto tinta
                     em quatro páginas de um outro trabalho que não o dele.
                     Não era bem uma novidade, já que havia tido outra situa-
                     ção parecida, a qual o recém-formado físico por Harvard
                     havia usado suas habilidades de programação de softwares
                     para contornar, criando uma pequena alteração no código
                     do programa da impressora que permitia avisar, a distância,
                     quando ela estava emperrada, a partir da frase “The prin-
                     ter is jammed, please fix it”135. Mas dessa vez a impressora

                     135
                        Em tradução livre, “A impressora está emperrada, por favor conser-
                     te-a”. Essa história é contada aqui a partir do Capítulo 1, “For Want a
                     Printer”, de Free as in Freedom: Richard Stallman and the Free Software


                                                                                      135



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              era nova, um dos últimos lançamentos da Xerox (modelo
              9700), que imprimia trezentos pontos por polegada em pa-
              pel de folha solta a uma velocidade de até duas páginas por
              segundo (pps), em um ou dois lados, formato paisagem ou
              retrato. Foi doada ao laboratório em modo de teste, hábito
              da empresa e de outras baseadas em aparatos tecnológicos
              para lugares onde hackers normalmente se reuniam – se eles
              conseguissem hackear, muitas vezes eram chamados para
              trabalhar nessas empresas. Nos anos 1960 e 1970, o MIT foi
              um dos primeiros lugares onde essa comunidade de pro-
              gramadores de software e hardware defensores da ideia de
              que “toda informação deve ser livre”, que remete a Thomas
              Jefferson, ao marquês de Condorcet e ao nascimento do li-
              beralismo, se reuniam para inventar e compartilhar códigos
              para os computadores cada vez mais potentes e menores
              que habitavam os centros de pesquisa. Entre uma pizza de
              madrugada e um interesse nerd e diletante que aprofunda-
              va qualquer assunto aparentemente banal, como o formato
              de uma cenoura, ou um tanto complexo, como formas de
              fazer ligações telefônicas de graça, buscavam criar soluções
              criativas para problemas complexos. Em suma: hackeavam.
                  Quando Stallman percebeu o problema na nova im-
              pressora da Xerox, pensou em aplicar a correção antiga e
              hackeá-la novamente. No entanto, ao procurar o software
              da máquina da Xerox que lhe permitiria corrigir ou modi-
              ficar a impressora, ele descobriu que a empresa não havia
              enviado, como era costume até então, um software de cor-
              tesia para que os programadores pudessem ler o código,
              mas apenas um arquivo quase infinito de 0 e 1 chamado
              binário. Ele até poderia converter os 0 e 1 em instruções


              Revolution, biografia de Richard Stallman escrita por Sam Williams.


              136



aculturaelivre.indd 136                                                             05/02/21 18:25
                     para máquinas de baixo nível com programas chamados
                     disassemblers e, então, tentar fazer rodar na carne da im-
                     pressora, mas seria uma tarefa lenta e difícil, que poderia
                     ocasionar anos em impressões congestionadas e aborreci-
                     mentos diversos.
                        O que Stallman fez, então, foi ir atrás do programa. Des-
                     cobriu que outro programador, na Universidade Carnegie
                     Mellon, também na Costa Leste dos Estados Unidos, ti-
                     nha o software. Ao visitá-lo com o crachá “pesquisador do
                     MIT”, conversou de modo cordial também com outros en-
                     genheiros envolvidos na produção da Xerox e fez o pedido
                     de acesso ao código do software da impressora. Foi então
                     informado que o código era uma novidade considerada de
                     vanguarda, portanto devia permanecer secreto e não ser
                     compartilhado. Stallman saiu da universidade sem falar
                     nada, com raiva e sem a cópia, com a sensação de que o que
                     era antes livre e compartilhável estava, no final da década
                     de 1970, se tornando confidencial. Não por alguma censura
                     legal do governo, mas por interesses de mercado; até então
                     não existia acordo de confidencialidade (em inglês, nondis-
                     closure agreement, NDA) na indústria de software, o que fa-
                     zia com que todo software fosse livre, com seu código-fonte
                     disponível para qualquer um que o quisesse ler e modificar.
                        Um software de computador – ou de uma impressora –
                     funciona como um conjunto de instruções para que a má-
                     quina execute funções. É escrito em uma linguagem que
                     esses inventos técnicos saibam ler e processar; quanto mais
                     na carne, mais de baixo nível é a linguagem; quanto mais
                     próximo da interface com o humano com mais de alto ní-
                     vel. Um conjunto finito de procedimentos a serem exe-
                     cutados por uma máquina é chamado de algoritmo, uma
                     palavra árabe ( ‫ ) لخوارزمية‬latinizada no contexto da mate-



                                                                            137



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              mática ainda no século VIII, mas que teve sua primeira
              utilização destinada a um computador feita pela condessa
              Ada Lovelace136 para a máquina analítica de Charles Bab-
              bage – um gigantesco aparato basicamente para resolver
              logaritmos e funções trigonométricas – no final do século
              XIX. Como tudo que é baseado em instruções, as presen-
              tes em um algoritmo funcionam a partir da circulação de
              informações, nesse caso entre máquina e humanos media-
              dos pela linguagem; não ter acesso ao código que rege a
              circulação de informações entre esses polos é não saber o
              que está sendo trocado, portanto também não saber como
              um procedimento está sendo executado, não ter condi-
              ções de modificá-lo, seja para reparar um bug ou propor
              uma melhoria, e, por fim, não poder passá-lo para outros
              – que, sem ter a chave para abrir a caixa-preta do algorit-
              mo, pouco podem fazer com ele.
                 Assim como um bem cultural, um software tem em sua
              gênese o compartilhamento de informação e a recombi-
              nação de ideias. Quando Stallman, no final da década de
              1970, percebe que as informações de um software passam
              a ser fechadas por motivos de confidencialidade, e só se-

              136
                  A inglesa Augusta Ada King, condessa de Lovelace (1815-1852),
              filha do poeta conhecido como Lord Byron (com quem pouco con-
              viveu até os seus oito anos, quando Byron morreu), foi a primeira a
              reconhecer que a máquina analítica de Babbage possuía aplicações
              além do cálculo e, então, publicou o primeiro algoritmo, em 1843,
              destinado a ser executado por essa máquina. Como resultado, ela é
              considerada uma das primeiras programadoras. É, também, uma das
              raras mulheres na história das tecnologias que teve sua história conta-
              da, entre muitas outras que, tendo papéis importantes, foram apaga-
              das das narrativas que hoje são as mais adotadas na documentação da
              história da tecnologia. Sobre Ada Lovelace, ver: https://en.wikipedia.
              org/wiki/Ada_Lovelace.


              138



aculturaelivre.indd 138                                                                 05/02/21 18:25
                     rem acessíveis mediante pagamento, acontece um movi-
                     mento em alguns aspectos semelhante ao que ocorreu na
                     consolidação do copyright e do direito de autor na Europa
                     do século XVIII: o fechamento privado do que antes era
                     comum e de livre acesso. Como passa a ter cada vez mais
                     valor em sua circulação no mercado capitalista, o software
                     passa a ter um proprietário; seu código, agora fechado, é a
                     chave do valor do produto, o segredo mais bem guardado
                     que determina sua exclusividade.
                        Ao contrário, porém, de um bem cultural, um software
                     é um conjunto de instruções para uma máquina. Como
                     vamos nos comunicar com uma máquina se não conhece-
                     mos seu código e sua linguagem? Não vamos. Ou melhor,
                     quem vai deter a exclusividade de se comunicar será quem
                     detém a propriedade do código de software. Um problema
                     de comunicação é resolvido com a garantia de privilégio
                     do emissor: só quem produziu, a partir de informações
                     comuns, tem esse direito. A partir do caso da Xerox 9700,
                     Stallman é instado a questionar: mas o direito de acesso,
                     uso e reuso das informações necessárias para um aparato
                     técnico funcionar não são também importantes? Para ele,
                     recusar-se a oferecer o código-fonte do software não era
                     apenas a descontinuidade de uma regra estabelecida des-
                     de o final da Segunda Guerra Mundial, quando, a partir de
                     Alan Turing e outros, os softwares começaram a ser im-
                     portantes, mas uma violação da Regra de Ouro, o ditado
                     moral básico que dizia “faça aos outros o que você gostaria
                     que fizessem a você”137.
                        De sua insatisfação pessoal e desejo de buscar manter as
                     informações abertas e livres, Stallman estabelece, no final


                     137
                           Williams, Free as in Freedom, p.11.


                                                                           139



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              da década de 1970, a ideia do software livre como um pro-
              grama de computador que daria liberdade ao seu usuário,
              tal qual nos primeiros anos dos softwares de computador,
              (0) de executar o programa, para qualquer propósito; (1)
              de estudar o programa e adaptá-lo para as suas necessida-
              des; (2) de redistribuir cópias do programa; (3) de modificar
              (aperfeiçoar) o programa e distribuir essas modificações138.
              De modo sorrateiro mas imprescindível, o software livre
              se espalharia junto com a internet e a popularização dos
              computadores nos anos 1980 e 1990 e seria levado a outras
              áreas, como a cultura, na qual encontraria terreno fértil
              para se expandir. A partir do software livre se estabelece
              o copyleft, nos anos 1980, que depois vai fazer a cultura
              livre se propagar nos primeiros anos da internet comercial
              como uma ideia, um movimento de pessoas e uma práti-
              ca aliada ao compartilhamento de todo tipo de arquivo
              na internet (o download), a livre recombinação de ideias
              para criação de bens culturais e um desafio às mudanças
              na legislação do direito autoral a partir das transforma-
              ções ocasionadas pela internet.
                  A ascensão do streaming e a popularização das redes
              sociais na internet, já no final dos anos 2000, tornam as di-
              ferenças significativas que caracterizam um software e um
              bem cultural, como um livro ou uma música, mais visíveis
              do que nos primeiros anos da internet. Por trás da tecno-
              logia e do livre compartilhamento há a energia – a ener-
              gia viva139 de um trabalho imaterial a que em muitos casos

              138
                  Em sua definição primeira, em inglês, no site da Free Software
              Foundation, disponível em: https://www.gnu.org/philosophy/free-
              -sw.html.
              139
                  Pasquinelli, A ideologia da cultura livre e a gramática da sabota-
              gem, em Belisário; Tarim (orgs.). Copyflight, p.52.


              140



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                     a cultura livre da internet não atentou. “O abuso precede
                     o uso”, diz o francês Michel Serres140, uma boa frase para
                     explicar o sentimento de ressaca que a internet pós-2016
                     trouxe a todos que nos embriagamos com a “liberação do
                     polo emissor da informação” dos primeiros anos da rede
                     e não conseguimos atentar para alternativas econômicas e
                     políticas da construção de uma rede que, nos anos finais da
                     década de 2010, ajudou a espalhar uma revanche fascista
                     formada por iniciativas políticas de colonização da rede e
                     propagação de ódio presente em vários cantos do planeta.

                     II.

                     Em 27 de setembro de 1983, Stallman enviou um e-mail
                     pela então Arpanet, rede precursora da internet, que liga-
                     va principalmente centros de pesquisa em universidades
                     dos Estados Unidos:
                               A partir do próximo Dia de Ação de Graças, vou escrever
                               um software completo compatível com Unix chamado
                               GNU (sigla para Gnu Não é Unix), e o compartilharei
                               livremente com qualquer um que possa usá-lo. […] Eu
                               considero que a regra de ouro requer que se eu gosto de
                               um programa eu tenho que compartilhá-lo com outras
                               pessoas que gostam dele. Eu não posso, em boa consci-
                               ência, assinar um acordo de não quebra ou um acordo de
                               licença de software. Então, para que eu possa continuar
                               a usar computadores sem violar meus princípios, eu de-
                               cidi reunir um corpo suficiente de software livre de tal
                               modo que eu esteja apto a passar sem o uso de qualquer
                               software que não seja livre.141

                     140
                           Ibidem.
                     141
                           Trecho de Initial Announcement. A história do Projeto GNU difere


                                                                                      141



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              O e-mail encerrava com a assinatura que Stallman costu-
              mava usar na Arpanet (RMS) e a caixa postal para comu-
              nicação, em Cambridge. Seria o passo inicial do Projeto
              GNU, iniciativa que inaugura a ideia de um software que,
              na contramão dos cada vez mais fechados softwares lan-
              çados no início dos anos 1980, seria livre para diferentes
              tipos de uso e modificação, com seu código disponível
              para qualquer um acessar. Era um projeto em que o pro-
              gramador vinha trabalhando fazia alguns anos, inspirado
              por uma ética hacker que o influenciara no MIT, baseada
              no acesso e no compartilhamento total de informação e
              na colaboração em vez da competição. E que tinha por
              princípios: 1) o acesso a computadores – e qualquer outro
              meio que seja capaz de ensinar algo sobre como o mundo
              funciona – deve ser ilimitado e total; 2) toda informação
              deve ser livre; 3) não acredite na autoridade e promova
              a descentralização; 4) hackers devem ser julgados segun-
              do seu hacking, e não segundo critérios sujeitos a vieses
              tais como graus acadêmicos, raça, cor, religião, posição
              ou idade; 5) você pode criar arte e beleza no computador;
              6) computadores podem mudar sua vida para melhor142.

              desse plano inicial – o começo, por exemplo, foi adiado até janeiro
              de 1984. Muitos dos conceitos filosóficos de software livre não foram
              detalhados até alguns anos depois, como afirma o texto que contex-
              tualiza o manifesto, disponível, assim como o manifesto, também em
              português no site oficial do projeto, disponível em: https://www.gnu.
              org/gnu/initial-announcement.pt-br.html.
              142
                  Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89tica_hacker. Exis-
              tem muitas definições de “hacker”; uma das mais precisas vem de
              Gabriella Coleman em Coding Freedom: The Ethics and Aesthetics of
              Hacking, livro produzido a partir de uma etnografia em comunidades
              de hackers, que assim os apresenta: “Obcecados por computador mo-
              vidos por uma paixão curiosa por mexer e aprender sistemas técnicos,


              142



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                     Presente como um modus operandi nas comunidades de
                     programadores dos anos 1960 e 1970 na qual Stallman se
                     criou, essa ética hacker começava, segundo ele, a mudar
                     com a ida de muitos membros para empresas privadas de
                     tecnologia, que começavam a surgir aos montes no final
                     da década de 1970 e início de 1980 para comercializar
                     computadores pessoais, softwares e hardwares diversos.
                        A debandada da comunidade hacker no laboratório
                     onde Stallman trabalhava143 representava bem esse movi-
                     mento: no início de 1980, boa parte dos integrantes do AI
                     Lab (Laboratório de Inteligência Artificial) foram contra-
                     tados pela empresa Symbolics, criada por Russ Noftsker,
                     um integrante do laboratório que liderava o grupo que
                     estava abandonando alguns princípios hackers, como
                     deixar aberto e compartilhar o código-fonte, para comer-
                     cializar seus produtos. A disputa de Noftsker era, espe-
                     cialmente, contra o grupo liderado por Richard Green-
                     blatt, também do MIT, que havia criado em 1979 o projeto
                     LISP Machine, uma empresa que produzia computadores
                     baseados na linguagem de inteligência artificial LISP e
                     que buscava permanecer fiel ao espírito hacker, sem abrir

                     e frequentemente comprometidos com uma versão ética da liberda-
                     de de informação” (tradução livre com base no original: “computer
                     aficionados driven by an inquisitive passion for tinkering and learning
                     technical systems, and frequently committed to an ethical version of
                     information freedom”). Para uma abordagem da ética hacker como
                     contraponto à ética protestante, ver Himanen, La ética del hacker y el
                     espírito de la era de la información.
                     143
                         Stallman dá mais detalhes dessas mudanças em “The Project GNU”,
                     um dos textos presentes na coletânea publicada como Free Software,
                     Free Society em 2002, pela GNU Press. A citada aqui é a versão em
                     espanhol, Stallman, Software libre para una sociedad libre, publicada
                     pela espanhola Traficante de Sueños em 2004.


                                                                                      143



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              mão do código aberto. Greenblatt acreditava que os re-
              cursos provenientes da construção e venda de algumas
              máquinas poderiam ser reinvestidos no financiamen-
              to da empresa, ao passo que Noftsker apostava em um
              caminho, tradicional no capitalismo e tornado regra no
              mundo das startups de tecnologia a partir de então, de
              procurar investidores e apoio em fundos de investimento.
              A opção de Noftsker angariou mais pessoas, resultando
              na criação da Symbolics e na saída de muitos integrantes
              do AI Lab, uma história que Steven Levy conta em seu
              livro Hackers: Heroes of the Computer Revolution, no qual
              nomeou Stallman, que na disputa ficou ao lado de Green-
              blatt, como “O último dos verdadeiros hackers”, também
              título do capítulo que detalha o caso.
                  A proposta de Stallman para o Projeto GNU era dar
              aos usuários a liberdade que o Unix, sistema operacional
              robusto e o mais usado no período, criado ainda em 1969,
              não dava. Para isso, aproveitou as possibilidades que o
              Unix ainda permitia à época, como o acesso a seu códi-
              go-fonte, e começou a construir seu próprio sistema ope-
              racional, que teria de ser compatível com o mais usado
              (o Unix) à época, mas, diferente deste, deveria ser “100%
              software livre”. Não 95% livre, não 99,5%, mas 100% –
              “para que os usuários sejam livres para redistribuir todo
              o sistema, e livres para alterar e contribuir com qualquer
              parte”144. Daí o nome ser um acrônimo que homenageia
              o Unix, mas, ao mesmo tempo, se diferencia: Gnu is not
              Unix. Naquele momento, Stallman já havia criado um de
              seus trabalhos mais conhecidos, um software editor de

              144
                 Stallman, em um texto em celebração aos quinze anos do GNU.
              Disponível em: https://www.gnu.org/philosophy/15-years-of-free-
              -software.html.


              144



aculturaelivre.indd 144                                                         05/02/21 18:25
                     textos chamado Emacs (abreviação para “edição de ma-
                     cros”), que apresentava uma amostra do que faria mais
                     tarde com o Projeto GNU e que “foi livremente compar-
                     tilhado com quem aceitasse uma única condição imposta:
                     todas as modificações e melhorias feitas pelos usuários no
                     software deveriam ser também compartilhadas”145.
                         No início de 1984, meses depois da anunciar a criação do
                     Projeto GNU, sem mais o ambiente fértil e colaborativo em
                     que convivera durante muitos anos, Stallman saiu do MIT
                     e passou a se dedicar integralmente ao desenvolvimento de
                     seu sistema operacional. Para ele, sair do instituto era im-
                     prescindível se quisesse que nada interferisse na distribuição
                     do GNU como software livre: “O MIT poderia ter se apro-
                     priado do meu trabalho e imposto seus próprios termos de
                     distribuição, ou inclusive converter o trabalho em um pa-
                     cote de software proprietário”146. No mesmo ano, deu início
                     ao desenvolvimento do Emacs para o GNU, o GNU Macs, o
                     primeiro programa do novo sistema operacional, ao qual se
                     seguiriam diversos outros nos anos seguintes, como compi-
                     ladores de código com diversas linguagens de programação
                     (GCC), “debugadores” (GNU Debugger), entre outros.
                         Em outubro de 1985, Stallman funda a Free Software
                     Foundation (FSF), fundação sem fins lucrativos que até
                     hoje é responsável pelo projeto GNU. Nesse mesmo ano,
                     publica o GNU Manifesto, em que apresenta as ideias re-
                     lacionadas ao seu projeto e chama programadores para
                     ajudá-lo no desenvolvimento do sistema. Com frases do
                     primeiro anúncio de dois anos antes e com constantes

                     145
                         Em Torres, A tecnoutopia do software livre:. uma história do projeto
                     técnico e político do GNU, p.128.
                     146
                         Stallman, Software libre para una sociedad libreFree Software, Free
                     Society, p.250-1.


                                                                                       145



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              modificações até 1987, é até hoje um documento central
              na filosofia do software livre. Alguns trechos:
                          Vendedores de software querem dividir os usuários e
                          conquistá-los, fazendo com que cada usuário concor-
                          de em não compartilhar com os outros. Eu me recuso
                          a quebrar a solidariedade com os outros usuários deste
                          modo. Eu não posso, com a consciência limpa, assinar
                          um termo de compromisso de não divulgação de infor-
                          mações ou um contrato de licença de software. Por anos
                          eu trabalhei no Laboratório de Inteligência Artificial do
                          MIT para resistir a estas tendências e outras violações de
                          hospitalidades, mas eventualmente elas foram longe de-
                          mais: eu não podia permanecer em uma instituição onde
                          tais coisas eram feitas a mim contra a minha vontade.
                          Portanto, de modo que eu possa continuar a usar com-
                          putadores sem desonra, eu decidi juntar uma quantidade
                          de software livre suficiente para que eu possa continuar
                          sem nenhum software que não seja livre. [...]

                          Muitos programadores estão descontentes quanto à co-
                          mercialização de software de sistema. Ela pode trazê-los
                          dinheiro, mas ela requer que eles se considerem em con-
                          flito com outros programadores de maneira geral em vez
                          de considerá-los como camaradas. O ato fundamental da
                          amizade entre programadores é o compartilhamento de
                          programas; acordos comerciais usados hoje em dia tipi-
                          camente proíbem programadores de se tratarem uns aos
                          outros como amigos. O comprador de software tem que
                          escolher entre a amizade ou obedecer à lei. Naturalmen-
                          te, muitos decidem que a amizade é mais importante.
                          Mas aqueles que acreditam na lei frequentemente não
                          se sentem à vontade com nenhuma das escolhas. Eles se
                          tornam cínicos e passam a considerar que a programa-
                          ção é apenas uma maneira de ganhar dinheiro.
                          […]


              146



aculturaelivre.indd 146                                                                05/02/21 18:25
                           Uma vez que o GNU esteja pronto, todos poderão ob-
                           ter um bom software de sistema, gratuitamente como o
                           ar. Isto significa muito mais do que simplesmente o valor
                           que todos economizarão em uma licença do Unix. Isto
                           significa que muita duplicação de programação de sis-
                           temas será evitada. Este esforço poderá ser utilizado em
                           avançar o estado-da-arte. O código-fonte completo do
                           sistema estará disponível para todos. Como resultado,
                           um usuário que necessite de modificações no sistema será
                           sempre livre para realizá-las ele mesmo, ou para contratar
                           qualquer programador disponível ou empresa para reali-
                           zá-las. Os usuários não estarão mais à mercê do progra-
                           mador ou empresa que é dono dos fontes e é o único que
                           pode realizar mudanças.147
                     O processo do desenvolvimento do GNU a partir de 1985
                     trouxe diversos aprendizados para Stallman. O principal
                     deles é o fato de que não bastava criar um projeto que tives-
                     se como princípio a liberdade e o livre uso e compartilha-
                     mento se não houvesse alguma forma de proteger e garantir
                     essa liberdade também de forma jurídica. Assim, em 1989,
                     foi publicada a General Public License (GPL), uma licença
                     genérica que cobria todos os códigos do projeto GNU e
                     que visava estabelecer liberdades de uso que o copyright
                     em voga nos Estados Unidos não permitia. Stallman pre-
                     cisava “garantir aos usuários do GNU os direitos básicos
                     de acesso, cópia, modificação e redistribuição dos progra-
                     mas e para isso era preciso restringir as restrições a esses
                     direitos. Ele então estabeleceu, com a ajuda do copyright,
                     um sistema que permitia a todos o direito da acessarem
                     os seus programas e a ninguém o direito de restringir esse


                       Stallman, O Manifesto GNU. Disponível em: https://www.gnu.org/
                     147

                     gnu/manifesto.pt-br.html.


                                                                                147



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              acesso”148. Registrou o copyright do programa para, então,
              liberá-lo, criando um tipo de processo contagioso em que
              todos os usos só são possíveis se transferidos a outros. Ga-
              rantia, assim, que ninguém se apropriasse do software.
                  No texto original da GPL, constam as liberdades que
              caracterizariam, a partir de então, o que é um software
              livre, e também a justificativa para usar o sistema de
              copyright para protegê-lo dele próprio:
                          Para proteger os seus direitos, nós precisamos fazer res-
                          trições que proíbem a qualquer um negar a você esses
                          direitos ou pedir a você que abdique deles. Essas res-
                          trições traduzem-se em certas responsabilidades para
                          você se você distribuir cópias do software, ou se você
                          modificá-lo. Por exemplo, se você distribuir cópias de
                          um programa, grátis ou por uma taxa, você deve dar aos
                          recebedores todos os direitos que você tem. Você deve
                          garantir que eles também recebam ou possam conseguir
                          o código-fonte. E você deve dizer a ele os seus direitos.149
              O hack no sistema jurídico para garantir as liberdades
              do software livre que deu origem à GPL ganhou o nome
              de copyleft. Foi um trocadilho com a palavra copyright
              proposto, segundo conta Stallman150, por seu amigo Don
              Hopkins em uma carta enviada a ele em 1984 (ou 1985),
              na qual Hopkins escrevia a seguinte frase ao final da men-
              sagem: “Copyleft – all rights reversed” (Copyleft – todos os
              direitos invertidos), numa clara relação às notificações de
              copyright que incluíam a frase “All rights reserved” (Todos

              148
                  Torres, op. cit., p.133.
              149
                  Licença Pública Geral GNU, disponível em: https://www.gnu.org/
              licenses/licenses.pt-br.html.
              150
                   Stallman, Free Software, Free Society; Gay, op. cit.; Stallman,
              Software libre para una sociedad libre, p.293.


              148



aculturaelivre.indd 148                                                                  05/02/21 18:25
                     os direitos reservados). Ao longo dos anos, diversas possi-
                     bilidades de interpretação do trocadilho para além desta
                     inicial foram criadas, entre elas de que copyleft seria “cópia
                     de esquerda” em paralelo ao copyright, “cópia de direita”.
                         Com trocadilho ou de forma literal, o copyleft foi o
                     conceito, expresso na licença GPL e outras ligadas ao Pro-
                     jeto GNU que a seguem até hoje, de requerer a posse legal
                     para, na prática, renunciar a esta ao autorizar que todos
                     façam o uso que desejarem da obra, desde que transmi-
                     tam suas mesmas liberdades a outros. A exigência formal
                     da posse significa que nenhuma outra pessoa poderá co-
                     locar um copyright em cima de uma obra copyleft e ten-
                     tar limitar o seu uso. Stallman já afirmou que seu objetivo
                     inicial foi idealista: difundir a liberdade e a cooperação,
                     promovendo o software livre, e substituir o software pro-
                     prietário que proíbe a colaboração. Sua tentativa foi a de
                     buscar conciliar a manutenção da liberdade de uso e mo-
                     dificação do software com uma proteção para que ela não
                     fosse apropriada livremente por qualquer um. Como ele
                     mesmo afirmou:
                               A maneira mais fácil de liberar um programa é colocá-lo
                               em domínio público, sem direitos autorais. Isso permi-
                               te que as pessoas compartilhem o programa e suas me-
                               lhorias, se desejarem. Mas também permite que aqueles
                               que não acreditam em cooperação convertam o pro-
                               grama em software proprietário. Eles podem fazer al-
                               terações, muitas ou poucas, e distribuir seus resultados
                               como um produto proprietário. As pessoas que recebem
                               o programa com essas modificações não desfrutam da
                               liberdade que o autor original lhes deu; o intermediário
                               despojou-as dela.151

                     151
                           Stallman, Software libre para una sociedad libre, p.125.


                                                                                      149



aculturaelivre.indd 149                                                                     05/02/21 18:25
              A partir da GPL e do copyleft, foi construído um aparato
              legal que, nos anos seguintes, se provaria uma ideia pos-
              sível de ser posta em prática não apenas no universo da
              computação, mas também em outras áreas do conheci-
              mento e da cultura, aglutinando vários outros grupos em
              torno de um desejo antigo exposto na sociedade de demo-
              cratização dos bens culturais152. Tornar o direito do acesso
              maior que o direito de restrição foi algo que, até então,
              costumava se manifestar de diversas formas: na negação
              da propriedade intelectual, nas práticas anticopyright que
              criticavam a posição de ver os bens culturais como so-
              mente mercadorias, no uso indiscriminado de trechos de
              outras obras sem efetuar pagamento ou mesmo sem reco-
              nhecimento de fonte (como nos diferentes usos de plágio
              criativo) e na recusa da autoria a partir do anonimato ou
              de identificação coletiva. A ideia de usar o próprio sistema
              de propriedade intelectual para burlá-lo se mostrou como
              uma novidade que, com a popularização da internet, logo
              se espalharia para diversos lugares e áreas muito distantes
              da sua origem.

              III.

              No final dos anos 1990, o copyleft se alastra de pelo menos
              duas diferentes formas. A primeira como uma ideia e uma
              prática de enfrentamento ao status quo do direito autoral e
              do conhecimento tido como mercadoria, caminho adota-
              do por movimentos ativistas de áreas como meio ambiente
              e direitos humanos; anarquistas, autonomistas e integran-
              tes de iniciativas ligadas a uma esquerda antineoliberalis-

              152
                    Torres, op. cit., p.131.


              150



aculturaelivre.indd 150                                                      05/02/21 18:25
                     mo; e artistas alinhados a uma contracultura de questiona-
                     mento da autoridade em diversas áreas, como muitos dos
                     citados no capítulo anterior. O segundo caminho de pro-
                     pagação do copyleft se dá como um discurso aglutinador
                     de práticas em prol da defesa da liberdade de informação e
                     acesso a partir da digitalização e da internet, caso de mui-
                     tos hackers ligados ao software livre e ao código aberto e
                     de ciberativistas que, nessa época, se propagam para áreas
                     como o compartilhamento livre de arquivos na rede e a de-
                     fesa de uma mídia livre que busque perspectivas diferentes
                     do jornalismo das grandes redes.
                         Em alguns casos, as duas formas se misturam, como ve-
                     remos mais adiante. Mas, em primeiro lugar, é importante
                     dizer como, dez anos depois da criação da GPL, em 1999 o
                     copyleft se torna inspiração principal para a criação de um
                     movimento em torno de uma cultura livre (free culture), so-
                     bretudo a partir dos Estados Unidos e da Europa. Projetos
                     que surgem nessa época, como o Science Commons, Open
                     Acess e Open Educational Resources (OER) – no Brasil,
                     traduzido por Recursos Educacionais Abertos (REA)153 –,
                     vão propagar o livre acesso, uso e compartilhamento de
                     recursos em diferentes áreas da mesma forma que a esta-
                     belecida a partir das liberdades do software livre propostas
                     por Stallman. Em uma sociedade onde informação, código
                     e lei passam a formar uma trindade cada vez mais pode-
                     rosa, ideias como a liberdade, os commons e a abertura se
                     desenvolvem como chaves em um movimento de cultura
                     livre que visa dar alternativas ao progressivo cerceamento
                     e controle da cultura à época154.

                     153
                         Mais informações sobre Recursos Educacionais Abertos em: https://
                     pt.wikipedia.org/wiki/Recursos_educacionais_abertos.
                     154
                         Mansoux, Livre como queijo: confusão artística acerca da abertura,


                                                                                     151



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                  Artistas ligados à contracultura e à liberdade do conhe-
              cimento passam a olhar para a ideia do copyleft e vê-la
              como tática, se apropriando dela e a desenvolvendo para
              fins diversos, inclusive jurídicos. É o caso do surgimen-
              to da primeira licença livre fora do âmbito do software,
              a Licença de Arte Livre155, criada no início de 2000 por
              um grupo de artistas franceses no fórum on-line chama-
              do Ataque Copyleft. Publicada em julho de 2000, ela se
              baseia nos mesmos princípios do copyleft original e surge
              pelo desejo de desencadear processos criativos, e não por
              questões ligadas aos direitos autorais ou ao uso de apli-
              cativos156. Na visão dos que propuseram a licença, o soft-
              ware livre abriu o caminho real para a expansão de técni-
              cas criativas a partir das mídias digitais, e a arte livre (a
              licença) ajudaria a evitar a apropriação exclusiva da arte
              livre (como prática): “Se fixarmos o copyleft como um
              princípio orientador, a Arte Livre se conecta com o que
              a arte sempre foi, desde tempos remotos, mesmo antes de
              reconhecerem que ela possui uma história: uma elabora-
              ção da mente, em revolta contra uma cultura que gostaria
              de dominá-la e entendê-la”157.
                  De tradição anticopyright e de nomes coletivos dos
              anos 1980 e 1990, o coletivo italiano Wu Ming mostra-
              ria identificação com o copyleft ao usá-lo como bastião
              para a sua defesa contra a propriedade intelectual. Os pri-
              meiros textos e entrevistas do coletivo a jornalistas que
              mencionam a questão datam de 2002 e 2003; em especial,

              em Belisário; Tarim (orgs.), Copyfight, p.195.
              155
                  Disponível em: http://artlibre.org/licence/lal/pt.
              156
                  Moreau, Sobre arte livre e cultura livre, em Belisário; Tarim, op.
              cit., p.159.
              157
                  Ibidem, p.162.


              152



aculturaelivre.indd 152                                                                05/02/21 18:25
                     Copyright e maremoto158, texto publicado por um dos in-
                     tegrantes do coletivo (Wu Ming 1), busca defender a open
                     source e o copyleft como estratégias que se aliam ao livre
                     compartilhamento contra a privatização da cultura – e
                     que poderiam superar a legislação de propriedade intelec-
                     tual da época. A força do copyleft derivaria do fato de ser
                     uma inovação jurídica vinda de baixo que supera a mera
                     “pirataria”, enfatizando a pars construens159 do movimen-
                     to real160.
                            A open source e o copyleft se estendem atualmente mui-
                            to além da programação de software: as “licenças aber-
                            tas” estão em toda parte, e tendencialmente podem se
                            converter no paradigma do novo modo de produção que
                            liberte finalmente a cooperação social (já existente e vi-
                            sivelmente posta em prática) do controle parasitário, da
                            expropriação e da “renda” em benefício de grandes po-
                            tentados industriais e corporativos.161
                     Em 2005, o texto Notas inéditas sobre copyright e copyleft
                     atualiza o tema e aponta o copyleft não como um movi-
                     mento ou ideologia, mas um termo que “abriga uma série
                     de práticas, cenários e licenças comerciais e que encarna
                     o que se precisa para reformar e adaptar as leis autorais ao
                     ‘desenvolvimento sustentável’”162.


                     158
                         Wu Ming, Copyright e maremoto.
                     159
                         Pars construens é uma expressão que designa um “argumento cons-
                     trutivo” em algum debate, em contraponto a “pars destruens”“. A dis-
                     tinção foi feita por Francis Bacon, ainda em 1620. Nota do texto de
                     Wu Ming, Copyright e maremoto.
                     160
                         Ibidem.
                     161
                         Ibidem.
                     162
                         Wu Ming, Notas inéditas sobre copyright e copyleft, em La Remezcla.


                                                                                      153



aculturaelivre.indd 153                                                                        05/02/21 18:25
                  Também no início dos 2000, uma parte do ativismo di-
              gital e da academia jurídica passa a observar a movimen-
              tação em torno da cultura livre e unir-se em oposição ao
              cada vez maior endurecimento de leis de direito autoral,
              principalmente nos Estados Unidos, lugar de origem dos
              primeiros computadores pessoais, dos softwares para es-
              ses computadores e de outros inventos tecnológicos rea-
              lizados no Vale do Silício. Algumas dessas atualizações na
              lei foram o Digital Millennium Copyright Act (DMCA) e o
              Sonny Bono Copyright Act (também conhecido como o já
              citado Mickey Mouse Protection Act) – nesse mesmo ano,
              o Brasil aprovou sua última lei de direitos autorais, que,
              ainda vigente até a publicação deste livro, ampliou de 60
              para 70 anos o prazo de proteção de direitos de autor após
              sua morte163.
                  Um dos principais atores do ativismo e do direito que
              passa a se organizar em torno da noção de cultura livre
              é Lawrence Lessig, advogado e professor de direito em
              Harvard. Membro do Berkman Center for Internet &
              Society, Lessig acabara de lançar Code and Other Laws of
              Cyberspace (1999), livro que o tornara referência em direi-
              to e governança na internet, quando se envolveu na defe-
              sa de Eric Eldred, organizador de uma página na internet
              que disponibilizava livros em domínio público e que havia
              tirado o seu site da rede em protesto ao acréscimo de vin-
              te anos no prazo de validade do direito autoral proposto
              no Sonny Bono Copyright Act. Conhecido como Eldred
              vs. Ascroft, o caso, de 1999, se popularizou no meio em
              função do alcance do site, que na época tinha mais de
              20 mil acessos por dia, e pela articulação em sua defesa

              163
                 Valente, Implicações jurídicas e políticas do direito autoral na inter-
              net, p.150.


              154



aculturaelivre.indd 154                                                                    05/02/21 18:25
                     proposta por Lessig, que reuniu diversas organizações
                     em defesa do interesse público, como Eletronic Frontier
                     Foundation (EFF), a Free Software Foundation (FSF), a
                     Public Knowledge, entre autores, advogados, economistas
                     e até empresas de tecnologia, como a Intel164.
                        Lessig argumentava que a extensão do prazo dos direi-
                     tos de autor violava a Constituição dos Estados Unidos,
                     que determinava, como Thomas Jefferson e outros libe-
                     rais defenderam no final do século XVIII, que a proteção a
                     direitos autorais teria prazo limitado165. Mesmo apelando
                     ao documento máximo do país, a ação de Lessig foi ne-
                     gada em todas as instâncias, inclusive na Suprema Corte.
                     Serviu, entretanto, para mostrar tanto para Lessig quanto
                     para outros ativistas que os caminhos políticos e jurídicos
                     tradicionais estavam fechados para a negociação sobre fle-
                     xibilização dos direitos autorais e “que os direitos de aces-
                     so e a proteção ao domínio público, nos círculos oficiais,
                     eram vistos como interferências prejudiciais ao comércio
                     eletrônico”166. No final dos anos 1990, as legislações para
                     a internet se adaptavam a partir das leis de direito auto-
                     ral usadas no entretenimento e na cultura, estabelecidas a
                     partir de acordos como os de Berna e de Paris, no século
                     XIX, naquele momento também já incorporados à Orga-
                     nização Mundial do Comércio (OMC).
                        O caminho buscado a partir das derrotas jurídicas foi
                     o de construir um fato novo para apresentar outros cami-
                     nhos, jurídicos e políticos, para a defesa do conhecimento
                     e da cultura livre. Desse movimento nascia, em 2001, o

                     164
                         Ibidem, p.151.
                     165
                         Na cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição Ame-
                     ricana, citada na nota 55.
                     166
                         Valente, op. cit., p.154.


                                                                                      155



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              Creative Commons (CC), uma organização sem fins lu-
              crativos que visava construir licenças alternativas ao res-
              tritivo “Todos os direitos reservados” do copyright. Ofere-
              cia como opção “alguns direitos reservados”, em que cada
              criador poderia escolher o que gostaria de liberar, indo
              do mais restritivo – que era igual ao copyright já existente
              – ao menos, como o domínio público167. O projeto come-
              çou com Lessig, Hal Abelson e Eric Aldred à frente, com
              apoio financeiro do Center for the Public Domain, centro
              de pesquisas ligado à Universidade Harvard, onde Lessig
              trabalhava, tendo por objetivo “expandir o reduzido do-
              mínio público, fortalecer os valores sociais do comparti-
              lhamento, da abertura e do avanço do conhecimento e da
              criatividade individual”168. Procurava ser uma alternativa
              pragmática ao sistema vigente do copyright e se inspirava
              abertamente no movimento do software livre e no copy-
              left, embora trouxesse características mais amplas, com
              licenças que serviriam para diversos tipos de obras cultu-
              rais e não apenas um tipo (o software), como a GPL.
                  Como muitas das propostas que buscam ampliar o al-
              cance de um dado conhecimento, o Creative Commons
              teve que simplificar alguns procedimentos, o que levou a
              muitas críticas sobre uma despolitização da iniciativa e da
              própria ideia do copyleft. Na construção de seus conjun-
              tos de licenças, por exemplo, o CC estendeu as possibi-
              lidades de escolha do copyleft original proposto na GPL
              sem estabelecer liberdades, direitos nem qualidade fixas
              – ou sem distinguir o que seria uma licença livre e uma

              167
                  As licenças CC existentes em 2020 estão detalhadas no site: https://
              creativecommons.org/licenses.
              168
                  Em Bollier, Viral Spiral: How the Commoners Built a Digital Repu-
              blico of their Own, traduzido a partir de Valente, op. cit., p.156.


              156



aculturaelivre.indd 156                                                                  05/02/21 18:25
                     licença proprietária, ambas possíveis dentro das seis li-
                     cenças de escolha no projeto. Assim, Benjamin Mako Hill,
                     Florian Kramer, Dimitry Kleiner, Anna Nimus, entre ou-
                     tros à época, apontariam que o CC não estabeleceria uma
                     posição ética como o software livre, ou mesmo como o
                     movimento de código aberto169 – dissidência mais flexível
                     comercialmente em seus princípios que o software livre,
                     mas que também teria, como este, ideias políticas defini-
                     das sobre o que estariam defendendo e o que não.
                         Nessa perspectiva crítica, o Creative Commons dei-
                     xaria demasiado livres as escolhas para os criadores (ou
                     consumidores), o que serviria mais para reservar os direi-
                     tos aos usuários do que aos proprietários de direitos auto-
                     rais170. Na crítica de Nimus: “o Creative Commons serve

                     169
                         Software de código aberto (free/libre/open source software, acrôni-
                     mo Floss adotado pela primeira vez em 2001) é um nome usado para
                     um tipo de software que surgiu a partir da chamada Open Source Ini-
                     tiative (OSI), estabelecida em 1998 (http://www.opensource.org) como
                     uma dissidência com princípios um pouco mais flexíveis que os do
                     software livre (https://opensource.org/osd), o que propiciou uma ex-
                     pansão considerável tanto do termo “open source” quanto de projetos e
                     empresas que têm o software como produto e motor de seus negócios.
                     A OSI tem como texto filosófico central A catedral e o bazar, de Eric
                     Raymond, publicado em 1999. Nele, Raymond trabalha com a ideia de
                     que “Havendo olhos suficientes, todos os erros são óbvios”, para dizer que,
                     se o código fonte está disponível para teste, escrutínio e experimentação
                     pública, os erros serão descobertos mais rapidamente. O ensaio original
                     pode ser lido, na íntegra, em inglês em: http://www.catb.org/~esr/wri-
                     tings/cathedral-bazaar/cathedral-bazaar, e, traduzido para o português,
                     em: https://www.ufrgs.br/soft-livre-edu/arquivos/a-catedral-e-o-ba-
                     zar-eric-raymond.pdf.
                     170
                         Kramer, O mal-entendido do Creative Commons, em Belisário;
                     Tarim, op. cit., p.180-1.


                                                                                          157



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              para ajudar o produtor a manter o controle sobre a ‘sua’
              obra, o que legitima o controle exercido pelo produtor an-
              tes de rejeitá-lo e impõe a distinção entre produtor e con-
              sumidor antes de revogá-lo”171. Nesse entendimento, que
              ecoa muitas das práticas antiarte e contrárias ao direito
              autoral das vanguardas artísticas do século XX, o CC seria
              como uma versão rebuscada do copyright, que “não con-
              testa o regime de copyright como um todo nem preserva
              o seu estatuto legal de modo a virar a prática do copyright
              do avesso, como o copyleft faz”172.
                 Não é uma surpresa nem um demérito o caminho prag-
              mático adotado pelo Creative Commons. De influência mar-
              cadamente liberal, da tradição de John Locke, Condorcet e
              Thomas Jefferson, Lessig não queria abolir o copyright, mas
              reformá-lo. Sua proposta, apresentada via Creative Com-
              mons, defendia abertamente a liberdade dos criadores, que
              estava sendo atacada pelo constante aumento do prazo de
              extensão dos direitos autorais, o que também ameaçava a
              manutenção de um domínio público comum. Assim, sua po-
              sição foi a de “agregar mais apoio em torno dos objetivos que
              refazem a paisagem social da criatividade”173, o que tornou
              a iniciativa, pelo menos nos primeiros anos, desprovida de
              todos os princípios políticos e éticos contrários ao copyright
              que boa parte dos defensores da software livre, do copyleft e
              de uma cultura livre de tradição anticopyright traziam.
                 Em diferentes ocasiões, Stallman veio a público falar
              que, com a propagação do CC nos anos 2000, muita gente
              passou a questionar a diferença entre copyleft e o Creative
              Commons. Nos termos propostos para o hack jurídico

              171
                  Nimus, op. cit., p.52.
              172
                  Ibidem.
              173
                  Ibidem.


              158



aculturaelivre.indd 158                                                        05/02/21 18:25
                     do copyleft, apenas uma das licenças do CC estaria con-
                     templada: a CC BY SA – Compartilhamento pela mesma
                     licença174, que permite o reuso e o compartilhamento da
                     obra, inclusive para fins comerciais, desde que mantenha
                     as liberdades obtidas adiante para outros usos, de modo a
                     “contagiar” as outras obras e garantir que elas não sejam
                     fechadas com copyright. Outra licença, a CC BY175, que dá
                     as mesmas liberdades do domínio público, também é uma
                     licença livre nos termos da GPL e das quatro liberdades
                     do software livre, ao passo que as outras quatro principais
                     licenças Creative Commons – que podem não permitir a
                     modificação da obra e proibir o uso para fins comerciais,
                     por exemplo – não seriam livres.
                         Mesmo com as críticas, a estrutura do CC, a praticida-
                     de de seu conjunto de licenças e sua intenção de buscar
                     defender, mesmo que de forma genérica, o compartilha-
                     mento e o domínio público facilitaram a sua propagação
                     por diversos países e para além do mundo da tecnologia.
                     As disputas em torno do compartilhamento de arquivos
                     digitais nos anos 2000 ajudaram também a popularizar o
                     Creative Commons como uma alternativa viável para o
                     combate ao discurso da criminalização da pirataria para
                     quem baixava arquivos protegidos por copyright na rede.
                     “Tudo fica mais fácil quando você não precisa de interme-
                     diários” era uma frase ouvida num vídeo de divulgação do
                     CC176 da época que ecoava a praticidade para os criado-

                     174
                          Texto completo da licença disponível em: https://creativecom-
                     mons.org/licenses/by-sa/2.5/br.
                     175
                         Disponível na íntegra em: https://creativecommons.org/publicdo-
                     main/zero/1.0/deed.pt_BR.
                     176
                         “Seja criativo”, o vídeo, ainda pode ser visto, dublado em português,
                     no link: https://www.youtube.com/watch?v=FTSnkvni4bM.


                                                                                        159



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              res escolherem, de modo antecipado, quais direitos que-
              riam preservar (além do crédito como autor, estabelecido
              como padrão para todas as obras e reconhecido em qual-
              quer tipo de legislação de propriedade intelectual) e quais
              queriam liberar. O direito de adaptação ou livre compar-
              tilhamento de uma música, por exemplo, facilitaria sua
              difusão em diferentes versões remixadas – um caso exem-
              plar nesse aspecto é do disco citado nesse mesmo vídeo
              de apresentação do CC, chamado “Redd Blood Cells”, no
              qual o baixista Steven McDonald, da banda Redd Kross,
              regravou em uma versão com baixo em todas as músicas o
              disco “White Blood Cells”, do White Stripes, banda só de
              guitarra, voz e bateria.
                  A partir de 2003 e 2004, a difusão do CC fez surgir
              grupos que traduziram e adaptaram suas licenças para
              as realidades locais em países como Japão, Coreia do Sul,
              México, Croácia, Portugal, Espanha, Alemanha, Argenti-
              na, Uruguai, México, geralmente organizados a partir de
              instituições de pesquisa e universidades ou de grupos au-
              tônomos. No Brasil, os primeiros anos da década coinci-
              diram com a ascensão de Lula à Presidência do país, em
              2002, e de Gilberto Gil como ministro da Cultura, em
              2003. Figura central da música brasileira, Gil se reuniu
              com Lessig junto do antropólogo Hermano Vianna, e,
              segundo consta, “compreendeu rapidamente o projeto e
              comprou a causa”177. Na análise de Hermano Vianna, ami-
              go e parceiro do músico brasileiro, “a cultura do compar-
              tilhamento e principalmente a do sampling estariam tão li-
              gadas ao tropicalismo que a compreensão da necessidade
              de pensar a cultura livre foi imediata para Gil”178. O quão

              177
                    Valente, op. cit., p.156.
              178
                    Bollier, op. cit., p.185, traduzido por Valente, op. cit., p.157.


              160



aculturaelivre.indd 160                                                                 05/02/21 18:25
                     recombinado já não era o tropicalismo quando Tropicá-
                     lia ou panis et circencis, álbum marco do movimento de
                     1968, juntava Vicente Celestino, John Cage, cultura popu-
                     lar e erudita passando estrategicamente pela cultura pop
                     e fortemente influenciada pela antropofagia proposta por
                     Oswald de Andrade179?
                         A adesão do Ministério da Cultura (MinC) liderado por
                     Gil ao Creative Commons ocorreu a partir de ações como
                     o desenvolvimento da licença CC-GPL, em 2003, que tra-
                     duziu o texto inicial da GPL para o português, e da adoção
                     das licenças nos materiais produzidos pelo MinC. Marcou
                     também um momento de comprometimento do ministé-
                     rio com o software livre, o que resultou em projetos como
                     os Pontos de Cultura, que, a partir de 2004, distribuiu kits
                     de computadores com sistemas operacionais livres para
                     pequenos produtores culturais Brasil afora. Uma rara
                     política pública que reuniu tecnologia livre e cultura po-
                     pular, o Cultura Viva180, como ficou conhecido o projeto,
                     potencializou a propagação do software e da cultura livre
                     no país e tornou o Brasil, à época, um dos principais polos
                     desenvolvedores e consumidores de tecnologias e cultu-
                     ra livre do mundo. Gil, por sua vez, tornou-se próximo
                     de Lessig e um defensor público do CC; divulgou-o como
                     ferramenta democratizante e socializante – o único minis-

                     179
                        Em Viveiros de Castro, op. cit., p.81.
                     180
                         O Cultura Viva é “uma política cultural voltada para o reconhe-
                     cimento e apoio às atividades e processos culturais já desenvolvidos,
                     estimulando a participação social, a colaboração e a gestão compar-
                     tilhada de políticas públicas no campo da cultura”. Apesar de, no mo-
                     mento deste texto, o projeto estar parado e nem existir Ministério
                     da Cultura no Brasil, ele pode ser conhecido em detalhes no portal
                     http://culturaviva.gov.br.


                                                                                     161



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              tro da Cultura de qualquer país a fazê-lo, o que também
              contribuiu para dar visibilidade mundial ao projeto181.
                 Uma posição conciliadora, proposta pelo antropólogo
              Eduardo Viveiros de Castro, sintetiza o impacto do Crea-
              tive Commons no Brasil e no mundo de um ponto de vista
              tanto conceitual quanto pragmático.
                          É uma tentativa, a meu ver altamente meritória. Eles estão
                          tentando evitar que o mundo virtual seja cercado, assim
                          como foi o mundo geográfico. Que ele seja privatizado.
                          É uma tentativa de manter a informação como um bem
                          de domínio público. O grande ponto para o Creative
                          Commons é que a informação não segue o regime da
                          soma zero, que ela pode ser passada para frente e não
                          diminui com isso. Isso não significa que um autor deva
                          ser plagiado; o ponto é facilitar a circulação. […] A ideia
                          é que o copyright significa “all rights reserved” e o Cre-
                          ative Commons significa “some rights reserved”. E você
                          diz quais são eles. Existem várias fórmulas, vários tipos
                          de licenças abertas. Trata-se de tentar criar um modo de
                          coabitação no plano da informação que seja tolerável,
                          e que evite o que está acontecendo, que é o controle da
                          informação pelas grandes companhias. Agora isso tudo
                          ainda é, de certa forma, um paliativo. O Creative Com-
                          mons pode ser visto, como o é efetivamente pelos mais,
                          digamos, radicais, como um estratagema capitalista. O
                          verdadeiro anarquista não quer saber de Creative Com-
                          mons nem de copyleft, é totalmente radical. A princípio
                          estou com eles, acho a propriedade privada uma mons-
                          truosidade, seja ela intelectual ou não, mas sei também
                          que não adianta dar murro em ponta de faca, tapar o sol




              181
                    Valente, op. cit., p.157.


              162



aculturaelivre.indd 162                                                                 05/02/21 18:25
                            com a peneira. Acho que você tem que transigir, tem que
                            fazer algum tipo de negociação.182
                     A propagação da cultura livre nos anos 2000 teve, além do
                     copyleft e das licenças Creative Commons, outro elemento
                     importante: a publicação de Free Culture (Cultura livre), de
                     Lawrence Lessig, em 2004. O livro resgata a história da pro-
                     priedade intelectual a partir de casos emblemáticos, alguns
                     deles já comentados aqui – como as batalhas nos tribunais
                     ingleses do século XVII que originaram o copyright e o uso
                     de histórias de domínio público pela Disney. Inspirada no
                     software livre, a obra faz a defesa de um conceito de cultura
                     livre como aquela que deve ser restrita o mínimo possível,
                     de forma a possibilitar seu compartilhamento, distribuição,
                     cópia e uso sem que isso afete a propriedade intelectual dos
                     bens culturais. Com isso, ajuda a propagar uma visão de cul-
                     tura que organiza um movimento em prol de modificações
                     nas leis de direito autoral atuais, que, segundo Lessig e ou-
                     tros ativistas, dificulta a criatividade e propaga uma “cultura
                     da permissão”, em que todo criador deve pedir permissão se
                     quiser usar uma determinada obra, seja qual for a finalidade.
                     Um movimento pela cultura livre, como passa a ser identifi-
                     cado nessa época, lutaria para manter um domínio público
                     vibrante e acessível a todos, criando, além de leis, também
                     tecnologias, estratégias e táticas para manter as criações li-
                     vres, não necessariamente “grátis”, parafraseando a conhe-
                     cida frase de Stallman usada no contexto da liberdade do
                     software livre: “Think free as in free speech, not free beer”183.

                       Viveiros de Castro, op. cit., p.93-4.
                     182

                       “Pense livre como em liberdade de expressão, não cerveja grátis.”
                     183

                     Muito conhecida no meio do software livre, a frase é atribuída a Stall-
                     man por Lessig pela primeira vez em 2006, disponível em: https://
                     www.wired.C.om/2006/09/free-as-in-beer.


                                                                                      163



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                 Cultura livre, o livro, também apresenta propostas prá-
              ticas de defesa do domínio público. Algumas delas che-
              garam a ser discutidas e ainda hoje são consideradas por
              reformistas, embora se tenha a noção de que, para o inte-
              resse dos conglomerados de proteção aos direitos autorais
              em todo o mundo, elas ainda são vistas como radicais de-
              mais. A diminuição do prazo de extensão do copyright,
              por exemplo, é uma proposta que sempre existiu e que
              Lessig retoma no livro, de forma a considerá-la a partir da
              ideia de que esse período “deveria ser longo o suficiente
              para incentivar a criação, não mais”184. O que, além de fa-
              vorecer o acesso e manter obras por mais tempo em domí-
              nio público, evitaria também a necessidade de construir
              constantes exceções jurídicas que complicam o entendi-
              mento, para o grande público que não é advogado, do que
              é protegido e do que é aberto. Lessig afirma que, até 1976,
              o período médio de duração de um copyright nos Estados
              Unidos era de 32,2 anos, e que talvez esse período médio
              fosse adequado.
                          Sem dúvida, os extremistas irão chamar tais ideias de “ra-
                          dicais”. (Afinal de contas, eu os chamo de “extremistas”.)
                          Mas, repito, o período que eu havia recomendado era mais
                          longo que o período estabelecido por Richard Nixon. Onde
                          está o radicalismo em pedir uma legislação de copyright
                          mais generosa do que a presidida por Richard Nixon?185
              Outras ideias apresentadas por Lessig na publicação de
              2004 soariam como premonitórias para as décadas se-
              guintes, como a relacionada ao compartilhamento de ar-
              quivos na rede.

              184
                    Lessig, op. cit., p.263.
              185
                    Ibidem, p.285.


              164



aculturaelivre.indd 164                                                                05/02/21 18:25
                               Quando for extremamente fácil se conectar a serviços de
                               conteúdo, será mais fácil se conectar a serviços de acesso
                               a conteúdo que baixar e armazenar conteúdo nos muitos
                               dispositivos que teremos para “tocar” conteúdo. Será mais
                               fácil, em outras palavras, assinar um serviço do que se tor-
                               nar o administrador de um banco de dados, como todos
                               no mundo de tecnologias de compartilhamento como o
                               Napster essencialmente se tornaram. Serviços de conteúdo
                               competirão com o compartilhamento de conteúdo, mesmo
                               que cobrem dinheiro pelo conteúdo ao qual dão acesso.186

                     V.

                     A internet dos anos 1990 e 2000, período no qual a cultura
                     livre se espalhou, foi um momento de extrema liberdade e
                     imaginação, manifestada pelo otimismo reinante em tor-
                     no das possibilidades que a rede trazia e pela liberdade de
                     compartilhamento permitida nos diversos sites de dispo-
                     nibilização dos mais variados arquivos de bens culturais
                     do planeta. Como uma rede baseada na troca de informa-
                     ções, a internet desde seus primórdios permitiu e facilitou
                     o livre compartilhamento de arquivos. Enquanto ainda
                     era nicho usado principalmente por cientistas, militares e
                     representantes da contracultura, nos anos 1980 e nos pri-
                     meiros anos da década de 1990, a livre circulação de infor-
                     mações não chegou a incomodar de modo significativo as
                     indústrias baseadas na propriedade intelectual – afinal, na
                     época, só era possível enviar arquivos pequenos, bytes de
                     informação que circulavam entre poucas pessoas. Os for-
                     matos de codificação de um arquivo de áudio, por exem-
                     plo, só transformariam uma música em dados que po-

                     186
                           Ibidem, p.289.


                                                                                      165



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              dem ser enviados na internet livremente a partir de 1993,
              com o lançamento do MP3187, um dos primeiros tipos de
              compreensão de áudio com perdas quase imperceptíveis
              ao ouvido humano. Ainda assim, demoraria alguns anos
              para que o formato se popularizasse e a capacidade da
              transmissão de dados na internet conseguisse transportar
              uma música sem sobrecarregar a rede.
                 Com o início da internet comercial no mundo a partir de
              1994 (no Brasil em 1995), milhares de pessoas passaram a
              poder subir e baixar arquivos livremente, protegidos ou não
              por copyright, a partir de práticas par a par (peer to peer,
              também abreviada para p2p), como o torrent, processo des-
              centralizado de compartilhamento que facilita o download
              de forma a cada usuário poder baixar partes de um arquivo
              a partir de outras partes espalhadas em diversos computa-
              dores – quanto mais dispositivos, mais rápido o processo.
              A facilidade de circulação de informação proporcionada
              pela internet cresceu exponencialmente com o aumento
              da velocidade das conexões; as redes discadas de 56 kbps
              comuns em 1995188, em poucos anos seriam de 1.000 kbps

              187
                  O seu bitrate (taxa de bits) é da ordem de kbps (quilobits por segun-
              do), sendo 128 kbps a taxa-padrão, na qual a redução do tamanho do
              arquivo é de cerca de 90% – o tamanho do arquivo passa a ser 1/10 do
              tamanho original. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/MP3. Como
              todas as tecnologias citadas neste livro, é fruto de muitas experiências
              e longos anos de pesquisas científicas, que remetem a formas de trans-
              mitir sons em alta qualidade e jeitos de codificar áudios, que resulta-
              ram no formato MPEG e, então, no MP3 (MPEG3), história contada
              em detalhes no artigo “Genesis of the MP3 Audio Coding Standard”,
              de H. G. Musmann, da Universidade de Hannover, na Alemanha, dis-
              ponível em: https://ieeexplore.ieee.org/document/1706505.
              188
                  Com essa velocidade, um arquivo de música (3,5 megabytes) em
              MP3, por exemplo, demoraria em média de 15 a 30 minutos para ser


              166



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                     com a popularização do serviço conhecido como ADSL
                     (Assymmetric Digital Subscriber Line, Linha Digital Assi-
                     métrica para Assinante189), responsável pela maior parte
                     do acesso à internet de computadores pessoais já no início
                     dos anos 2000. Com mais velocidade para baixar arquivos
                     maiores na rede, uma prática temida e combatida desde o
                     princípio do direito autoral voltaria a ser o foco: a pirataria.
                        Para as indústrias baseadas na propriedade intelectual,
                     os problemas com a pirataria começaram a valer com o
                     Napster, software criado em 1999 – ano também em que

                     baixado para um computador pessoal, enquanto um vídeo de baixa
                     qualidade (700 megabytes), de 28 a 42 horas. Como os dados pela
                     internet e a voz pelo telefone eram transmitidos pelo mesmo canal,
                     somente uma operação poderia ser realizada por vez: baixar um ar-
                     quivo em MP3 ocuparia a linha telefônica por até 30 minutos, o que
                     caracterizava, para fins de cobrança, uma ligação local de duas horas.
                     Uma operação que, a depender do valor do pulso ou do minuto, po-
                     deria aumentar o valor da conta telefônica em centenas de reais no
                     Brasil nos primeiros anos de internet comercial (Foletto, Um mosaico
                     de parcialidades na nuvem coletiva, p.117-8).
                     189
                         De modo geral, a ADSL funciona também a partir das linhas e
                     cabos telefônicos, mas com a diferença de que os dados são dividi-
                     dos em três na hora do envio: os dados de download, ou seja, dos
                     cabos que levam as informações da internet para as centrais, e destas
                     para o computador; dados de upload, do computador para os cabos,
                     as centrais e a internet; e a voz via telefone, que é separada das ou-
                     tras informações a partir de um aparelho chamado Splitter, instalado
                     tanto na linha do usuário como na central telefônica. A transmissão
                     simultânea desses três tipos de dados se dá em frequências diferentes,
                     mas nos mesmos cabos: a linha telefônica serve como “estrada” para a
                     circulação dos dados dos três tipos. Não há mais a discagem para um
                     número específico para estabelecer uma conexão, como na dial up, o
                     que desocupa o telefone e não implica cobrança de pulsos quando do
                     acesso à internet, barateando o serviço. (Foletto, op. cit., p.121).


                                                                                     167



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              o formato de distribuição de música MP3 tornava-se co-
              mum – por um jovem hacker chamado Shawn Fanning.
              Funcionava da seguinte forma: um usuário baixava o soft-
              ware, acessava uma interface de busca, procurava por uma
              música e, caso encontrasse disponível um arquivo com a
              canção (ou disco) disponibilizado por um ou mais compu-
              tadores também com o software, selecionava-o para baixar
              e esperava. As redes de internet domésticas em 1999 e 2000
              eram lentas, com velocidade equivalente a 1/10 a 1/300 da
              velocidade de duas décadas depois; então, a espera pelo
              download de uma música poderia ser às vezes de horas,
              um livro algumas dezenas de minutos e um filme, dias ou
              semanas. Em qualquer das velocidades, a possibilidade de
              escolha era gigantesca e o arquivo vinha gratuito.
                 A sacada de Fanning e de seu cofundador Sean Parker
              (que depois seria um dos primeiros acionistas do Face-
              book) foi criar um software de interface gráfica amigável,
              facilmente baixável nos computadores da época, para que
              qualquer pessoa pudesse buscar suas músicas, em MP3, por
              nome do artista, disco, faixas e até gêneros inteiros, e fazer
              o download de uma cópia para sua máquina190. Era o há-
              bito de compartilhar músicas, popularizado nas gravações
              em fitas cassetes dos anos 1970 em diante, levado a uma
              escala global facilitado por um formato que permitia ao
              mesmo tempo compartilhar a música e mantê-la consigo
              nos HDs, CDs e disquetes da época. Uma música em MP3
              baixada no Napster trazia também como novidade o fato


              190
                 Deak; Foletto, Ambiente digital de difusão: por onde circula a
              cultura online?, BaixaCultura, 14 jun. 2019. Disponível em: http://
              baixacultura.org/ambiente-digital-de-difusao-por-onde-circula-a-
              cultura-online.


              168



aculturaelivre.indd 168                                                             05/02/21 18:25
                     de ser um “bem não rival”191, o que significa dizer que po-
                     deria coexistir em diferentes cópias e ser transportada para
                     qualquer aparelho que conseguisse ler (portanto tocar) as
                     combinações de 0 e 1 que comprimiam uma canção, por
                     mais complexa que fosse, em um pequeno arquivo que re-
                     sultava em cerca de 4 MB de informação. Nesse momento,
                     não apenas o computador pessoal tocava o formato, mas
                     uma série de aparelhos de som digitais e dispositivos me-
                     nores, chamados genericamente de “tocadores de MP3”, di-
                     fundidos a partir do Ipod, da Apple, lançado em 2001. Sem
                     falar nos discos compactos a laser (CD-RW), que – como as
                     fitas antes, mas com capacidade de armazenar cerca de 10
                     horas de centenas de músicas e não apenas 60 minutos – se
                     popularizaram como um jeito barato de distribuição físi-
                     ca de arquivos (capacidade: 700 MB) nesse período, depois
                     substituídos pelo Digital Video Disc (DVD), com um pou-
                     co mais de seis vezes a capacidade do CD (4,7 GB), e os pen
                     drives, com ainda mais espaço (5, 10, 15 GB em diante).


                     191
                         Um outro conceito, criado no Brasil pelo professor de ciência da
                     computação da USP Imre Simon e pelo pesquisador Miguel Said Vieira,
                     falava em “rossio não rival” (ver Simon; Vieira, O rossio não-rival (The
                     Non-Rival Commons), Revista da USP). Eles argumentavam que a me-
                     lhor tradução para commons seria rossio, que, de acordo com o dicio-
                     nário Houaiss, é um “terreno roçado e usufruído em comum”. Segundo
                     Savazoni, “o objetivo do esforço empreendido pelos autores era encon-
                     trar uma forma de traduzir um termo que não encontra em português
                     correlato ideal, o que o torna realmente difícil de assimilar. Ao fim, a
                     ideia não ganhou muitos adeptos. Tanto que vários autores optaram
                     por manter a expressão no original em inglês, “commons”, gerando um
                     anglicismo que, a meu ver, manteve o conceito secundarizado nos de-
                     bates político-culturais em português” (Savazoni; O comum entre nós:
                     da cultura digital à democracia do século XXI).


                                                                                       169



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                  O download de MP3 gratuito foi a primeira grande pos-
              sibilidade de quebra, na internet, do sistema baseado na
              venda de bens culturais erigido pela exploração da proprie-
              dade intelectual ainda no século XIX. Sem remunerar os
              autores pelo download, esse sistema, tendo o Napster como
              primeiro caso, foi rapidamente atacado: já no final de 1999,
              a Record Industries Association of America (RIAA) moveu
              uma ação contra o software de Fanning e Parker, que em
              seu primeiro ano de funcionamento teve que responder nos
              tribunais pela acusação de pirataria e se defender contra um
              pedido de indenização de 100 mil dólares por música bai-
              xada. Mesmo com todo o apoio obtido na época, o Nap-
              ster perdeu o processo e, no ano seguinte, teve que cessar
              o compartilhamento de obras registradas em copyright, o
              que não significava que precisasse fechar seus serviços in-
              teiramente. Mas não encontrou solução que fizesse o filtro
              entre obras com copyright ou não – o que seria muito difícil
              sem interferir na autonomia e nos dados de cada uma das
              pessoas que disponibilizavam conteúdo no software – e, em
              julho de 2001, fechou suas atividades, para no ano seguin-
              te reabrir como um serviço de assinaturas de download de
              músicas e assim permanecer até hoje192.
                  A repercussão que o caso teve entre artistas193 e ciberati-
              vistas; os mais de 100 mil usuários ativos que o Napster re-

              192
                  Sem o alcance que obteve em seus primeiros dois anos, o site foi
              comprado pelo serviço chamado Rhapsody em 2011 e funciona por
              assinatura paga no endereço: https://us.napster.com/home.
              193
                  Um dos casos mais emblemáticos dessa época foi o processo que
              o Metallica, tendo como porta-voz seu baterista e compositor Lars
              Ulrich, moveu em 2000 contra o Napster em busca de não apenas o
              dinheiro de Fanning e seu software como o de usuários que baixavam
              as músicas da banda, fãs do som do grupo. Se não era algo inédito, era


              170



aculturaelivre.indd 170                                                                05/02/21 18:25
                     gistrava em 1999, na maioria jovens do mundo inteiro que
                     davam seus primeiros passos na internet; a capa da revista
                     Time de outubro de 2000 com a frase “What’s Next for Naps-
                     ter?” (“o que vem para seguir o Napster?”) e uma foto do jo-
                     vem (19 anos) Fanning de boné e fones de ouvido imensos;
                     todos indícios de que o processo não terminaria ali. Soft-
                     wares que funcionavam de maneira semelhante, baseados
                     no compartilhamento p2p, se espalharam pela rede, caso de
                     Gnutella, Grokster, Kazaa, FreeNet, Morpheus, Soulseek, en-
                     tre outros, que levaram adiante os mesmos procedimentos
                     de livre compartilhamento de arquivos, enquanto a RIAA
                     seguiu e intensificou os impopulares processos contra usuá-
                     rios que compartilhavam arquivos nesses programas194.
                        Nos anos seguintes, a miniaturização dos dispositivos
                     digitais, e consequentemente o seu barateamento, abriu
                     ainda mais espaço em CD-ROM, DVDs, HDs e pen dri-
                     ves para armazenamento de arquivos. A popularização de
                     novas tecnologias de transmissão de dados, como a já cita-


                     no mínimo raro ver um artista processar seus próprios fãs. Sobre esse
                     caso, ver: https://en.wikipedia.org/wiki/Metallica_v._Napster,_Inc.
                     194
                         Só em 2004 foram 264 ações movidas pela RIAA, processos que, se-
                     gundo Valente, op. cit., p.82, foram escolhidos de forma exemplar: “A
                     lei norte-americana, direcionada originalmente a pessoas jurídicas, e
                     não físicas, previa a indenização de 750 a 30 mil dólares, aumentando
                     para 150 mil no caso de condutas dolosas, por cada obra cujos direitos
                     autorais houvessem sido infringidos. As ações causaram grande como-
                     ção pública, em especial pelos grandes valores envolvidos, mas também
                     porque a identificação de usuários via endereço IP levava a erros e fez
                     com que a RIAA movesse ações contra indivíduos errados, como foi o
                     caso de um processo contra um morto e uma avó que não sabia baixar
                     música. O resultado, para a indústria de conteúdo, foi uma antipatia e
                     uma dificuldade de posicionamento subsequente no espaço público”.


                                                                                      171



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              da ADSL (que popularizou o conceito de banda larga195),
              via TV a cabo, ondas de rádio e satélites, e depois os siste-
              mas 2, 3 e 4G também para os smartphones, triplicaram
              a velocidade da internet e diminuíram o tempo de down-
              load e upload de conteúdos, enquanto o acesso à rede se
              tornava mais barato e mais fácil em todo o planeta – so-
              bretudo no norte global. Nesse cenário, a batalha pelo livre
              compartilhamento de arquivos se tornou uma discussão
              incontornável. A cultura livre se espraiava na esteira da
              bandeira da liberdade de acesso e circulação de informa-
              ção e encontrava espaço para se fortalecer nos serviços de
              compartilhamento de arquivos e entre pessoas que baixa-
              vam conteúdo (com ou sem copyright, muitos não sabiam
              ou não viam diferença) livremente e queriam manter essa
              prática. À época, Lessig disse que, “ao passo que no mun-
              do analógico a vida dispensa copyright, no mundo digital
              a vida está sujeita à lei do copyright”196, uma frase que de-
              monstra um certo espírito desses anos em que a principal
              questão política e legal na rede girou em torno do down-
              load: sua legalidade ou não, seu impacto na construção do
              conhecimento, no acesso à informação, na cadeia de pro-


              195
                  Banda larga é um conceito utilizado para, de modo geral, definir
              conexões mais rápidas que as discadas via modens analógicos de 56
              kbps. A recomendação da União Internacional de Telecomunicação
              define banda larga como a capacidade de transmissão que é superior a
              2 ou 5 mbps por segundo. A variação do que é considerado banda lar-
              ga ao redor do planeta, porém, é diversa; a Colômbia estabeleceu uma
              velocidade mínima de 1.024 kbps e os Estados Unidos de 25 mbps,
              por exemplo. No Brasil ainda não há consenso que indique qual é a
              velocidade mínima para uma conexão ser considerada de banda lar-
              ga. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Banda_larga.
              196
                  Lessig, Code and Other Laws of Cyberspace, p.192.


              172



aculturaelivre.indd 172                                                              05/02/21 18:25
                     dução das artes, na sustentabilidade de projetos culturais,
                     na necessidade de uma reforma das leis de direito autoral
                     para que estas deixassem de criminalizar uma prática ha-
                     bitual de milhões de pessoas.
                        Os grandes intermediários já citados, representados
                     por organizações que tinham dinheiro suficiente para
                     contratar diversos advogados e ir até o fim em qualquer
                     processo, acionaram na Justiça alguns ícones do livre com-
                     partilhamento na rede, caso do site de torrents The Pirate
                     Bay (TPB). Pressionados por empresas ligadas à Motion
                     Pictures Association (MPAA), promotores suecos, país de
                     origem do The Pirate Bay, entraram com acusações em 31
                     de janeiro de 2008 contra Fredrik Neij, Gottfrid Svartholm
                     e Peter Sunde, que administravam o site, e Carl Lundström,
                     empresário sueco que havia financiado de início o TPB,
                     por ajudar a disponibilizar conteúdos com direitos auto-
                     rais. Foram condenados em 17 de abril de 2009 a uma pena
                     de prisão de um ano e ao pagamento de 2,7 milhões de
                     euros às empresas representadas pela MPAA, como 20th
                     Century Fox, Columbia Pictures, Warner Bros, EMI, entre
                     outras. O caso teve apelação em 2010, que reduziu o tempo
                     de prisão de todos os acusados (4 a 10 meses). Depois de
                     alguns anos foragidos, cumpriram suas penas e desde 2015
                     estão liberados. O site, que agregava links mas não hospe-
                     dava os conteúdos protegidos por direitos autorais alega-
                     dos, se mantém na ativa a partir de diversos espelhos197.
                        Na década de 2000, as organizações ligadas à indústria
                     da intermediação tornaram também comuns campanhas

                     197
                        Sobre o caso, ver o documentário The Pirate Bay: Away from the Ke-
                     yboard, dirigido por Simon Klose e lançado em 2013, disponível na ín-
                     tegra em: https://www.youtube.com/watch?v=eTOKXCEwo_8. E a pá-
                     gina na Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Pirate_Bay_trial.


                                                                                     173



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              antipirataria em que insistiam na comparação de um ar-
              quivo, copiável e não rival, com um bem físico rival como
              um CD ou DVD; que um filme baixado era um DVD a
              menos vendido e, com isso, se ajudava a “matar” os artistas
              de fome198; que a pirataria “acabava com a emoção”, pois o
              arquivo baixado não tinha a mesma qualidade do visto em
              DVD ou no cinema199; que, “quando você está baixando
              arquivos MP3, você também está baixando o comunismo”,
              numa imagem hoje histórica em que um Lênin vestido
              de farda militar e cabeça de diabo aparece ao lado de um
              jovem branco de fones de ouvido em frente a um com-
              putador. Houve outros motes parecidos em campanhas,
              mas nenhuma chegou a acabar com o compartilhamento
              de arquivos; um site fechado era como matar uma cabe-
              ça da Hidra de Lerna, outra crescia no lugar. Mas, ainda
              assim, serviram para produzir muitos números de cópias
              destruídas, sites fechados, pessoas processadas, e, princi-
              palmente, para mostrar para a indústria da intermediação
              cultural – principalmente estúdios e distribuidoras de ci-
              nema e vídeo para a televisão, gravadoras e distribuidoras
              de música e editoras de livros – que não seria dessa forma
              que terminariam com o compartilhamento de arquivos.
                 Nos anos 2000 também se propagou a ideia de liberar
              bens culturais e educacionais já existentes para uso, com-
              partilhamento e reapropriação. Na educação, a partir de

              198
                  Um exemplo está disponível em: http://baixacultura.org/propagan-
              das-antipirataria-3.
              199
                  Mote de uma campanha da Honour Intellectual Property (HPI)
              que trazia super-heróis como o Super-Homem, Homem de Ferro e
              outros salvando o mundo com os dizeres, em inglês, “Piracy kill the
              real thrill”. Mais detalhes em: http://baixacultura.org/propagandas-
              -antipirataria-o-retorno-2.


              174



aculturaelivre.indd 174                                                              05/02/21 18:25
                     2002, a já citada comunidade internacional REA surgiu
                     com o objetivo de promover o acesso, uso e reuso de bens
                     educacionais. Nos museus, bibliotecas e instituições de
                     memória, houve um movimento semelhante com a ado-
                     ção das licenças Creative Commons, em particular, como
                     mote para tornar os acervos dessas instituições mais aces-
                     síveis, conectados e disponíveis para que usuários pudes-
                     sem contribuir, participar e compartilhá-los200, no movi-
                     mento chamado Open GLAM (Gallery, Library, Archive,
                     Museum). Enraizadas nos princípios éticos do software
                     livre e recombinantes da cultura livre, ambas as iniciativas
                     conquistaram espaço em diversas instituições e governos
                     em diferentes lugares do planeta e das mais variadas ideo-
                     logias. São, em 2020, depois de muita organização, der-
                     rotas e aprendizados no caminho, as áreas onde mais se
                     encontram legalmente obras livres.

                     VI.

                     O movimento do livre compartilhamento na rede crimi-
                     nalizado como pirataria só passaria a diminuir sua força
                     na década seguinte, com a entrada de dois grandes atores
                     que, juntos, transformariam a internet em algo bastante
                     diferente daquela dos primeiros anos. O primeiro foram
                     os serviços de streaming, que, de uma tendência vaga nos
                     anos 2000, se tornaram um investimento básico mensal,
                     como água e luz, para milhões de famílias de classe média
                     em diversos lugares do mundo a partir dos anos 2010. E


                     200
                        Em “Os 5 princípios do Open Glam”, Creative Commons br, 24 set.
                     2019. Disponível em: https://br.creativecommons.org/os-5-princi-
                     pios-do-open-glam.


                                                                                  175



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              que contou com, é importante frisar, o considerável cres-
              cimento da velocidade na rede nesse período, com fibras
              óticas que permitem uma velocidade pelo menos cem ve-
              zes maiores que no início dos anos 2000.
                 A mesma indústria que promovia campanhas antipi-
              rataria soube ouvir uma demanda reclamada por alguns
              dos que usavam os torrents para ter acesso a diversas pro-
              duções culturais mundiais: faça melhor que eu pago201.
              Criaram (ou se aliaram a) plataformas com muita música,
              filmes e séries à disposição de forma fácil, barata, numa
              interface amigável, já legendados em muitas línguas (caso
              dos filmes e séries), com cada vez mais potentes algorit-
              mos que aprendiam o gosto das pessoas e indicavam ou-
              tros produtos que o assinante poderia querer de forma
              cada vez mais precisa. Funcionava, ainda, nos já diver-
              sos dispositivos (smartphones, tablets) que passariam a
              se tornar cada vez menores, mais potentes e populares, e
              com isso conseguiram tanto ganhar aqueles que achavam
              difícil baixar um filme (ou uma música) como legalizar
              o consumo cultural on-line, já que tudo aquilo que está
              no Netflix, no Spotify, na Amazon Prime e no Deezer,
              alguns dos mais populares desses serviços em 2020, é dis-
              ponibilizado dentro da lei202. Não acabaram com o do-
              wnload par a par, via torrent, mas tornaram essa opção
              mais trabalhosa, restrita a grupos menores – no início na
              década de 2020, ainda um número considerável (e difícil
              de mensurar) de pessoas, mas notoriamente menor que
              nas décadas anteriores.

              201
                  Sobre essa ideia, leia “Faça melhor que eu pago: desafio à indústria”,
              Leo Germani, 10 jan. 2010. Disponível em: https://leogermani.com.
              br/2010/01/10/faca-melhor-que-eu-pago-desafio-a-industria.
              202
                  Deak; Foletto, op. cit.


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                        O segundo ator a entrar no cenário e diminuir o mo-
                     vimento do livre compartilhamento na internet foram as
                     redes sociais, primeiro o Orkut (ano de lançamento: 2004),
                     depois o MySpace (entre 2005 e 2008, a rede social digital
                     mais popular do planeta) e finalmente, e em muito maior
                     escala, o Facebook (100 milhões de usuários em 2008, 2,5
                     bilhões em 2020). Navegar na internet era uma frase co-
                     mum nos anos 1990 e 2000 para designar o hábito cotidia-
                     no de entrar em um site e, dele, pular para outro, e outro, e
                     outro, até se perder, horas depois, em uma página em que
                     não se sabia bem como se havia entrado. Flanêur digital
                     era outra expressão utilizada para identificar esse cami-
                     nhante sem rumo pela rede, que se perdia nas esquinas dos
                     blogs como um andarilho pelas ruas das grandes cidades.
                     O Facebook, em especial, mudou esse movimento; trou-
                     xe a cidade inteira para o caminhante andar sem sair do
                     lugar. Uma cidade construída por uma única empresa pri-
                     vada que, em cada movimento feito pelo seus habitantes,
                     produzia um dado, o qual, recombinado a outros milha-
                     res, tornava-se muito rentável para ser comercializado pela
                     empresa – o “petróleo” do século XXI, na expressão que se
                     tornou clichê na boca de governantes e futurólogos junto
                     de outra também tornada de uso geral a partir dos anos
                     2010: Big Data.
                        Falar com as pessoas, escrever, publicar, tirar fotos, ver
                     vídeos e trabalhar, atividades que antes eram feitas em lu-
                     gares diferentes na rede, passaram a poder ser realizadas
                     em um único lugar, o Facebook – que depois, com planos
                     cada vez mais ambiciosos de criar uma internet parale-
                     la em seus domínios, foi transformado em dois, com a
                     compra do Instagram (em 2012, por US$ 1 bilhão), e em




                                                                             177



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              três, com o WhatsApp (em 2014, por US$ 16 bilhões203).
              Em conjunto com outras das chamadas big techs (Google,
              Amazon, Apple e Microsoft), a empresa criada por Mark
              Zuckerberg mudou o jeito de as pessoas produzirem e
              consumirem informação na internet. Passou a dizer onde,
              como e de que forma a informação passaria a circular na
              rede – e não eram mais os sites, torrents e blogs criados
              para o livre compartilhamento de arquivos, mas um único
              espaço fechado, vigiado e monopolizado, uma ferramenta
              de modulação de opiniões e comportamentos conforme
              os caminhos oferecidos pelos cada vez mais complexos (e
              secretos) algoritmos204.
                 Foi o fim do curto verão da internet livre205 e o começo
              de uma certa ressaca da internet206, em que críticas a certos

              203
                  Fonte: https://tecnoblog.net/151547/facebook-compra-whatsapp-
              -16-bilhoes-de-dolares.
              204
                  Ver Souza; Avelino; Amadeu, A sociedade de controle: manipulação
              e modulação nas redes digitais.
              205
                  Essa expressão vem do remix de O curto verão da anarquia, de
              Hans Magnus Enzensberger, adaptada por Paulo José Lara (vulgo Pa-
              jeh) em uma conversa de bar em 2019 em São Paulo, com o nome de
              algum projeto que virá.
              206
                  Em 2018, sintetizei essa ideia num texto chamado “Ressaca da
              internet, espírito do tempo”, escrito no BaixaCultura. Um trecho:
              “Não sabia, ou não queria acreditar, ou não queria escrever nem falar
              publicamente que não acreditava, que os grandes atores da internet
              transformariam a internet no que ela é hoje, um espaço fechado onde
              nós estamos presos em bolhas algorítmicas privadas das quais pouco
              ou nada sabemos do seu funcionamento – e só de um ano pra cá,
              com Trump e Brexit, começamos a ver as potencialidades nefastas
              para a política desse arranjo entre pessoas e sistemas técnicos como
              o Facebook”. Disponível em: http://baixacultura.org/ressaca-da-inter-
              net-espirito-do-tempo.


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                     comportamentos ingênuos adotados nas duas primeiras
                     décadas da rede passaram a ser frequentes – entre estes à
                     cultura livre e, particularmente, ao copyleft. O sociólogo
                     espanhol César Rendueles, em um livro que é todo uma
                     análise da crença ciberfetichista de que a internet resolve-
                     ria todos os nossos problemas sociais, econômicos e po-
                     líticos (Sociofobia, 2016), resgata um aspecto importante
                     nessa crítica pós-ressaca: a livre circulação de informação
                     e compartilhamento de arquivos pode ser vista também
                     como uma desregulamentação completa, próxima à que
                     ocorre no livre mercado – que estava na raiz da criação do
                     copyright e da proposta inicial de Lessig da cultura livre.
                     Guarda uma relação, portanto, com a universalização do
                     mercado capitalista desenvolvido a partir do século XIX e
                     propaga o “dogma de que a coordenação social surge es-
                     pontaneamente da interação individual egoísta, sem ne-
                     cessidade de nenhuma mediação institucional”207.
                         A crença ciberfetichista criticada por Rendueles foi mui-
                     to popular nos primeiros anos de internet e moldou uma
                     forma de pensar ainda hoje dominante no noticiário de tec-
                     nologia e no discurso das startups digitais. Um texto conhe-
                     cido dessa época a demonstra de maneira nítida: “A Decla-
                     ração de Independência do ciberespaço”208, publicada em 8
                     de fevereiro de 1996, escrito por John Perry Barlow – um
                     dos criadores da EFF e incentivador do Creative Commons
                     – em resposta a um ato que regularia as telecomunicações
                     nos Estados Unidos e pela primeira vez incluía a internet209.

                     207
                         Rendueles, Sociofobia: mudança política na era da utopia digital, p. 94.
                     208
                         Barlow, A Declaração de Independência do ciberespaço, em Fórum
                     Econômico Mundial, Davos, Suíça, 8 fev. 1996. Disponível em: http://
                     www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm.
                     209
                         Tendo sido um dos criadores da Eletronic Frontier Foundation


                                                                                           179



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              “Governos do Mundo Industrial, vocês, gigantes aborreci-
              dos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético, o novo
              lar da Mente. Em nome do futuro, eu peço a vocês do pas-
              sado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos
              entre nós. Vocês não têm a independência que nos une”210.
                  Suas primeiras palavras já trazem, como num manifes-
              to, uma visão utópica e idealizada de que a internet seria
              algo externo à sociedade, expressa de forma mais evidente
              num outro trecho na sequência: “Estamos formando nos-
              so próprio Contrato Social. Essa maneira de governar sur-
              girá de acordo com as condições do nosso mundo, não do
              seu. […] Nosso mundo é diferente. Seus conceitos legais
              sobre propriedade, expressão, identidade, movimento e
              contexto não se aplicam a nós. Eles são baseados na maté-
              ria. Não há nenhuma matéria aqui”211.
                  Barlow, também poeta e letrista de uma das mais co-
              nhecidas bandas da contracultura hippie da Costa Oeste
              dos Estados Unidos, o Grateful Dead, soube traduzir a no-
              vidade que a internet representou na história da humani-
              dade e se esbaldou com a promessa de que essa liberdade
              transformaria para melhor toda a sociedade.

              (EFF) em 1990, Barlow acompanhava e escrevia sobre aspectos
              econômicos, políticos e tecnológicos da internet nesse período. A
              declaração é um texto que traz ecos de outra reflexão chamada “A
              economia das ideias”, publicada em janeiro de 1994 na revista Wired
              (https://www.wired.com/1994/03/economy-ideas), e foi encomen-
              dado para um projeto chamado 24 Hours in Cyberspace, um evento
              que teve como objetivo reunir fotógrafos, jornalistas, editores, pro-
              gramadores e designers para criar, no dia 8 de fevereiro de 1996, uma
              “cápsula do tempo” colaborativa da vida on-line da época. Fonte:
              https://en.wikipedia.org/wiki/24_Hours_in_Cyberspace#cite_note-4.
              210
                  Ibidem.
              211
                  Ibidem.


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aculturaelivre.indd 180                                                               05/02/21 18:25
                            Estamos criando um mundo em que todos poderão
                            entrar sem privilégios ou preconceitos de acordo com
                            a raça, poder econômico, força militar ou lugar de nas-
                            cimento. Estamos criando um mundo onde qualquer
                            um em qualquer lugar poderá expressar suas opiniões,
                            não importando quão singular, sem temer que seja co-
                            agido ao silêncio ou conformidade. Nossas identidades
                            não possuem corpos, então, diferentemente de vocês,
                            não podemos obter ordem por meio da coerção física.
                            Acreditamos que, a partir da ética, compreensivelmente
                            interesse próprio de nossa comunidade, nossa maneira
                            de governar surgirá. Nossas identidades poderão ser dis-
                            tribuídas através de muitas de suas jurisdições.212
                     Outro texto desse período, escrito para uma revista digital
                     inglesa chamada Mute Magazine213 em 1994, se tornaria
                     conhecido ao analisar essa ideia tecnoutópica: A ideolo-
                     gia californiana, de Richard Barbrook e Andy Cameron. A
                     ideologia em questão seria uma mescla das atitudes boê-
                     mias e antiautoritárias da contracultura hippie da Costa
                     Oeste dos EUA com o utopismo tecnológico (outro nome
                     para o ciberfetichismo) e o (neo)liberalismo econômico.
                     Uma mescla de ideias um tanto inusitada – “quem pen-
                     saria que uma mistura tão contraditória de determinismo
                     tecnológico e individualismo libertário se tornaria a or-
                     todoxia híbrida da era da informação?”214 – que forma o
                     espírito das big techs dos anos 1990 em diante e alimenta
                     o entendimento de que todos podem ser “hip and rich”.
                     Para isso, bastaria acreditar em seu trabalho e ter fé em

                     212
                         Ibidem.
                     213
                         Barbrook; Cameron, The Californian Ideology. Mute, v.1, n.3, 1o set.
                     1995. Disponível em: http://www.metamute.org/editorial/articles/cali-
                     fornian-ideology.
                     214
                         Barbrook; Cameron, A ideologia californiana, p.10.


                                                                                       181



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              que as novas tecnologias de informação vão emancipar o
              ser humano ao ampliar a liberdade de cada um e reduzir o
              poder do Estado burocrático215.
                 As palavras de Barbrook e Cameron em 1995 são, qua-
              se duas décadas depois, precisas e premonitórias:
                          Por um lado, estes artesãos hi-tech não apenas tendem a
                          ser bem pagos, mas também possuem considerável au-
                          tonomia sobre seu ritmo de trabalho e local de emprego.
                          Como resultado, a fronteira cultural entre o hippie e o
                          “homem organização” tornou-se bastante vaga. Porém,
                          por outro lado, esses trabalhadores estão presos pelos
                          termos de seus contratos e não têm garantia de emprego
                          continuado. Sem o tempo livre dos hippies, o trabalho
                          em si tornou-se o principal caminho de autossatisfação
                          para boa parte da “classe virtual”.216
              A ideologia californiana reflete tanto as disciplinas da
              economia de mercado quanto as liberdades do “artesana-
              to hippie”, um híbrido unido pela fé, por vezes cega, de
              que a tecnologia digital vai resolver os problemas e criar
              uma sociedade igualitária e sem privilégios ou preconcei-
              tos onde, como muito bem representa “A Declaração de
              Independência do ciberespaço”, de Barlow, todos possam
              expressar suas opiniões sem se importar com o quanto
              elas sejam singulares e diferentes.
                 Com a ascensão do streaming e das redes sociais fica-
              ria mais visível que uma sociedade onde as tecnologias
              de informação conectadas em rede resolvem tudo não é
              necessariamente melhor, e pode ser muito pior. Um siste-
              ma algorítmico forte que, como um deus ex machina, seja
              chamado para resolver tudo ao final endossa uma crença

              215
                    Ibidem.
              216
                    Ibidem.


              182



aculturaelivre.indd 182                                                             05/02/21 18:25
                     também conhecida como solucionismo tecnológico – a
                     ideia de que basta um software, um algoritmo, mais tec-
                     nologia, para resolver e consertar todos os problemas do
                     mundo. É a busca de uma saída mágica, rápida e supos-
                     tamente indolor que descarta as alternativas institucionais
                     ou construídas pela organização da sociedade civil, mais
                     lentas e complexas, e que pode ser comprada pronta, ofe-
                     recida por empresas criadas ou de alguma forma relacio-
                     nadas aos serviços fornecidos pelas big techs. Um caminho
                     que, durante a pandemia do novo coronavírus em 2020,
                     passou por uma espécie de túnel de aceleração ultraveloz,
                     com a proliferação de aplicativos que avaliavam, por exem-
                     plo, os deslocamentos das pessoas em quarentena, ou ras-
                     treavam e qualificavam quem poderia ou não sair de casa
                     a partir de uma série de dados coletados e processados por
                     algoritmos privados217. Os mesmos dados usados para algo

                     217
                        Reportagem de Sam Biddle, “Coronavírus traz novos riscos de
                     abuso de vigilância digital sobre a população”, The Intercept, 6 abr. 2020,
                     disponível em: https://theintercept.com/2020/04/06/coronavirus-
                     covid-19-vigilancia-privacidade, diz que na Coreia do Sul, em Taiwan
                     e em Israel, autoridades usaram dados de localização de smartphones
                     para impor quarentenas individuais. A Palantir, empresa contratada
                     pela NSA dos Estados Unidos, ajudou o Serviço Nacional de Saúde
                     da Grã-Bretanha a rastrear infecções. Aplicativos que se aproveitam
                     da alta precisão dos sensores presentes nos smartphones para impor
                     distanciamento social ou mapear os movimentos dos infectados foram
                     implantados em Cingapura, na Polônia e no Quênia. No Brasil, uma
                     das principais operadoras de internet, a Vivo, diz que anonimiza os
                     dados de localização de seus usuários, mas, na prática, é possível
                     localizá-los, o que viola os direitos individuais por influir na esfera
                     privada de cada pessoa sem autorização e conhecimento, como mostra
                     uma reportagem de Tatiana Dias no The Intercept Brasil: “Vigiar e
                     lucrar” (https://theintercept.com/2020/04/13/vivo-venda-localizacao-


                                                                                          183



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              entendido como positivo porque diz respeito à saúde de
              toda a sociedade – o controle do deslocamento de pessoas
              que poderiam transmitir um vírus – podem também ser
              usados para uma intrusão ainda maior da publicidade de
              produtos customizados. O que gera ainda mais classifica-
              ção – e consequente exclusão – das pessoas conforme seus
              padrões de consumo na internet e impulsiona a vigilância
              on-line de todos os hábitos de uma pessoa na rede.
                  Além de pôr ainda mais em risco a privacidade dos
              usuários, soluções tecnológicas prontas, produzidas por
              empresas privadas e compradas como salvadoras por go-
              vernos, não tocam naquilo que se constituiu como a ins-
              tituição central da vida moderna: o mercado218. A crítica
              de Rendueles ao copyleft reside também no fato de que o
              problema principal a ser resolvido com ele é o rompimento
              das barreiras de livre circulação da informação e acesso a
              bens culturais, sem, entretanto, e na maior parte das vezes,
              tocar nas condições sociais desse mercado. A forma como
              a já citada energia viva das pessoas passa a ser explorada
              por empresas que não as tratam mais como trabalhado-
              res, mas colaboradores, trocando direitos trabalhistas his-
              toricamente conquistados por uma suposta liberdade de
              escolher seus horários de trabalho, tendeu a ser, durante
              boa parte da existência do copyleft até aqui, um problema
              lateral. A fonte dos problemas escolhida não seria o mer-
              cado da informação nem o mercado de trabalho, mas sim


              anonima). Esses mesmos dados de localização foram cedidos para
              empresas e governos para o monitoramento da pandemia no Brasil.
              218
                  Morozov, Solucionismo, nova aposta das elites globais, Outras Pa-
              lavras, 23 abr. 2020. Disponível em: https://outraspalavras.net/tecno-
              logiaemdisputa/solucionismo-nova-aposta-das-elites-globais.


              184



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                     as barreiras à circulação e ao uso da informação219.Outro
                     aspecto da crítica ao copyleft é que mais acesso à informa-
                     ção ou mais obras baixadas não necessariamente significa
                     consciência crítica. A desinformação e o crescimento de
                     um mercado de informações falsas (fake news) foi, tanto
                     quanto a proliferação do midiativismo220, um dos resulta-
                     dos da “liberação do polo emissor da informação” para que
                     qualquer um – com acesso à internet – pudesse falar em
                     um blog, site ou um perfil em redes sociais. Um resultado
                     que é fruto direto de o mercado (de softwares e produtos
                     tecnológicos em especial) se manter intocável, sem regu-
                     larização estatal ou equilíbrio externo, o que nos últimos
                     anos tem trazido consequências como a proliferação das
                     informações falsas e o uso destas na manipulação de mas-
                     sas de pessoas para fins político-eleitorais, caso das elei-
                     ções e de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e de
                     Jair Bolsonaro no Brasil em 2018.
                         O rompimento de todas as barreiras de entrada de
                     acesso à fala na rede alimentou – e foi alimentado – pelo
                     que o cientista e escritor Jaron Lanier chama de Bummer
                     (Behaviors of User Modified Made into an Empire for Rent221),

                     219
                         Rendueles, op. cit., p.87.
                     220
                         Midiativismo é uma identificação que, popularizada nos anos 1990
                     e 2000, relaciona-se a movimentos de reação que “aumentam a cons-
                     ciência pública sobre a influência da mídia e fomentaram as demandas
                     de democratização e acesso público à mídia”, como diz a pesquisadora
                     Stepania Milan, “When Algorithms Shape Collective Action: Social
                     Media and the Dynamics of Cloud Protesting”, em Social Media + So-
                     ciety. Em alguns casos, é usado como sinônimo de mídia alternativa
                     e mídia cidadã, entre outros termos. Sobre as definições possíveis de
                     midiativismo escrevi um texto (Foletto, “Midiativismo, mídia alterna-
                     tiva, radical, livre, tática: um inventário de conceitos semelhantes”).
                     221
                         Lanier a define em Dez argumentos para você deletar agora suas re-


                                                                                      185



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              uma máquina estatística (presente nas redes sociais e nos
              algoritmos de streaming, por exemplo) que vive nas nuvens
              da computação e, sob o pretexto de organizar a informação
              do mundo, tem modificado o comportamento de milhares
              de pessoas. A Bummer, diz Lanier, busca “otimizar a vida”,
              e ao fazer isso nivela qualquer tipo de informação: o que
              importa é a circulação de dados, sejam quais forem. É nesse
              contexto que a proliferação das informações falsas se con-
              sagra ao adquirir maior valor de troca do que as verídicas,
              sendo mais baratas para produzir e potencialmente mais
              fáceis de circular, direcionadas de acordo com os interesses
              de grupos específicos para reforçar suas perspectivas pré-
              vias sobre a realidade222. Nesse cenário, “mais próximo a um
              pesadelo reacionário do que a um comunitarismo”, como
              diz Rendueles223, não por acaso têm novamente se discutido
              as formas de regulação estatal das big techs, especialmente

              des sociais, livro que propõe uma crítica feroz às redes sociais, os prin-
              cipais exemplos de atuação dessa máquina estatística. Na p.44, ele usa
              uma curiosa fórmula para memorizar os seis componentes da Bum-
              mer, cada uma a ser desenvolvida nas páginas seguintes de seu livro:
              “A de aquisição de Atenção que resulta na supremacia do babaca; B de
              meter o Bedelho na vida de todo o Mundo; C de Comprimir Conteú-
              do goela das pessoas abaixo; D de Direcionar o comportamento das
              pessoas da maneira mais sorrateira possível; E de Embolsar dinheiro
              ao deixar que os maiores babacas ferrem secretamente todas as outras
              pessoas; F de multidões Falsas e sociedade Falsificadora”.
              222
                  A análise do valor das informações jornalísticas verdadeiras e da
              proliferação das informações falsas a partir dos oligopólios de tecnolo-
              gia da informação é um dos focos que o professor e pesquisador Elias
              Machado tem trabalhado para sua tese de livre-docência na UFSC. Ele
              a tem discutido publicamente nas próprias redes sociais e a antecipou
              a mim, em algumas conversas virtuais, de onde formulei esse trecho.
              223
                  Rendueles, op. cit., p.102.


              186



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                     na União Europeia e nos Estados Unidos, a partir de leis
                     de proteção de dados pessoais, de propostas de moderação
                     do espalhamento de informações falsas nas redes sociais e
                     taxação dos lucros das big techs224. É curioso notar que es-
                     sas propostas de regulação já estavam, entre outros luga-
                     res, em diversos trechos do já citado ensaio de Barbrook e
                     Cameron, de 1995, que aponta para um futuro digital como
                     uma mistura de “intervenção estatal, empreendedorismo
                     capitalista e cultura faça-você-mesmo”225.

                     VII.

                     A escolha do movimento da cultura livre em tratar a bar-
                     reira ao acesso à informação e ao conhecimento como
                     sua principal questão tem várias justificativas, algumas já
                     apresentadas aqui, boa parte delas relacionada à questão
                     da área de origem de seu termo, a produção de software.
                     Para Rendueles, e também Dimitry Kleiner em The Tele-
                     kommunist Manifesto (2010), o copyleft falharia ao não
                     perceber as diferenças implícitas entre o software e a cultu-
                     ra livre. No primeiro, as condições sociais de remuneração
                     dos programadores de software, por exemplo, não costu-
                     mam ser dependentes da venda por unidade de produção
                     (software), mas por serviço continuado, desenvolvimento,
                     customização e manutenção, entre outras formas ainda

                     224
                         Sobre taxação: em 2020, a Europa lançou um pacote tributário que
                     teve como medidas garantir que os países do bloco troquem informa-
                     ções sobre as receitas geradas pelas vendas em plataformas on-line,
                     a ser implementado nos anos seguintes. Fonte: https://www1.folha.
                     uol.com.br/mercado/2020/07/europa-lanca-pacote-tributario-para-
                     -apertar-cerco-a-gigantes-digitais.shtml?.
                     225
                         Barbrook; Cameron, op. cit., p.37.


                                                                                    187



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              mais complexas que envolvem a venda casada com outros
              produtos. É prática na área de desenvolvimento de softwa-
              re liberar um código e vender serviços sobre ele também
              porque esse procedimento, além de ser parte do modo co-
              laborativo e fragmentado em que o software é produzido
              desde seu início226, não atrapalha a remuneração dos seus
              desenvolvedores. Não só é possível liberar um código e
              vender serviços sobre ele em paralelo como também existe
              um mercado de tecnologias abertas, inspirado na ideia do
              movimento open source, em que um dos principais atores
              é a Microsoft, histórica opositora ao software livre227.
                  Nesse aspecto, a situação da cultura é um pouco diferen-
              te. Trabalhadores do setor, como músicos, em sua maioria
              autônomos não assalariados (ao contrário de programado-
              res de software), têm como principal fonte de renda a execu-
              ção individual de suas obras ao vivo (shows) e de uma por-
              centagem por obra comercializada228. A liberação de uma
              música e a venda de serviços sobre ela, tal qual no software,
              é ainda possível – e prática de muitos artistas, seja por prin-
              cípios éticos ou, principalmente, como forma de “isca” para
              a venda de shows. Mas, não sendo assalariados como os de-

              226
                  “O desenvolvimento de software pode e deve ser fragmentado. Há
              toda uma mitologia sobre programadores independentes trabalhando
              em sua garagem de madrugada, mas a verdade é que o desmembra-
              mento de um grande projeto em um pacote de problemas a se resolver
              coletivamente em uma espécie de linha de montagem não é uma op-
              ção, e sim uma necessidade técnica.” Rendueles, op. cit., p.90.
              227
                  Um texto da Linux Foundation explica como funciona o trabalho
              open source da Microsoft: Baker, The Open Source Programa at Mi-
              crosoft: How Open Source Thrives, The Linux Foundation, 2 mar. 2018,
              disponível em: https://www.linuxfoundation.org/blog/2018/03/open-
              -source-program-microsoft-open-source-thrives.
              228
                  Rendueles, op. cit., p.86.


              188



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                     senvolvedores de software, é mais difícil existir serviço agre-
                     gado a ser oferecido que compense o seu custo. Para Ren-
                     dueles e Kleiner, liberar gratuitamente a informação usada
                     para a produção de um software – o código – não altera a
                     remuneração (na maioria dos casos, já garantida) de seus
                     produtores quanto disponibilizar na íntegra e de graça uma
                     informação musical – uma música ou um disco – modifi-
                     caria os ganhos de um músico autônomo. Esse argumento,
                     diz Rendueles, foi um dos que teria limitado o alcance das
                     licenças livres baseadas no copyleft para a área cultural.
                         Há também nessa posição uma ressalva importante:
                     licenciar uma obra cultural para modificação e também
                     para uso comercial, como o copyleft propôs primeiramen-
                     te para o software, pode se tornar, na prática, pouco razoá-
                     vel para músicos e outros artistas independentes. Por mais
                     criatividade que haja na escrita de linhas de código, ele é
                     um conjunto de instruções a serem executadas por uma
                     máquina, um tipo de produto intelectual que tem uma
                     função específica que depende de outro objeto para ser
                     realizado. Não é preciso dizer que uma obra de arte como
                     uma música ou um filme tem por objetivo uma apreciação
                     estética ou de entretenimento que não costuma ser apenas
                     funcional. Um software e uma obra cultural são objetos
                     de naturezas diferentes, produzidos de jeitos e para fins
                     distintos, o que significaria que também seus produtores
                     não deveriam ser tratados da mesma forma
                         O próprio Stallman comenta a questão: “para os roman-
                     ces, e em geral para as obras que são utilizadas como entrete-
                     nimento, a redistribuição textual não comercial poderia ser
                     uma liberdade suficiente para os leitores”229. O propositor

                       Em “Malinterpretar el copyright: una sucesión de errores”, na edi-
                     229

                     ção (em espanhol) aqui usada: Stallman, Software libre para una socie-


                                                                                     189



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              do copyleft argumenta que esse tipo de obra, assim como
              trabalhos que informam o pensamento de uma pessoa (me-
              mórias, artigos de opinião e científicos), deveriam ter possi-
              bilidades limitadas de uso, pois são diferentes das obras que
              ele categoriza como “funcionais”, nas quais se incluem recei-
              tas, obras educativas e os softwares. Ele então defende que,
              nos casos de obras estéticas e que informam o pensamento
              de alguém, ter a liberdade de fazer cópias já seria suficien-
              te para que qualquer pessoa pudesse compartilhar como e
              onde bem quisesse, vetando o uso comercial e certas possi-
              bilidades de modificação da obra que pudessem alterar ou
              deturpar a visão proposta pelo seu autor. Essa perspectiva
              de Stallman apresenta o copyleft como uma ideia que não
              quer destruir o copyright, mas reformá-lo, inclusive com
              alguns pontos que retomam seu início no século XVIII –
              caso da proposta, defendida pelo criador do software livre
              no mesmo texto, de alteração para dez anos do período de
              duração do copyright230. Nesse entendimento, os autores te-
              riam, em tese, formas de garantir que suas ideias não seriam
              deturpadas e que seus ganhos não seriam tão afetados.
                  Um outro modo, mais prático, de equilibrar a equação
              remuneração dos autores vs. respeito às formas “originais”
              das ideias vs. acesso público aos bens criativos da humani-
              dade é a visão que Kleiner231 apresenta com o conceito de


              dade libre, p.119. Tradução minha.
              230
                  Ibidem. E como detalha Aracele Torres: “A sua justificativa para redu-
              zir o monopólio sobre a cópia a um prazo de dez anos é a de que essa re-
              dução teria pouco impacto sobre a edição de obras de hoje, pois ele con-
              sidera esse tempo suficiente para que uma obra de sucesso seja rentável.
              Além do mais, de acordo com ele, as obras de um modo geral costumam
              estar fora de catálogo bem antes desse prazo” (Torres, op. cit., p.168).
              231
                  Kleiner, The Telekommunist Manifesto.


              190



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                     licenças copyfarleft232, que têm uma regra para uso na pro-
                     dução coletiva e outra para uso por quem empregue tra-
                     balho assalariado em sua produção. Aos trabalhadoras/es,
                     por exemplo, seria permitido o uso, inclusive comercial,
                     da obra cultural, mas não àqueles que explorem o trabalho
                     assalariado, que seriam obrigados a negociar o acesso233.
                     De acordo com sua proposta, “seria possível preservar um
                     estoque comum de bens culturais disponível a produtores
                     independentes das grandes indústrias da intermediação já
                     citadas, mas ao mesmo tempo impedir sua expropriação
                     por agentes privados”234.
                         Estoque comum de bens culturais. Domínio público.
                     Aqui aportamos num campo de discussão maior em que,
                     desde meados dos anos 2000, a cultura livre tem desembo-
                     cado como um afluente caudaloso: o comum (procomún,
                     em espanhol; commons, em inglês235). Conceito amplo,

                     232
                         Uma versão atualizada da mesma ideia ganhou o nome de copyfair e
                     foi definida por Michel Bauwens, fundador da P2P Foundation, como
                     “um princípio que visa reintroduzir requisitos de reciprocidade nas
                     atividades de mercado”. Faz isso ao preservar o direito de compartilhar
                     conhecimento sem objeções, mas visa sujeitar a comercialização
                     de tais bens comuns a algum tipo de contribuição para esses bens
                     comuns (https://wiki.p2pfoundation.net/Copyfair). Uma das licenças
                     criadas como exemplo desse conceito e com as mesmas limitações
                     de venda que a copyfarleft é a Peer Production License (https://wiki.
                     p2pfoundation.net/Peer_Production_License), usada no âmbito do
                     comum – no Brasil, é a usada no projeto Biblioteca do Comum (http://
                     bibliotecadocomum.org).
                     233
                         Foletto; Martins; Luna, Encontro on-line cultura livre do sul: a pro-
                     dução cultural comunitária para a construção do comum, Contratex-
                     to, p.114.
                     234
                         Ibidem.
                     235
                         Savazoni, op. cit., p.29-30.


                                                                                        191



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              de larga tradição histórica que remete aos gregos236, o co-
              mum, historicamente, definiu tanto um conjunto de recur-
              sos (bosques, água, ar, campos) e coisas (uma ferramenta,
              uma máquina) como um produto social e uma prática.
              Em O comum entre nós, Rodrigo Savazoni usa as palavras
              de Massimo De Angelis, “there is no commons without
              commoning”237, e as do pesquisador brasileiro Miguel Said
              Vieira para designar o comum como um “substantivo” (o
              conjunto de bens compartilhados) e um “verbo” (a ação de
              compartilhar; o commoning, o “fazer comum”)238.
                  São muitos os pesquisadores e pesquisadoras que tra-
              balham com a ideia de comum. A começar por “A tra-
              gédia dos comuns”, publicado em 1968 pelo ecologista
              Garret Hardin, que, ao analisar o uso comum de um pas-
              to aberto por diferentes rebanhos, argumenta que uma
              gestão comum desse e outros comuns livres levarão a sua
              destruição – a solução seria a privatização ou a estatiza-
              ção. Algumas décadas mais tarde, Elinor Ostrom con-
              fronta essa ideia e, com estudos sistemáticos dos modelos
              de gestão autônoma de bens comuns como alternativa à
              gestão privada ou exclusivamente estatal dos bens natu-
              rais, ganha o Prêmio Nobel em Ciências Econômicas em
              2009239. Também a partir dos anos 1990 e 2000, o comum
              se (re)aproxima da luta política do final do século XIX,
              em especial na esquerda de origem autonomista e a par-
              tir de obras (como Multidão, de 2004) de Michel Hardt e

              236
                  Savazoni, op. cit., p.45.
              237
                  De Angelis, Introduction. The Commoner, n.11, p.1.
              238
                  Savazoni, op. cit., p.39.
              239
                  Depois, cria a Associação Internacional para o Estudo dos Comuns
              (Iasc), que hoje reúne pesquisadores e ativistas do comum de diferen-
              tes países. Site: https://iasc-commons.org.


              192



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                     Antonio Negri, que desenvolvem um conceito de comum
                     “como resultante da prática biopolítica da multidão, que
                     se constitui como uma rede ‘aberta e em expansão’, múlti-
                     pla e disforme, ampla e plural, que age para que possamos
                     ‘trabalhar e viver em comum’”240. Há também a obra de
                     Sílvia Federici, que, sobretudo em Calibã e a bruxa (2004)
                     e O ponto zero da revolução (2019), evoca a importância
                     do trabalho feminino para preservar os comuns: “As mu-
                     lheres estavam na dianteira na luta contra os cercamen-
                     tos, tanto na Inglaterra quanto no ‘Novo Mundo’, e eram
                     as defensoras mais ferrenhas das culturas comunais que a
                     colonização europeia tentava destruir”241.
                         O comum passa a ser com mais frequência relaciona-
                     do a bens como software, conhecimento e aos arquivos de
                     bens culturais na rede, assim como nos modos autônomos
                     de gestão desses bens pelas comunidades, em meados da
                     década de 2000, com a propagação das tecnologias digitais
                     e da internet. Ao transformar o software em um conheci-
                     mento de uso, produção e gestão comum, o copyleft tor-
                     nou o software livre um commons intelectual, diz Benkler
                     em The Wealth of Networks (2006), um dos primeiros a
                     aproximar o comum das tecnologias digitais em rede. Os
                     commons intelectuais seriam baseados na informação di-

                     240
                         Savazoni, O comum entre nós: da cultura digital à democracia do
                     século XXI, p.46.
                     241
                         Em Federici, O ponto zero da revolução, p.313. Até hoje, são grupos
                     de mulheres que preservam os comuns dos modos de vida coletivos nas
                     montanhas do Peru e de agricultoras de subsistência africanas (que, se-
                     gundo Federici, produzem 80% dos alimentos que a população do con-
                     tinente consome), para citar dois exemplos. O trabalho da historiadora
                     aproxima os estudos feministas do comum e coloca os meios materiais
                     de reprodução como mecanismo primário para o “tornar comum”.


                                                                                      193



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              gital posta em circulação na internet, bens não rivais que,
              ao serem consumidos ou usados por uma pessoa, não se
              tornam indisponíveis para ser consumidos ou usados por
              outras242. Por conta dessa característica, formariam uma
              nova modalidade de produção do conhecimento cola-
              borativa baseada em bens comuns (commons-based peer
              production – CBPP), que, na visão do autor, geraria uma
              nova economia mais democrática e distributiva que a do
              período industrial.
                  A formulação de Benkler foi usada nos anos seguin-
              tes por alguns “economistas do comum”, entre eles Michel
              Bauwens, criador da P2P Foundation, que “aponta que
              a economia dos pares dá origem a um terceiro modo de
              produção, de governança e de propriedade, que persegue
              o adágio ‘de cada um de acordo com suas capacidades; a
              cada um de acordo com suas necessidades’”243. A cultura
              livre, nesse sentido, seria a face dos bens culturais desse
              terceiro modo de produção (os outros dois seriam, grosso
              modo, o capitalismo e o socialismo), que “reorganizaria o
              sistema produtivo em torno do cuidado e da solidarieda-
              de, da troca equitativa entre pares e baseada na atuação
              de empreendedores cidadãos cujo objetivo final não é a
              maximização do lucro, mas sim a melhoria das condições
              sociais de todas e todos”244.




              242
                  Torres, op. cit., p.137.
              243
                  Savazoni, op. cit., p.49.
              244
                  Ibidem, p.49.


              194



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                          195



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                                CAPÍTULO 6
                          CULTURA COLETIVA




              196



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                                        Eu sou porque nós somos.

                                                           Ubuntu


                          O Mestre disse: “Eu transmito, mas não
                          inovo; sou verdadeiro no que digo e
                          devotado à Antiguidade”.

                            Confúcio, Os analectos, aprox. séc.
                                                     IV-II a.C.


                          A visão ameríndia trata, por exemplo,
                          os objetos como registros menos passi-
                          vos das capacidades de um sujeito do que
                          as objetificações personificadas dessas
                          relações. De modo que a criação se dá
                          distribuída na relação entre os múlti-
                          plos objetos e pessoas, sem esta sepa-
                          ração entre sujeito e objeto, intelec-
                          to e matéria, que estamos acostumados
                          a fazer no Ocidente. A subjetividade
                          também existe nos objetos e forma uma
                          animada paisagem composta de diferentes
                          tipos de níveis de ações humanas.

                              Marcela Stockler Coelho de Souza,
                             The Forgotten Pattern and the Sto-
                             len Design: Contract, Exchange and
                             Creativity among the Kĩsêdjê, 2016


                          Como feministas temos que nos opor ao
                          caráter patriarcal do direito de autor,
                          gerar um paradigma que valorize a cria-


                                                              197



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                          ção como prática social e comunitária e,
                          sobretudo, buscar mudar as leis que hoje
                          criminalizam ou proíbem práticas funda-
                          mentais para a liberdade de expressão,
                          para a troca, a distribuição e a reapro-
                          priação da cultura. Temos que calar as
                          musas que inspiram os gênios, para que
                          possam enfim falar as mulheres.

                           Evelin Heidel (Scann), Que se callen
                                                las musas, 2017




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                     I.

                     O fato de nós, ocidentais, termos claro que a organização
                     de ideias em um dado objeto que circula para outras pes-
                     soas nos torna autores – portanto, supostamente legítimos
                     proprietários de direitos autorais sobre nossa criação – é
                     fruto de um percurso filosófico e de um modo de ver o
                     mundo que foi brevemente apresentado até aqui neste li-
                     vro. Mas esse modo de ver o mundo e as coisas não é o
                     único presente neste planeta conhecido como Terra, mas
                     apenas uma perspectiva, destacada genericamente aqui
                     como ocidental. Mesmo que essa seja a perspectiva do-
                     minante, reguladora da vida nas sociedades capitalistas,
                     cabe lembrar que existem outras, presentes em muitos lu-
                     gares e comunidades tradicionais, que entram em conflito
                     com certas ideias e modos de agir arraigados na socieda-
                     de capitalista, na qual a propriedade intelectual se erigiu.
                     Cuidado, solidariedade, colaboração e coletividade, por
                     exemplo, são valores ainda importantes e dominantes em
                     muitas comunidades e culturas milenares que mantiveram
                     alguns de seus costumes baseados na suficiência, e não na


                                                                            199



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              acumulação, e no cultivo de uma sabedoria colaborativa e
              coletiva à margem da busca individualista e proprietária
              da cultura predominante no Ocidente.
                 Como falar em original e cópia, por exemplo, se uma
              cultura de dois milênios do Extremo Oriente incentiva a
              reprodução e trata como mais importante do que a origem
              de uma ideia o seu conteúdo e a sua permanência, mesmo
              que modificada e reinventada a cada contexto? Ou como
              dizer que há um único humano dono de ideias quando para
              muitos povos originários, entre eles alguns ameríndios, não
              existe a separação entre sujeito e objeto como conhecemos
              no Ocidente, e a subjetividade criadora, a quem se deveria
              atribuir a “autoria” ou a “posse” dos bens, é distribuída em
              uma vasta rede que inclui pessoas e objetos, natureza e so-
              ciedade de modo praticamente simétrico?
                 Na África, por exemplo, há alguns séculos uma filosofia
              humanista pré-colonial conhecida como Ubuntu245 diz: “eu
              sou porque nós somos”. Termo de origem nguni banto, in-
              fluente na luta contra o apartheid na África do Sul e conheci-
              da daí até a África Subsaariana, o Ubuntu se caracteriza pela
              humanidade com seus semelhantes através da veneração aos
              seus ancestrais, de forma fraterna e com compaixão, incluin-
              do aí considerar semelhantes todas as formas de vida – um

              245
                 Considerada uma filosofia de circulação oral e não associada a ne-
              nhum texto específico, é uma palavra que tem variantes em diversas
              línguas africanas: umundu em Kikuyu e umuntu em Kimeru, duas lín-
              guas faladas no Quênia; bumuntu em kiSukuma e KiHaya, faladas na
              Tanzânia; vumuntu em shiTsonga e shiTswa em Moçambique; bomoto
              em Bobangi, falado na República Democrática do Congo; gimuntu
              em kiKongo e giKwese, falados no mesmo Congo e em Angola, res-
              pectivamente. Fonte: Eze, Intelectual History in Contemporary South
              Africa, p.91.


              200



aculturaelivre.indd 200                                                               05/02/21 18:25
                     biocentrismo que também se opõe ao antropocentrismo ca-
                     racterístico da sociedade ocidental246, na qual se constituem
                     a propriedade intelectual e o direito autoral. “A episteme e a
                     filosofia negra do Ubuntu tem um sentido de conhecimento
                     diferente do Ocidente, um conhecimento integralizador da
                     razão e da emoção, de forma que o sujeito não apenas vê o
                     objeto, mas também o sente, portanto, ‘sujeito e objeto estão
                     mutuamente afetados no ato do conhecimento’”247.
                         Uma cosmovisão que tem valores como respeito, corte-
                     sia, compartilhamento, comunidade, generosidade, con-
                     fiança e desprendimento248, em que o nós prevalece e o eu
                     está incluso no nós, tem dificuldade de se encaixar numa
                     sistema filosófico e jurídico como o do Ocidente. Como
                     tornar um produto único e pertencente a uma pessoa se
                     ele é fruto de um esforço coletivo ancestral e tem por fim
                     a veiculação de uma ideia (ou um objeto) construído a
                     muitas mãos? Comunidades que têm um modo e uma
                     prática de conhecer o mundo guiadas pelo coletivo e pelo
                     comunitário permanecem, ainda que com dificuldades e
                     muitos embates, preservando seus bens culturais e suas
                     tradições há muito tempo, em que pese o confronto com
                     a visão ocidental exclusivista que enxerga produtos de an-
                     cestralidade apenas como um bem passível de circulação
                     num mercado. Mais do que nos manter presos a um pas-

                     246
                         Negreiros, Ubuntu: considerações acerca de uma filosofia africana
                     em contraposição à tradicional filosofia ocidental, Problemata: R. In-
                     tern. Fil., v.10, n.2, p.123.
                     247
                         Mance, Filosofia africana: autenticidade e libertação, em Serra, O
                     que é filosofia africana?, p.75.
                     248
                         Como apontados por Nelson Mandela em um vídeo expli-
                     cativo do Ubuntu disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
                     Ficheiro:Experience_ubuntu.ogv.


                                                                                     201



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              sado idealizado, examinar um pouco mais algumas dessas
              perspectivas podem iluminar caminhos alternativos para
              o presente e nos deixar entender um pouco mais como a
              cultura através dos tempos se fez e se faz livre.

              II.

              Shanzai é um neologismo chinês criado nos anos 2000
              para dizer o que é falso, fake. Abarca de literatura a prê-
              mios Nobel, deputados, parques de diversões, tênis, mú-
              sicas, filmes, histórias das mais diversas. No princípio, o
              termo se referia só aos telefones (smartphones) ou à falsi-
              ficação de produtos de marcas como Nokia ou Samsung e
              que se comercializam com o nome de Nokir, Samsing ou
              Anycat. Logo, porém, se expandiram para todas as áreas,
              em jogos que, à maneira do Dada, usavam da criatividade
              e de efeitos paródicos e subversivos com as marcas “ori-
              ginais” para criar outros nomes – Adidas, por exemplo,
              se converte em Adidos, Adadas, Adis, Dasida249... São, po-
              rém, mais que meras falsificações: seus desenhos e funcio-
              nalidades não devem nada aos originais e as modificações
              técnicas ou estéticas realizadas lhes conferem uma iden-
              tidade própria250. Os produtos shanzai se caracterizam
              sobretudo por sua grande flexibilidade, adaptativos con-
              forme as necessidades e situações concretas, “algo que não
              está ao alcance de uma grande empresa, pois seus proces-
              sos de produção estão fixados em longo prazo”251.


              249
                  Han, Shanzai: el arte de la falsificación y la deconstrucción en China,
              p.73.
              250
                  Ibidem.
              251
                  Ibidem.


              202



aculturaelivre.indd 202                                                                     05/02/21 18:25
                        Em Shanzhai: el arte de la falsificación y la deconstruc-
                     ción en China, o filósofo sul-coreano radicado na Ale-
                     manha Byung-Chul Han analisa diversas obras artísticas
                     chinesas, shanzai ou não, e ocidentais para trabalhar com
                     a ideia de como são construídas as noções de autoria e
                     originalidade no Extremo Oriente. Para ilustrar a diferen-
                     ça em relação ao Ocidente, cita a ideia de ádyton, que em
                     grego antigo significa “inacessível” ou “intransitável”. A
                     origem da palavra remete ao espaço interior de um tem-
                     plo da Grécia antiga que era completamente apartado do
                     exterior onde se celebravam os cultos religiosos. “O isola-
                     mento define o sagrado”, diz Han: a noção do estar isolado
                     para poder se encontrar com Deus, ou consigo mesmo, é
                     diferente no Extremo Oriente, a começar pela arquitetura
                     dos espaços ditos sagrados: “O templo budista se caracte-
                     riza pela permeabilidade ou pela abertura completa. Al-
                     guns templos têm portas e janelas que não isolam nada”252.
                        No pensamento chinês não há ádyton, nem como espa-
                     ço, nem como ideia. Nada se separa nem se fecha: o pen-
                     samento de que algo esteja apartado ou isolado do todo
                     é alheio ao modo de pensar predominante no Extremo
                     Oriente253. Assim, não haveria a ideia de original tal qual
                     se entende no Ocidente, posto que a originalidade pres-
                     supõe um começo no sentido estrito, o que uma parte do
                     pensamento chinês tradicional renega ao não conceber
                     a criação a partir de um princípio absoluto e individual,
                     mas sim pelo processo contínuo, sem começo nem final,
                     sem nascimento nem morte, fundamentalmente coletivo.
                     A desconfiança dos princípios imutáveis e dos “gênios”
                     criativos individuais remete à falta de essência e a um cer-

                     252
                           Ibidem.
                     253
                           Ibidem.


                                                                            203



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              to vazio que, aos olhos ocidentais – exemplificados por
              Han no pensamento crítico a essas noções orientais do fi-
              lósofo alemão Hegel, um dos mais influentes pensadores
              do Ocidente –, pode ser visto como hipocrisia, astúcia ou
              até mesmo imoralidade.
                 Falar em autoria, originalidade e, em consequência,
              de direito autoral, copyright e cultura livre no Extremo
              Oriente é, portanto, diferente de falar sobre isso no mun-
              do ocidental. Esse modo de pensar que ignora o ádyton,
              o “inacessível”, seja enquanto lugar ou como ideia, parte
              de uma noção de verdade como processo, ou seja: mais ba-
              seado na inclusão contínua de diversos elementos do que
              na exclusão e consequente união em torno de um único
              elemento separado do todo, como costumamos pensar
              no Ocidente. Se a verdade está em processo contínuo de
              produção, a noção de onde ela vem – sua originalidade
              – perde importância; não é mais a origem única que im-
              porta, mas que o conteúdo dessa verdade transcenda, cir-
              cule, seja reorganizado e complementado de acordo com
              contextos, objetivos e propósitos variados. Cada elemento
              é importante como parte de uma ideia que transcende de
              maneira coletiva, não como parte isolada que detém uma
              origem e uma autoria.
                 Diante disso, o processo criativo de uma obra artísti-
              ca e cultural nessa região é marcado pela continuidade e
              por mudanças silenciosas, não pela ruptura que uma ideia
              genial trazida por um artista promove, como consagrada
              na visão ocidental a partir do romantismo. Não se va-
              loriza tanto a matriz da ideia, sua origem ou seu autor,
              mas como ela vai – ou precisa – ser continuada. Se a ideia
              permanece na cópia, então é como se a obra continuasse,
              sem ruptura, sem uma “nova obra”. É como na natureza:



              204



aculturaelivre.indd 204                                                    05/02/21 18:25
                     células antigas são substituídas por um novo material ce-
                     lular. Não se pergunta pela célula original; “o velho morre
                     e é substituído pelo novo. A identidade e a novidade não
                     são excludentes”254.
                        Uma parte desse modo de ver a verdade, a originali-
                     dade e o processo de criação como algo mais coletivo que
                     individual, remete ao confucionismo (儒學), conjunto de
                     doutrinas morais, éticas, filosóficas e religiosas criadas pe-
                     los discípulos de Confúcio após a sua morte, em 479 a.C.,
                     que teve grande influência no pensamento da China e de
                     países como as Coreias, Japão, Taiwan e Vietnã, principal-
                     mente até inícios do século XX. Natural da província de
                     Lu, hoje Shantung, leste da China, Confúcio vinha de uma
                     família nobre em decadência e teve diversas ocupações
                     em sua vida – professor, funcionário público, político, car-
                     pinteiro, pastor – até cerca dos 50 anos de idade, quando
                     começou a viajar com frequência pelas províncias chine-
                     sas e angariar discípulos em torno de sua filosofia basea-
                     da na vida simples, na coletividade e no altruísmo255. Era
                     uma proposta filosófica que retomava alguns costumes de
                     dinastias chinesas mais antigas como Shang (1600-1046
                     a.C.) e a própria Zhou (1046-256 a.C.), período em que
                     havia uma decadência moral e ética na sociedade chinesa.
                        A partir da dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), os en-
                     sinamentos de Confúcio passaram a exercer profunda in-

                     254
                        Ibidem, p.64.
                     255
                        Apesar de sua importância na tradição chinesa, poucas das infor-
                     mações sobre Confúcio são de fato comprovadas. As aqui citadas são
                     baseadas no registro da Wikipédia em inglês (https://en.wikipedia.
                     org/wiki/Confucius) sobre ele e na introdução da edição brasileira de
                     Os analectos, escrita pelo também tradutor da obra do chinês para o
                     inglês, D. C. Lau.


                                                                                     205



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              fluência nos governos e na sociedade chinesa, fornecendo
              o plano do que seria uma vida ideal e a régua pela qual
              as relações humanas deveriam ser medidas256. Reinventa-
              das e reinterpretadas por diversas pessoas ao longo dos
              séculos, suas ideias moldariam uma série de costumes nas
              áreas da educação, cultura, política e das relações sociais
              do país durante diferentes momentos da China imperial.
              Só perderiam força no início do século XX, quando ter-
              mina o período imperial chinês e o confucionismo passa a
              ser acusado de ser “tradicional demais” para conviver com
              o dinamismo da então sociedade moderna ocidental.
                 A influência dos ensinamentos de Confúcio na forma
              de ver a criação na China e nos países do Extremo Oriente
              passa a ganhar certa repercussão nos estudos sobre proprie-
              dade intelectual a partir principalmente do livro To Steal
              a Book is An Elegant Offense: Intelectual Property Law in
              Chinese Civilization, de William P. Alford, publicado em
              1995. O título do livro, “Roubar um livro é uma transgres-
              são elegante”, vem de um conceito popular (Qie Shu Bu
              Suan Tou) chinês a partir de Kong Yiji, livro lançado em
              1919 por um conhecido escritor da época chamado Lu Xun.
              A história da obra gira em torno de um personagem central
              que dá nome ao livro, um intelectual autodidata alcoólatra
              e fracassado que frequenta uma taverna na cidade de Lu-
              zhen (魯鎮), base de outras ficções de Xun. Ele não passou
              no exame de xiucai, um dos muitos da China imperial da
              época, e usa em seu discurso frases clássicas confusas, que
              geram desprezo entre os outros frequentadores do local,
              que o ridicularizam também por “fazer bicos” e roubar para
              comer e beber. Uma de suas atividades era copiar manuscri-

                Yu, Intellectual Property and Confucianism: Diversity in Intellectual
              256

              Property: Identities, Interests and Intersections, p.5.


              206



aculturaelivre.indd 206                                                                 05/02/21 18:25
                     tos para clientes ricos; às vezes, também surrupiava livros
                     desses clientes para trocar por vinho na taverna. “Roubar
                     um livro é uma ofensa elegante” era o argumento que usava
                     quando insultado pelos frequentadores do local.
                         Kong Yiji, o personagem principal, foi construído como
                     um “arlequim caricato” representando um intelectual auto-
                     didata do período clássico chinês em decadência257 – no fi-
                     nal do livro, o personagem morre espancado e é esquecido.
                     A obra foi produzida no contexto do Movimento 4 de Maio,
                     do qual Lu Xun fazia parte, que em 1919 se notabilizou por
                     protestos na capital Pequim e pela crítica anti-imperialis-
                     ta (a última dinastia imperial, Qing, havia terminado em
                     1911), na qual o confucionismo e seu modo tradicional,
                     hierárquico e coletivista eram considerados como obstá-
                     culo à modernização na “competição com outras nações
                     do mundo ocidental”258. Nessa perspectiva, a literatura do
                     Movimento 4 de Maio, alinhada também às ideias moder-
                     nizadoras de outros lugares do mundo nesse período, deve-
                     ria tentar evitar os clichês da linguística tradicional chinesa
                     que dificultaram e restringiram o pensamento criativo das
                     pessoas por séculos e apostar na inovação tanto no conteú-
                     do, tido como antiquado, como na forma.
                         Mas quais seriam esses valores e ideias tradicionais que
                     os modernistas do 4 de Maio combatiam? Para o confu-
                     cionismo, o passado trazia valores sociais, éticos e morais
                     – a ideia da família, por exemplo, como unidade básica
                     que organiza a comunidade – que deveriam ser incorpo-
                     rados na sociedade contemporânea. A necessidade de co-
                     nhecer o passado para o crescimento pessoal ditava que

                     257
                         Em Yu, op. cit., que também cita aqui Feng, Intellectual Property in
                     China, p.167.
                     258
                         Yu, op. cit., p.15.


                                                                                       207



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              houvesse amplo acesso à herança comum de todos os chi-
              neses259. Como ter propriedade sobre essas obras do pas-
              sado permitiria a poucos monopolizar um conhecimen-
              to tão essencial para todos, havia então uma contradição
              entre os direitos de propriedade intelectual e os valores
              morais tradicionais da China defendidas por Confúcio.
              Ao enaltecer valores familiares e direitos coletivos, os
              chineses não teriam desenvolvido o conceito de direitos
              individuais, portanto não considerariam a criatividade e
              a inovação como propriedade individual, mas sim como
              um benefício coletivo para a comunidade e a posteridade.
              Para aqueles que consideram o individualismo um pré-re-
              quisito essencial para o desenvolvimento dos direitos de
              propriedade intelectual, essa visão de mundo representa-
              ria um grande desafio260.
                  Havia outro fato importante instalado na cultura chi-
              nesa e dos povos do Extremo Oriente a partir do confu-
              cionismo. Nessa filosofia, desde muito pequenas as crian-
              ças eram ensinadas a pensar a partir da memorização e
              da cópia dos clássicos, procedimento que, segundo seus
              mestres, incutiria nos jovens valores familiares, piedade
              filial e respeito ancestral261. A memorização e a cópia, es-
              pecialmente das obras de Confúcio, tornaram-se procedi-
              mentos necessários para garantir o sucesso nos exames do
              Serviço Público Imperial, aplicados durante treze séculos
              (entre 605 e 1905, aproximadamente) e que consistiam
              numa série de provas que serviam para selecionar a quem,
              entre a população (masculina e descendente da aristocra-

              259
                  Alford, Steal a Book Is an Elegant Offense: Intellectual Property Law
              in Chinese Civilization, p.20.
              260
                  Yu, op. cit., p.4.
              261
                  Ibidem.


              208



aculturaelivre.indd 208                                                                   05/02/21 18:25
                     cia), seria permitida a entrada na burocracia estatal – o
                     que traria poder e glória aos candidatos e honra a suas
                     famílias, distritos e províncias.
                         Quando essas crianças cresciam, elas se tornavam mais
                     compiladores que compositores. Memorizavam tantas his-
                     tórias clássicas que passavam a construir suas narrativas a
                     partir de um extenso processo de copiar e colar (cut-and-
                     -paste) frases, trechos e passagens desses textos antigos. Se
                     aos olhos de um ocidental, especialmente do século XX e
                     XXI, isso seria visto como plágio, para os chineses da épo-
                     ca era visto como um traço distintivo de intelectualidade e
                     conhecimento cultural. “Quando autores chineses tradicio-
                     nais tomam emprestado trechos de um texto preexistente
                     e, principalmente, de um clássico, espera-se que o leitor re-
                     conheça a fonte do material emprestado instantaneamente.
                     Se um leitor é infeliz o suficiente para deixar de reconhecer
                     esse material citado, é culpa dele, não do autor”262.
                         Em Lún Yǔ (論語, em português conhecido como
                     Os analectos ou Diálogos), principal coleção de ensaios e
                     ideias atribuídas a Confúcio, está escrito: “O Mestre disse:
                     ‘Eu transmito, mas não inovo; sou verdadeiro no que digo
                     e votado à Antiguidade’ (shù ér bù zuò)”263. Embora essa
                     afirmação possa trazer um certo desestímulo à criativida-
                     de, tinha por motivo enfatizar o papel de cada um como
                     o portador de uma tradição, e não como o fundador ou
                     originador de uma nova doutrina264. Em outro lugar de Os
                     analectos, é atribuída a Confúcio a frase: “Merece ser um

                     262
                         Em Yu, op. cit., p.8, e Stone, What Plagarism Was Not: Some
                     Preliminary Observations on Classical Chinese Attitudes Toward What
                     the West Calls Intellectual Property, Marquette Law Review, 2008.
                     263
                         Confúcio, Os analectos, livro VII, cap.1, p.62.
                     264
                         Yu, op. cit., p.7.


                                                                                   209



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              professor o homem que descobre o novo ao refrescar na
              sua mente aquilo que ele já conhece (wēn gù ér zhīxīn /
              kěyǐ wéi shī yǐ)”265. Segundo Yu, o pensamento de Confúcio
              manifestaria uma visão de que “a capacidade de fazer uso
              transformador de obras preexistentes pode demonstrar a
              compreensão e a devoção ao núcleo da cultura chinesa,
              bem como a capacidade de distinguir o presente do passa-
              do através de pensamentos originais”266.
                  Um último fator que teria influenciado a divergência
              chinesa com relação à propriedade intelectual tal qual ela
              foi concebida no Ocidente é um certo desdém dos confu-
              cionistas pelo comércio e pela criação de obras por puro
              lucro. Mais uma vez, Os analectos: “As ocasiões em que o
              Mestre falava sobre lucro, Destino e benevolência eram
              raras (Zi hǎn yán lì)”267. Em sua amplamente usada tra-
              dução para o inglês, Arthur Waley esclareceu o ensino
              do mestre acrescentando a nota de rodapé: “Podemos ex-
              pandir: raramente falamos de assuntos do ponto de vista
              do que pagaria melhor, mas apenas do ponto de vista do
              que era certo”268. Os comerciantes (shāng) eram conside-
              rados a mais baixa entre as quatro classes sociais da socie-
              dade tradicional chinesa, atrás de oficial-estudioso (shì),
              fazendeiro (nóng) e artesão (gōng). Não seria surpresa,
              portanto, que os confucionistas não tenham dado ênfase,
              até o século XX, à noção de propriedade intelectual e à
              ideia correlata dos direitos comerciais exclusivos269.

              265
                  Confúcio, op. cit., p.44.
              266
                  Yu, op. cit., p.7.
              267
                  Confúcio, op.cit., p. 69.
              268
                  Yu, op. cit., p.8.
              269
                  Como afirma Yu, “A propriedade intelectual pode ser vista também
              na expressão chinesa do termo “patente”, zhuānlì (专利), que pode


              210



aculturaelivre.indd 210                                                              05/02/21 18:25
                         Ao lado do budismo e o xintoísmo, os outros dois con-
                     juntos de ideias mais difundidos no Extremo Oriente, a
                     influência do confucionismo na cultura chinesa fez a
                     perspectiva do direito autoral na região ser voltada, du-
                     rante muito tempo, mais à defesa de uma base de infor-
                     mação pública, de livre acesso e reuso – o que no Ocidente
                     foi chamado de domínio público. A demora da China em
                     assinar tratados internacionais de propriedade intelec-
                     tual (a partir da década de 1980, quando também o país
                     passa a ser parte da World Intellectual Property Organi-
                     zation) tem relação com uma cultura coletiva e de defe-
                     sa do domínio público enraizada desde muito tempo em
                     sua sociedade. E também se associa com a propagação
                     da cultura shanzai já citada, que tem a cópia como base
                     para a recriação de diferentes produtos e marcas a partir
                     de uma prática criativa compiladora enraizada no dia a
                     dia do povo da região, mesmo com a perda da influência
                     do confucionismo.
                         Porém, nas últimas décadas do século XX e nas primeiras
                     do XXI, a China não só tem se adequado à visão de proprie-
                     dade intelectual ocidental como se tornou, em 2020, a cam-
                     peã de pedidos internacionais de patentes, à frente dos Esta-
                     dos Unidos270. De outro lado, também é o país a que mais se


                     ser literalmente traduzida como “benefício exclusivo” ou “lucro ex-
                     clusivo”. Curiosamente, o falecido dr. Arpad Bogsch, o diretor-geral
                     de longa data da Organização Mundial da Propriedade Intelectual,
                     achou o termo tão problemático que “sugeriu que alguma outra ter-
                     minologia chinesa deveria ser empregada para substituir os dois ca-
                     racteres chineses, a fim de evitar mal-entendidos” (Yu, op. cit., p.8).
                     270
                         Matéria divulgada pela AFP a partir de comunicado da Wipo em
                     2019 dizia que a China “conquistou o título” pela primeira vez. “Em
                     1999, o Ompi recebeu 276 solicitações da China, contra 58.990 em


                                                                                      211



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              atribuem infrações de direitos autorais na área musical; a In-
              ternational Federation of the Phonographic Industry (IFPI)
              afirma que 95% das músicas que circulam no país ocorrem
              a partir de downloads sem autorização dos proprietários271.
              Para além do questionamento dos dados dessas pesquisas,
              podemos nos perguntar: como seria uma legislação que res-
              peitasse o passado coletivista da cultura confucionista do Ex-
              tremo Oriente e dialogasse com uma noção contemporânea
              de direito autoral do status quo do capitalismo? Yu aposta
              em noções que não visam a uma legislação maximalista – ou
              seja, que não tenham todos os direitos reservados aos detento-
              res de um copyright, por exemplo. O que é o caso do Creative
              Commons, citado por ele como exemplo de opção em que
              “os confucionistas podem ter desdém pelo comércio e ainda
              assim abraçar os direitos de propriedade intelectual”272.

              III.

              “Presente de índio” (Indian giver) é um termo que aparece
              nas línguas ocidentais a partir do contato dos colonizadores
              europeus com os povos originários do continente que seria
              então batizado por um deles de América. Na língua inglesa,


              2019, 200 vezes mais hoje do que há 20 anos”, detalhou o diretor-geral
              da organização, Francis Gurry. Fonte: AFP, China se torna campeã de
              pedidos internacionais de patentes, UOL Notícias, 7 abr. 2020, disponí-
              vel em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/07/
              china-se-torna-campea-de-pedidos-internacionais-de-patentes.htm.
              271
                  O combate à dita pirataria na China pela IFPI gosta de mostrar esses
              dados, dizendo como e quanto ganhariam as indústrias da cultura se
              houvesse a adequação às normas ocidentais de direito autoral. Exem-
              plos estão disponíveis na página da organização: http://www.ifpi.org.
              272
                  Yu, op. cit., p.7.


              212



aculturaelivre.indd 212                                                                  05/02/21 18:25
                     ele é registrado pela primeira vez em 1765 para definir um
                     tipo de presente pelo qual se espera uma retribuição equi-
                     valente. Um século depois, Indian giver foi compilado em
                     um dicionário de americanismos como uma frase comum
                     entre crianças de Nova York para se referir a um presente
                     que alguém dá e toma de volta273, o mesmo significado que
                     ganhou na língua portuguesa e que, particularmente no
                     Brasil, se soma ao sentido de um “presente indesejado” que
                     a expressão ganhou no uso cotidiano.
                        O uso comum da expressão parte de uma ação que en-
                     tende como “normal” alguém receber um presente e con-
                     sumi-lo como qualquer outra coisa recebida ou adquirida.
                     Ocidental e de origem europeia, esse normal não é o costu-
                     me de muitos povos originários do continente americano e
                     de outras regiões do planeta. Para estes, o que quer que seja
                     presenteado ou doado deve ter alguma retribuição, ser pas-
                     sado adiante, no máximo substituído, não guardado para
                     sempre ou reinvestido para proveito exclusivo de uma pes-
                     soa. Um presente é o começo de uma relação circular de
                     vai e volta, que pressupõe responsabilidades mútuas e não
                     termina com o ato de receber, guardar e usar em algum
                     momento, como no hábito das sociedades ocidentais onde
                     o capitalismo prevalece como modo principal de organizar
                     a vida. Sendo o início de uma relação, não pode ser con-
                     sumido e descartado como uma simples mercadoria. Caso
                     seja, poderá ser tomado de volta: “presente de índio”.
                        O seguinte causo contado por Viveiros de Castro é ilus-
                     trativo.

                     273
                        Notado em 1765 por Thomas Hutchinson em History of Massachu-
                     setts: From the First Settlement thereof in 1628, until the Year 1750. E
                     depois definido no dicionário citado, escrito por John Russell Bartlett.
                     Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Indian_giver.


                                                                                       213



aculturaelivre.indd 213                                                                         05/02/21 18:25
                          É muito comum uma equipe de filmagem chegar
                          numa área indígena e oferecer 30 mil dólares para
                          filmar, e os índios conversarem entre si e fazerem uma
                          contraproposta, 40 mil dólares, e fecharem o negócio.
                          Fica combinado. Então se faz o filme e a equipe acha que
                          resolveu o problema. Paga diretinho e coisa e tal. Quando
                          o filme sai, o diretor recebe um telefonema dizendo o
                          seguinte: “Você está nos devendo dinheiro, você roubou
                          da gente!”. Aí ele diz: “Peraí, eu assinei um papel, eu já
                          dei os 40 mil”, e os índios: “Não, mas você não pagou
                          não-sei-o-quê”, ou então “não foi para todo mundo”. Aí
                          ele de repente se dá conta de que os índios têm uma con-
                          cepção da transação, da relação social em geral, radical-
                          mente oposta à nossa. Quando fazemos uma transação,
                          entendemos que ela tem começo, meio e fim, eu lhe dou
                          um troço, você me paga, estamos quites, você vai para
                          um lado, eu vou para o outro. Ou seja, a transação é feita
                          em vista de seu término. Os índios, ao contrário: a tran-
                          sação não termina nunca, a relação não termina nunca,
                          começou e não vai acabar nunca mais, é para a vida intei-
                          ra. Ao pedir mais dinheiro, não é exatamente o dinheiro
                          que os índios querem, mas a relação. Eles não aceitam
                          que acabou o lance, acabou coisa nenhuma, agora é que
                          vai começar. Donde os famosos estereótipos: os índios
                          pedem o tempo todo. Sim, pedem. E reclamamos que o
                          que eles obtêm é jogado fora de repente: as aldeias ficam
                          cheias de objetos descartados que os índios pediram para
                          nós, insistiram até conseguir, e quando conseguem não
                          cuidam, jogam fora, deixam apodrecer, enferrujar. E os
                          brancos ficam com aquela ideia de que esses índios são
                          uns selvagens mesmo, não sabem cuidar das coisas. Mas
                          é claro, o problema deles não é o objeto, o que eles que-
                          rem é a relação.274


              274
                    Viveiros de Castro, Economia da cultura digital, em Savazoni; Cohn


              214



aculturaelivre.indd 214                                                                  05/02/21 18:25
                     Na antropologia, há muitos estudos sobre o tipo de tran-
                     sação que ocorre na troca (ou doação) de presentes. Um
                     dos mais antigos e influentes é o do francês Marcel Mauss,
                     o hoje clássico “Essai sur le don”, publicado na França em
                     1924, traduzido no Brasil como “Ensaio sobre a dádiva”275,
                     em que ele compara diferentes sistemas de dádivas entre
                     sociedades da Polinésia, Melanésia e noroeste do conti-
                     nente americano para explicitar a troca de dádivas como
                     um fenômeno que pressupõe transações diversas – jurídi-
                     cas, morais, estéticas, religiosas, mitológicas –, além das
                     econômicas. Mauss afirma que o sistema de troca de dá-
                     divas nessas sociedades tem um princípio comum regu-
                     lador: a obrigação de dar, receber e retribuir. No lugar de
                     reduzir essas transações a meros câmbios de presentes, o
                     francês mostra que esses processos carregam consigo uma
                     dimensão moral que confere sentido às relações sociais, o
                     que as caracteriza como prestações de serviços que visam
                     estabelecer novas alianças e fortalecer antigas276.
                        Mauss nota que os bens em circulação nesses sistemas
                     são inseparáveis de seus proprietários e possuem uma
                     substância moral própria relacionada à matéria espiritual

                     (orgs.). Cultura digital.br, p.90.
                     275
                         A referência original é Mauss, “Essai sur le don”, L’Année Sociologi-
                     que I, p.30-186. Em português, o texto está disponível em uma cole-
                     tânea de artigos do autor: Mauss, Sociologia e antropologia. O antro-
                     pólogo Marshall Sahlins situa as ideias de dádiva na filosofia política
                     a partir de Mauss em Stone Age Economics (Economia da Idade da
                     Pedra), publicado em 1972. Lewis Hyde discorre sobre o tema na área
                     da cultura e da arte em The Gift (A dádiva), em 1983; entre diversas
                     outras obras consistentes que desenvolvem, aperfeiçoam e recombi-
                     nam as ideias de Mauss sobre dádiva.
                     276
                         Sertã; Almeida, Ensaio sobre a dádiva, em Enciclopédia de Antropo-
                     logia. Disponível em: http://ea.fflch.usp.br/obra/ensaio-sobre-dádiva.


                                                                                        215



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              do doador de um dado objeto277. Essa substância é doada
              quando da troca de um presente e passa a circular jun-
              to desse objeto, que então nunca vai ser apenas um “sim-
              ples objeto”, seja ele qual for, mas algo que tem intenção e
              que convive em igualdade com as pessoas. Nesse sentido,
              o sistema da mercadoria conhecido no Ocidente se tor-
              na diferente para as perspectivas dos povos tradicionais.
              Nas palavras da antropóloga Marilyn Strathern (1984), é a
              oposição da economia da commodity, na qual as pessoas e
              coisas assumem a forma social de coisas, com a economia
              da dádiva (gift), na qual pessoas e coisas assumem a forma
              social das pessoas278. É nesse sentido que, em sociedades
              originárias de diversos locais do mundo, o modelo de pro-
              priedade (particularmente o de propriedade intelectual),
              calcado na relação da obra de arte como mercadoria de
              consumo, se torna insuficiente para lidar com uma rela-
              ção mais duradoura e complexa da circulação de objetos/
              bens279. No sistema cultural das sociedades originárias, é
              perceptível, em primeiro lugar, a centralidade dos valores
              coletivos, ligados à pluralidade e à sobrevivência da comu-
              nidade, em relação aos valores individuais, de uso exclu-
              sivo e escolha individual. O que, por sua vez, faz com que
              os bens culturais e de conhecimento nesse contexto sejam
              mais difíceis de se tornar apenas mais uma commodity

              277
                  Ibidem.
              278
                  Strathern, The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems
              with Society in Melanesia, p.84. Citado, nesses termos, por Coelho de
              Souza, The Forgotten Pattern and the Stolen Design: Contract, Ex-
              change and Creativity among the Kĩsêdjê, em Brightman; Fausto;
              Grotti, Ownership and Nurture: Studies in Native Amazonian Property
              Relations.
              279
                  Coelho de Souza, op. cit., p.183.


              216



aculturaelivre.indd 216                                                                 05/02/21 18:25
                     vendida como mercadoria, pois há princípios e respon-
                     sabilidades de reciprocidade e solidariedade que buscam
                     valorizar a substância moral própria – que poderíamos
                     também nomear como “alma” – dos objetos em suas re-
                     lações com as pessoas e o mundo. Para citar um exemplo,
                     os direitos do povo guarani, um dos mais presentes no
                     Brasil e na América do Sul, são guiados pelos princípios
                     de valoração de direitos coletivos em detrimento dos indi-
                     viduais, o que produz normas mais flexíveis, discutidas de
                     tempos em tempos em comunidade nas Aty Guassu (gran-
                     de assembleia), baseadas em suas práticas culturais e que
                     buscam manter o equilíbrio da convivência e o respeito
                     às tradições280.
                        Em segundo lugar, há de se ressaltar que, no sistema
                     cultural das sociedades originárias, a noção de coletivida-
                     de é ainda mais complexa do que parece. A antropóloga
                     Marcela S. Coelho de Souza (2016) diz que, para povos
                     ameríndios como o Kĩsêdjê, da região próxima ao parque
                     do Xingu, norte do estado do Mato Grosso, na Amazô-
                     nia brasileira, nem sujeito nem objeto, nem criador nem
                     criatura se comportam de acordo com as expectativas oci-
                     dentais embutidas nessas acepções. O coletivo aqui não
                     envolve apenas pessoas, mas também objetos e as diferen-
                     tes relações mútuas entre estes, o que torna o vocabulário
                     proposto pela noção de propriedade intelectual, calcado

                     280
                        “O Direito indígena é uma práxis nascida do consenso social, modi-
                     ficando-se na própria práxis. São esses princípios que norteiam a moral
                     comunitária, tabus e mitos, que cerceiam e redirecionam a convivência
                     social ao plano do equilíbrio e quando então ocorre um desequilíbrio,
                     esses princípios são direcionados a sanar a ruptura havida.” Vale con-
                     ferir o artigo: Machado; Ortiz, Direito e cosmologia Guarani: um di-
                     álogo impreterível, Revista de Direito: trabalho, sociedade e cidadania.


                                                                                       217



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              na separação clara entre sujeito e objeto, criador e criatu-
              ra, muito pobre para ser usado nesses casos.
                  Não é fácil harmonizar a lógica de direitos coletivos de
              um dado sujeito sobre seu objeto de criação também por-
              que, para muitos povos ameríndios, quase tudo que define
              a cultura humana vem de fora, ou é obtido de forças exte-
              riores. No caso do povo Kĩsêdjê, por exemplo, o milho vem
              do rato; o fogo do jaguar; nomes e ornamentos corporais
              de uma raça de anões canibais; músicas das abelhas, abu-
              tres, árvores e tartarugas aquáticas, entre outros casos que
              permitem afirmar: “se a cultura dos Kĩsêdjê pertence aos
              Kĩsêdjê, é justamente por que não são eles os criadores”281.
              Coelho de Souza afirma que, quando direitos envolven-
              do bens culturais e de conhecimento estão em jogo, eles
              nunca surgem como direitos coletivos que podem ser ine-
              quivocamente atribuídos a pessoas ou grupos, mas antes
              a uma vasta rede de prerrogativas heterogêneas, direitos e
              obrigações que não se encaixam facilmente nos moldes da
              representação legal requerida nas formas de um contra-
              to jurídico282.
                  Criação e propriedade intelectual no pensamento oci-
              dental, especialmente a partir do Iluminismo e de John
              Locke no século XVII, são noções ligadas à ideia de que
              objetos (histórias, narrativas) são feitos a partir do inte-
              lecto humano, fruto de nossa subjetividade e como algo
              que é uma extensão de nossa identidade. Nessa ideia, a
              criatividade é concretizada com a produção de um dado

              281
                 Coelho de Souza, op. cit., p.183.
                Coelho de Souza, op. cit., p.181, citando outro texto conhecido da
              282

              antropologia no Brasil: Carneiro da Cunha, “Cultura” e cultura: co-
              nhecimentos tradicionais e direitos intelectuais, em Cultura com as-
              pas e outros ensaios, p.311-73.


              218



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                     objeto, mas não emana deste, que permanece inerte e sem
                     vida – pelo menos em sua concepção legal e tradicional. A
                     propriedade intelectual, nesse sentido, é ancorada na rela-
                     ção entre pessoas com respeito a (e mediada por) coisas283,
                     com uma clara separação entre o que é matéria e o que é
                     espírito, sujeito e objeto.
                         A visão ameríndia é bastante distinta. Trata, por exemplo,
                     os objetos como registros “menos passivos das capacidades
                     de um sujeito do que as objetificações personificadas dessas
                     relações”284. De modo que a criação se dá distribuída na rela-
                     ção entre os múltiplos objetos e pessoas, sem essa separação
                     entre sujeito e objeto, intelecto e matéria, que estamos acos-
                     tumados a fazer no Ocidente. A subjetividade também exis-
                     te nos objetos e forma uma animada paisagem composta de
                     diferentes tipos de níveis de ações humanas285. Para os ame-
                     ríndios, cada objeto, assim como animal, é potencialmente
                     um sujeito, o que nos faz remontar ao perspectivismo amerín-
                     dio proposto por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze
                     Lima, conceito amplamente difundido na antropologia e que
                     podemos definir como a ideia de que “seres providos de alma
                     reconhecem a si mesmos e àqueles a quem são aparentados

                     283
                         Coelho de Souza, op. cit., p.182. Tradução minha para: “Property
                     is anchored as a relation among people with respect to (mediated by)
                     things”.
                     284
                         Ibidem, p.182.
                     285
                         Adaptação minha, no original: “In this distributed mode, recom-
                     binations are not the work of an intellect separated from matter; here,
                     subjectivity exists distributed in objects, forming ‘an animated landsca-
                     pe composed of different kinds of bodies in which change and effect are
                     events with meaning on the same level as human actions’ (Leach, 2004,
                     p.169). […] ‘People’ and ‘things’ appear then as indexes of capacities
                     and powers the apprehension of which becomes the focus of the explicit
                     practice of subjects” (Coelho de Souza, op. cit., p.183).


                                                                                        219



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              como humanos, mas são percebidos por outros seres na for-
              ma de animais, espíritos ou modalidades de não humanos”286.
                  Embora essa concepção seja específica do perspectivis-
              mo ameríndio, ela também pode ser aproximada a uma
              noção mais ampla, compartilhada por outros povos ori-
              ginários da América Latina e de outros lugares do mun-
              do, de não separação entre natureza e sociedade. Central
              para o que se costuma chamar de modernidade, essa se-
              paração tem sido questionada na antropologia faz muitas
              décadas287, com mais força ainda a partir dos fenômenos
              ligados ao aquecimento global, a partir dos anos 1990, em
              que decisões políticas tomadas por governos, pessoas e em-
              presas (“sociedade”) têm provocado alterações irreversíveis
              no clima do planeta (“natureza”). Para os povos originários,
              como os Kĩsêdjê e os Guarani citados aqui, essa divisão
              nunca existiu; a mesma concepção de mundo que não sepa-
              ra sujeito e objeto e que os inclui no que é chamado coletivo
              também não vê diferença entre natureza e sociedade.
                  Não é por acaso, portanto, que a influência indígena em
              países latino-americanos tem trazido o debate em torno

              286
                  Essa definição aqui vem com a ajuda de Maciel, “Perspectivismo ame-
              ríndio”, em Enciclopédia de antropologia. Disponível em: http://ea.fflch.
              usp.br/conceito/perspectivismo-amer%C3%ADndio. O conceito está
              detalhado em, entre outras obras, Um peixe olhou para mim: o povo
              Yudjá e a perspectiva, de Tânia Stolze Lima; e A inconstância da alma
              selvagem e outros ensaios de antropologia e Metafísicas canibais: elementos
              para uma antropologia pós-estrutural, de Eduardo Viveiros de Castro.
              287
                  Entre outros autores, Bruno Latour, em Jamais fomos modernos,
              discute a ideia de que a modernidade começa com a cisão entre na-
              tureza e sociedade no mundo ocidental, o que abriu caminho para a
              destruição da natureza. “A natureza e a sociedade não são dois polos
              distintos, mas antes uma mesma produção de sociedades-naturezas,
              de coletivos” (p.138).


              220



aculturaelivre.indd 220                                                                     05/02/21 18:25
                     dos direitos da natureza288, uma perspectiva que questiona
                     essa separação e tenta incluir árvores, rios, montanhas e
                     florestas como seres de direito dentro de um sistema legal
                     vigente ocidental. A Constituição de Montecristi da Re-
                     pública do Equador, por exemplo, promulgada em 2008,
                     afirma no artigo 71 do capítulo VII:
                            A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e se rea-
                            liza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a
                            sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos
                            vitais, estrutura, funções e processos evolutivos. Toda pes-
                            soa, comunidade, povoado, ou nacionalidade poderá exi-
                            gir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da
                            natureza. [...] O Estado incentivará as pessoas naturais e
                            jurídicas e os entes coletivos para que protejam a natureza
                            e promovam o respeito a todos os elementos que formam
                            um ecossistema.289
                     A inclusão (ou tentativa) de seres vivos não humanos em
                     legislações e constituições, como no caso do Equador, re-
                     verbera também a ideia do bem viver (buen vivir), uma
                     noção comum há muito tempo entre povos originários da


                     288
                         Ou “direitos não humanos”. Ver Gudynas, Direitos da natureza: éti-
                     ca biocêntrica e políticas ambientais.
                     289
                         A Assembleia Constituinte foi presidida por Alberto Acosta, e in-
                     cluiu ainda 99 artigos que abordam expressamente a questão. Esse
                     trabalho faz parte de um movimento de diferenciação latino-ameri-
                     cana da tradicional teoria constitucional europeia, chamado na área
                     de “neoconstitucionalismo latino-americano”, que inclui também as
                     constituições da Colômbia (1994) e da Venezuela (1999). Para mais
                     detalhes, ver: Shiraishi Neto; Tapajós Araújo, “‘Buen vivir’: notas de
                     um conceito constitucional em disputa”, Pensar, p.379-403, maio-ago.
                     2015. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view-
                     File/2886/pdf.


                                                                                     221



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              América Latina290 e que tem sido retomada nas últimas
              décadas como uma crítica ao desenvolvimentismo e à ne-
              cessidade de crescimento e acúmulo de riquezas à custa
              tanto da natureza quanto de muitas das populações que
              dela vivem diretamente. Para o bem viver, também não
              deve haver separação entre natureza e sociedade, o que,
              por sua vez, não deve ser confundido como uma “volta ao
              passado”, mas a busca, nas raízes ancestrais dos povos ori-
              ginários, por uma convivência mais harmoniosa entre ho-
              mem e natureza que nos traga saídas, particulares a cada
              comunidade, para a crise ambiental e também social que
              vivemos hoje.
                 Em povos nos quais não há separação entre natureza
              e cultura, sujeito e objeto, e em que o coletivo, em toda a
              complexidade que esse termo pode ter para esses povos,
              é prioritário em relação ao individual, é mais difícil falar
              de noções como propriedade intelectual, direitos autorais
              e cultura livre tal qual comentamos até este capítulo291. As

              290
                  O termo remete a idiomas originários: sumak kawsay em quéchua,
              suma qamaña em aimará, além de aparecer também como nhandereko
              e teko porã, em guarani. Há noções similares ainda entre os povos Ma-
              puche no Chile, os Kunas no Panamá, os Shuar e os Achuar da Ama-
              zônia equatoriana, assim como nas tradições maias da Guatemala e de
              Chiapas no México. Ver Acosta, O bem viver: uma oportunidade para
              imaginar outros mundos.
              291
                  Além de Brightman; Fausto; Grotti (orgs.), Ownership and Nurture:
              Studies in Native Amazonian Property Relations, de 2016, coletânea
              que traz o artigo de Marcela Coelho de Souza aqui citado, há pelo me-
              nos duas obras importantes para quem quer ir mais a fundo no tema:
              Strathern, Property, Substance, and Effect: Anthropological Essays on
              Persons and Things, e Hirsch; Strathern, Transactions and Creations:
              Property Debates and the Stimulus of Melanesia. Agradeço a Eduardo
              Viveiros de Castro por essas três indicações.


              222



aculturaelivre.indd 222                                                               05/02/21 18:25
                     ideias de cópia, plágio, apropriação e remix foram apre-
                     sentadas dentro de uma concepção proprietária de mundo,
                     vigente no Ocidente desde o princípio do capitalismo, mas
                     que para esses povos citados não é o normal. Ainda assim,
                     não há como negar que o sistema capitalista busca, com
                     frequência, se apropriar dos conhecimentos e dos bens
                     culturais desses povos originários para deles extrair valor
                     e então vender como mercadoria – como é o caso desde
                     produtos da floresta usados como remédios ancestrais a
                     padrões de desenhos reconhecidos como design. Como,
                     então, criar mecanismos que fomentem o pensamento co-
                     letivo e comunitário incutido nesses povos, respeitem sua
                     cosmovisão e, ao mesmo tempo, protejam sua cultura de
                     gerar mercadorias a serem colocadas à venda num mer-
                     cado onde a maior parte do valor obtido não irá para eles?
                         Há dificuldade de uma resposta única para essa ques-
                     tão. Se, como já vimos, um software tem condições de
                     produção diferentes de uma música ou de um desenho,
                     também os contratos desses bens precisam ser diferentes,
                     de acordo com contextos e atores envolvidos. A proteção
                     de um domínio público amplo não é excludente da remu-
                     neração de quem (re)cria, como demonstram as licenças
                     Arte Livre, Creative Commons e Copyfarleft citadas no
                     capítulo anterior. A equiparação de objetos e pessoas e o
                     estabelecimento de uma relação longa de dádiva que não
                     termina sem guerra podem ser contemplados por nego-
                     ciações mais complexas, que inventem outros termos que
                     não os habituais utilizados no campo da propriedade in-
                     telectual. Algumas das palavras desse novo vocabulário
                     não têm nada de novas; o copyleft oitentista e o milenar
                     comum oriundo do res commune romano, por exemplo,
                     podem ser usados e recriados a partir das perspectivas



                                                                           223



aculturaelivre.indd 223                                                            05/02/21 18:25
              ameríndias citadas para estabelecer novos e proteger ve-
              lhos comuns através de práticas cotidianas de cuidado e
              resistência – inclusive no aspecto legal, essa interface de
              mediação que muitas vezes é necessária para a garantia de
              um bem viver para todos.

              IV.

              O cultivo de bens culturais livres à margem da busca in-
              dividualista e proprietária da cultura predominante no
              Ocidente requer resistência e criatividade. Resistir é pro-
              cedimento necessário para a preservação de uma ampla
              base de dados coletiva de criação, ao passo que criar é ne-
              cessidade básica para reinventar conceitos e práticas para
              construir caminhos alternativos de produção, circulação e
              remuneração da cultura menos restritivos e mais autôno-
              mos. Nesse sentido, há propostas distintas. Para o Creative
              Commons, reformar as leis de direitos autorais conceden-
              do o direito de escolha das liberdades de uso, circulação
              e produção para os identificados como autores é um ca-
              minho para a construção de um domínio público vibrante
              e acessível. Para o copyleft proposto por Stallman, tornar
              softwares e alguns bens culturais livres é uma saída para
              lutar contra monopólios que retiram a liberdade de criação
              e de escolha autônoma dos usos de uma determinada obra.
                 Outras pessoas, como a ativista do conhecimento livre
              Evelin Heidel (Scann), dizem que o feminismo deveria se
              opor ao caráter patriarcal do direito de autor. Propõe, en-
              tão, modificar a legislação não de modo punitivista para
              dar mais proteção a criações de mulheres que ficaram de
              fora dessas legislações, mas sim para gerar um paradigma
              que valorize a criação como prática social e comunitária.



              224



aculturaelivre.indd 224                                                     05/02/21 18:25
                     “Buscar modificar as leis que hoje criminalizam ou proí-
                     bem práticas fundamentais para a liberdade de expressão,
                     para o intercâmbio, a distribuição e a reapropriação da cul-
                     tura”, de modo que se calem as musas que inspiram os gê-
                     nios para que, enfim, se possa falar das mulheres292.
                        Para alguns também aqui citados, como Anna Nimus,
                     abolir o copyright pode ser a saída. Joost Smiers e Marieke
                     van Schijndel imaginaram um mundo sem copyright que
                     tem como ideia principal o fato de que a proteção ofere-
                     cida pelos direitos de autor não é necessária para o pro-
                     cesso de expansão da criação artística. Eles citam diversos
                     argumentos que fazem que seja ilógico apostar no direito
                     autoral como modelo de regulação da produção cultural;
                     o fato de ser um direito exclusivo e monopolista de uma
                     obra privatiza uma parte essencial da nossa comunicação e
                     prejudica a democracia, por exemplo293; a questão de se ele
                     é de fato um incentivo econômico ao criador, motivo ale-
                     gado desde o princípio do direito autoral, mas que alguns
                     estudos econômicos citados demonstram que, das receitas
                     obtidas de cópias vendidas, 10% vai para 90% dos artistas
                     e 90% vai para 10%294; a falsa ideia de originalidade como
                     expressão individual e exclusiva de algum criador; o fra-
                     casso do combate à chamada pirataria de arquivos digitais
                     de obras culturais na rede. Como solução, Smiers e Van
                     Schijndel apontam para algo próximo ao comum: “Acredi-
                     tamos que é possível criar mercados culturais de forma a

                     292
                         Heidel (Scann), op. cit. Disponível em: https://www.genderit.org/
                     es/feminist-talk/columna-que-se-callen-las-musas-por-qu-el-femi-
                     nismo-debe-oponerse-al-copyright.
                     293
                         Smiers; Van Schijndel, Imagine um mundo sem direitos do autor
                     nem monopólios, p.10.
                     294
                         Ibidem, p.13.


                                                                                     225



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              que a propriedade dos recursos de produção e distribuição
              esteja nas mãos de muita gente. Nessas condições, acha-
              mos nós, ninguém poderá controlar o conteúdo ou a utili-
              zação das formas de expressão cultural através da detenção
              exclusiva e monopolista de direitos de propriedade”295.
                  No Encontro de Cultura Livre do Sul, realizado por co-
              letivos culturais da Ibero-América nos dias 21, 22 e 23 de
              novembro de 2018296, eu e uma série de ativistas e pesqui-
              sadores discutimos e buscamos respostas para algumas das
              questões abordadas neste livro. Durante as seis mesas de de-
              bate do encontro, falamos sobre políticas públicas e marcos
              legais de direitos do autor; digitalização de acervos e acesso
              ao patrimônio cultural em repositórios livres; de labora-
              tórios, produtoras colaborativas, hackerspaces, hacklabs e
              outras formas de organizações que defendem e praticam no
              dia a dia a cultura livre; de como nos inserimos em uma
              rede internacional que também defenda os bens comuns;
              das muitas formas de produção cultural – editorial, musi-
              cal, audiovisual, fotográfica – que estão sendo realizadas
              no âmbito das licenças e da cultura livre; e das plataformas,
              conteúdos e práticas educacionais que têm o livre como pa-
              radigma de ação e propagação.
                  Junto com os mais de duzentos participantes, pensa-
              mos sobre as especificidades da cultura livre no sul global
              em relação ao norte. Como um dos resultados, escreve-
              mos o Manifesto da Cultura Livre do Sul Global297, que
              propõe alguns princípios, conceituais e práticos, que acre-

              295
                  Ibidem, p.6.
              296
                  Todos os debates podem ser vistos aqui: http://baixacultura.org/
              encontro-de-cultura-livre-do-sul-todos-os-videos-y-relatos.
              297
                   Disponível em: http://baixacultura.org/cultura-livre-do-sul-glo-
              bal-um-manifesto.


              226



aculturaelivre.indd 226                                                               05/02/21 18:25
                     ditamos serem importantes para a propagação e o cuidado
                     de uma cultura livre neste sul que não é somente geográfi-
                     co. O trecho a seguir do manifesto foi um desfecho para o
                     encontro – e também cabe estar aqui, adaptado, não para
                     encerrar, mas para manter acesa a longa e contínua dis-
                     cussão sobre a cultura livre através dos tempos.
                          A discussão sobre a liberdade de usos e produção de tec-
                          nologias livres tem sido fundamental para a cultura livre
                          desde o princípio, mas acreditamos que, no sul, temos a
                          urgência maior de nos perguntar para que e a quem ser-
                          vem nossas tecnologias livres. Não basta somente discu-
                          tir se vamos usar ferramentas produzidas em softwares
                          livres ou se vamos optar por licenças livres em nossas
                          produções culturais: necessitamos pensar em tecnolo-
                          gias, ferramentas e processos livres que sejam usados para
                          dar espaço, autonomia e respeito aos menos favorecidos,
                          financeira e tecnologicamente, de nossos continentes, e
                          para diminuir as desigualdades sociais em nossos locais,
                          desigualdades estas ainda mais visíveis no contexto de
                          ascensão fascista global que vivemos neste 2020.
                          Desde o sul, temos que pensar na cultura livre como um
                          movimento e uma prática cultural que dialogue intensa-
                          mente com as culturas populares de nossos continentes;
                          que respeite e converse com os povos originários da Amé-
                          rica, que estão aqui em nosso continente vivendo em uma
                          cultura livre muito antes da chegada dos “latinos”; que de-
                          fenda o feminismo e os direitos iguais a todos, sem distin-
                          ção de raça, cor, orientação sexual, identidade e expressão
                          de gênero, deficiência, aparência física, tamanho corporal,
                          idade ou religião; que dialogue com a criatividade recom-
                          binante das periferias dos nossos continentes, afeitas ao
                          compartilhamento comunitário e sendo alvo principal do
                          extermínio praticado por nossas polícias regionais; que
                          busque resguardar nossa privacidade a partir de táticas


                                                                                227



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                          antivigilância e na defesa do direito ao anonimato e à crip-
                          tografia; e que lute pela propagação das fissuras no sistema
                          capitalista, buscando, a partir de uma prática cultural e
                          tecnológica anticopyright, formas alternativas e solidárias
                          de vivermos em harmonia com Pachamama sem esgotar
                          os recursos já escassos de nosso planeta.
                          Pensar e fazer a cultura livre desde o sul requer pensarmos
                          na urgência das necessidades de sobrevivência do nosso
                          povo. Requer nos aproximarmos da discussão sobre o
                          comum, conceito-chave que nos une na luta contra a pri-
                          vatização dos recursos naturais, como os oceanos e o ar,
                          mas também dos softwares livres e dos protocolos abertos
                          e gratuitos sob os quais se organiza a internet. Nos apro-
                          ximar do comum amplia nosso campo de disputa no sul
                          global e nos aproxima do cotidiano de comunidades, cen-
                          trais e periféricas, que lutam no dia a dia pela preservação
                          dos bens comuns.
                          Importante lembrar que o conceito de comum do qual
                          buscamos nos aproximar deve ser pensado como algo
                          em processo, como um fazer comum (commoning em in-
                          glês). Isso é, não termos em vista somente o produto em
                          si – livro, vídeo, música, hardware ou software livres –,
                          mas as nossas próprias práticas e dinâmicas para através
                          das quais juntos criarmos novas formas de viver, conviver
                          e também produzir. Este é o fazer comum. Por isso, é im-
                          portante mantermos vivas as conexões que percorreram
                          todas as palavras, links, referências e pessoas citadas, de-
                          batidas, registradas e envolvidas nas páginas deste livro
                          que aqui continua.

                                                              Internet, Ibero-América,
                                                  sul-global, 23 de novembro de 2018
                                                      remixado no inverno de 2020




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                          229



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                          POSFÁCIO




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                     Depois de tanto falar em criação, reapropriação, proprie-
                     dade, cópia, comum, copyleft e copyright através de tem-
                     pos, de lugares e de visões de mundo diferentes, convém
                     perguntar: e este livro, qual a sinalização do autor para a
                     cópia, o uso (privado ou público), a citação e a reapropria-
                     ção? Adota-se alguma licença, qual?
                        Minha – nossa, porque, apesar de haver um nome por
                     trás desta obra, ela não deixa de ser coletiva, como vocês
                     perceberam ao longo da leitura – escolha é pela licença que
                     representa o copyleft: Creative Commons CC BY SA298.




                     Ela diz que este trabalho pode ser compartilhado – co-
                     piado e redistribuído – por qualquer meio ou formato e
                     adaptado – remixado, transformado – para qualquer pro-

                       Seu texto está disponível na íntegra aqui: https://creativecommons.
                     298

                     org/licenses/by-sa/4.0/.


                                                                                     231



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              pósito. Desde que haja atribuição de autoria, o que signi-
              fica que qualquer uso deve mencionar quem escreveu este
              trabalho e onde ele foi modificado – parto do ponto de
              que quem quiser compartilhar, usar e adaptar este livro
              o fará de maneira razoável. E que qualquer obra deriva-
              da desta seja compartilhada pela mesma licença descrita
              aqui, uma garantia que não permite o fechamento deste
              trabalho em uma licença que restrinja todas as indicações
              citadas acima.
                  A abrangência dessa licença é aplicada às formas mate-
              riais com que esta obra circula: impressa como livro, em
              formato de um arquivo digital E-book e disponibilizada
              em partes dentro de plataformas na internet. A escolha
              por ela parte do pressuposto de que este trabalho só exis-
              te porque muitos outros existiram; e que fomentar outras
              obras será um elogio às ideias que aqui circulam. Sabemos
              das possibilidades de apropriação indevida e preguiçosa
              que muitos já fizeram de obras semelhantes, mas optamos
              por esse risco para garantir que este livro será livre para
              diferentes fins, inclusive o comercial.
                  Nesse aspecto, estimulamos o uso, a reapropriação e a
              (re)venda deste trabalho para fortalecer pequenas editoras
              e selos alternativos, desde que respeitadas as orientações
              já indicadas; caso você queira fazer isso, ficaríamos felizes
              se nos avisassem. Recordamos, porém, que o trabalho de
              editoras independentes como esta precisa ser remunera-
              do para que continue existindo. Por isso, considere com-
              prá-lo impresso e, assim, valorizar as escolhas editoriais e
              gráficas feitas aqui, assim como o investimento financei-
              ro realizado – é isso que fará com que outras obras como
              esta sejam publicadas. Lembramos, por fim, que a melhor
              experiência de ler este texto – como muitos outros – é



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                     aquela propiciada por esta invenção de milhares de anos
                     chamada livro impresso, com o cheiro do papel a penetrar
                     as narinas e estimular uma leitura lenta, de anotações e
                     sublinhares diversos que puxam diálogos e levam adiante
                     a experiência única e singular de conhecer.




                                                                        233



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                          REFERÊNCIAS




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                        ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade
                     para imaginar outros mundos. Trad. Tadeu Breda. São
                     Paulo: Autonomia Literária; Elefante, 2016.
                        ALFORD, William P. Steal a Book Is an Elegant Offense:
                     Intellectual Property Law in Chinese Civilization. Stan-
                     ford: Stanford University Press, 1995.
                        ARMSTRONG, Elizabeth. Before Copyright: The
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                        BAKER, Pam. The Open Source Programa at
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              Janeiro: Beco do Azougue, 2009.
                  ______. A inconstância da alma selvagem e outros en-
              saios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
                  WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Ubu,
              2017.
                  WHITE, Harold O. Plagiarism and Imitation during the En-
              glish Renaissance: A Study in Critical Distinctions. Cambridge
              (Massachusetts): Harvard University Press, 1935.
                  WILLER, Cláudio. Prefácio. In: LAUTRÉAMONT,
              Conde de. Os cantos de Maldoror: poesias, cartas, obra
              completa. Trad., prefácio e notas Cláudio Willer. 2.ed. São
              Paulo: Iluminuras, 2005.
                  WILLIAMS, Sam. Free as in Freedom: Richard Stallman
              and the Free Software Revolution. Boston: Free Softwa-
              re Foundation, 2002. Disponível em: https://archive.org/
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                  WITTENBERG, Philip. The Protection and Marketing
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                  WOODMANSEE, Martha. The Author, Art, and the
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              BaixaCultura, [2005] 2016.



              248



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                        YU, Peter K. Intellectual Property and Confucianism:
                     Diversity in Intellectual Property: Identities, Interests
                     and Intersections. Org. Irene Calboli; Srividhya Ragavan.
                     Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
                        ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris:
                     Seuil, [1972] 2000.




                                                                         249



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                          AGRADECIMENTOS




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                     Este livro foi escrito, em sua redação final, entre setembro
                     de 2019 e setembro de 2020, período do início da pande-
                     mia do novo coronavírus e de uma quarentena que durou
                     muito mais que 40 dias. Muitas pessoas me permitiram
                     e ajudaram a escrevê-lo. Seria difícil citar todas; algumas
                     delas estão nas referências e nas notas de rodapé.
                        Outras posso agradecer aqui. As trocas de ideias com
                     Elias Machado e Leonardo Retamoso Palma foram im-
                     portantes para muitas das discussões deste trabalho. Em
                     diferentes momentos e de diferentes formas, foram inter-
                     locutores, propulsores ou colaboradores das ideias aqui
                     trazidas nos últimos anos: Rodrigo Savazoni, Mariana Va-
                     lente, Felipe Fonseca, André Deak, Pedro Markun, Evelyn
                     Gomes, Lívia Ascava, Sheila Uberti, Janaína Spode, Ca-
                     rolina Dalla Chiesa, Aline Bueno, Fabrício Solagna, Leo-
                     nardo Roat, Augusto Paim, Luís Eduardo Tavares, Aracele
                     Torres, Guilherme Flynn, Pablo Ortellado, Sérgio Ama-
                     deu, Eduardo Viveiros de Castro, Marcelo Träsel, Rubens
                     Velloso, Gustavo Torrezan, Sávio Lima Lopes, Reuben da
                     Cunha Rocha, Edson Andrade, Victor Wolfenbüttel, Wil-
                     liam Araújo, Pedro Jatobá, Rodrigo Troian, Joel Grigolo,
                     Iuri Martins, Thiago Almeida, Douglas Freitas, Márcia


                                                                            251



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              Veiga, Angelo Kirst Adami e Tatiana Dias (que deu pre-
              ciosas sugestões na reta final do texto). Agradeço também
              a Daniel Santini e Cauê Seignermartin Ameni, pelo apoio
              e confiança no projeto. E a Beatriz Martins, Carlos Lun-
              na, Jorge Gemetto, Mariana Fossati, Dani Cottilas, Bar-
              bi Couto e a rede de Cultura Livre do Sul, que estiveram
              como laboratório de muitas das palavras escritas aqui, as-
              sim como a Rede das Produtoras Culturais Colaborativas,
              ambos coletivos que põem em prática alguns dos entendi-
              mentos da cultura livre.




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                          SOBRE O AUTOR




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                 Foto: Sheila Uberti




                                  Leonardo Feltrin Foletto nasceu em Taquari, interior do
                                  Rio Grande do Sul. Formado como jornalista na UFSM,
                                  em Santa Maria-RS, fez Mestrado em Jornalismo na UFSC
                                  e Doutorado em Comunicação na UFRGS, com pesquisas
                                  ligadas a comunicação, tecnologia e ativismo. Como jorna-
                                  lista de redação, esteve em A Razão, de Santa Maria, e na
                                  Folha de S.Paulo (Ilustrada). Foi professor visitante em al-
                                  gumas universidades (PUC-RS, UCS, Unisinos, PUC-SP e
                                  Unochapecó) e escreveu Efêmero revisitado: conversas sobre
                                  teatro e cultura digital, a partir de uma bolsa da Fundação
                                  Nacional das Artes (Funarte) em 2011. Desde 2007 traba-
                                  lha com comunicação digital, cultura livre e tecnopolítica
                                  no Brasil e na Ibero-América em projetos como Casa da
                                  Cultura Digital (São Paulo e Porto Alegre), Ônibus Hacker,
                                  Festival BaixoCentro, Fórum Internacional do Software
                                  Livre (FISL), Rede de Produtoras Culturais Colaborativas,
                                  hackerspace Matehackers, Labhacker, Creative Commons
                                  Brasil e LabCidade (FAU-USP), entre outros. Além do
                                  BaixaCultura (baixacultura.org), espaço on-line de cultu-
                                  ra livre e (contra) cultura digital em atividade desde 2008,
                                  laboratório e extensão de boa parte das ideias trazidas aqui.


                                                                                          255



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              Fontes: Minion Pro e Andale Mono
              Papel: Pólen Bold 80g
              Impressão: Graphium




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                                N
no mercado das tecno-                ão é porque é que
logias de reprodução.                tem que
                                         de ser.
                                              ser.Esse
                                                    Esse
E com isso escanca-                  é o gosto que fica
ra que a cultura li-            do giro que este li-
vre já se encontra no           vro faz em torno de
meio de nós.                    múltiplas e diversas
                                abordagens a respeito
        Mariana Valente         da apropriação in-
   Diretora do InternetLab      dividual de bens da
   e professora do Insper.
                                cultura, e em torno
  Coordenadora do Creative
           Commons Brasil.      do que se trata, afi-
                                nal, ser alguém que
                                cria. No percurso, dá
                                visibilidade ao fato
                                de nem sempre, nem em
                                em todos
                                todos  os lugares,
                                          os lugares a
                                a cultura
                                cultura  ter
                                           foisido
                                                - ou- ou
                                                       é
                                - ordenada
                                ser  - ordenada
                                             sob sob
                                                 a ló- a
                                gica dada
                                lógica   propriedade
                                           proprieda-
                                intelectual.
                                de  intelectual.
                                               Em Em
                                                   um um
                                aberto questionamento
                                sobre a que servem os
                                regimes de proprie-
                                dade intelectual, o
LEONARDO FOLETTO, nascido
                                livro traz ao centro
em Taquari, interior do Rio
Grande do Sul, é jornalis-      do palco as práticas
ta, pesquisador e professor.    de resistência cons-
Formado pela UFSM, fez Mes-     cientes e espontâneas
trado em Jornalismo na UFSC e   – na arte, no coti-
Doutorado em Comunicação na
                                diano das ruas e na
UFRGS. Trabalha com comuni-
cação digital, cultura livre    internet, nos ativis-
e tecnopolítica no Brasil e     mos, nas articulações
na Ibero-América em projetos    comunitárias em torno
como o BaixaCultura, labora-    do comum, na noção de
tório online de cultura livre
                                coletividade de povos
e (contra) cultura digital,
em atividade desde 2008.        ameríndios, e mesmo